“Sutra de Smokey, o urso”, um texto de Gary Snyder

“Sutra de Smokey, o urso”, um texto de Gary Snyder
O poeta Gary Snyder (Foto: Divulgação)

 

Certa vez, no Jurássico, há cerca de 150 milhões de anos, o Buda Grande Sol fez um discurso aos elementos e energias que se reuniam neste canto no Vazio Infinito: aos seres de pé, aos caminhantes, aos seres voadores e àqueles sentados – mesmo as gramíneas, treze bilhões delas, cada qual nascida de uma semente, estavam ali reunidas: um Discurso dizendo respeito à Iluminação no planeta Terra.

“Em um tempo futuro, haverá um continente chamado América. Nele estarão grandes centros de poder denominados Pyramid Lake, Lago Walden, Monte Rainier, Big Sur, Everglades e outros mais; e largos nervos e canais tais como o Rio Columbia, Rio Mississippi e o Grand Canyon. A raça humana, nessa era, estará com problemas até o pescoço, praticamente destruindo todas as coisas, por mais forte que venha a ser sua própria inteligência búdica.”

“Os estratos móveis das grandes montanhas e a pulsação dos vulcões são meu amor queimando fundo na terra. Minha compaixão obstinada é xisto e basalto e granito, para que sejam montanhas, para que tragam chuva ao solo. Nessa futura Era Americana adentrarei em nova forma; para curar o mundo do conhecimento sem amor que se atira em ânsia cega; e de uma ira negligente que devora o alimento mas nunca se sacia.”

Então, mostrou-se em sua forma verdadeira de

SMOKEY, O URSO

Um belo e cinzento urso pardo erguido nas patas traseiras, mostrando-se desperto e vigilante.

Carregando na pata direita a Pá que escava a verdade por sob as aparências; que corta as raízes de apegos inúteis, que joga terra no incêndio da cobiça e da guerra;

Sua pata esquerda no mudra da Camaradagem Manifesta – indicando que todas as criaturas têm direito a viver em plenitude, e que o cervo, os coelhos, esquilos, serpentes, dentes-de-leão e lagartos todos crescem no reino do Dharma;

Vestindo o simbólico macacão azul dos escravos e operários, dos incontáveis homens oprimidos pela civilização que clama ser salvação, mas constantemente destrói;

Com o chapéu de abas largas do oeste, símbolo das forças que guardam a selva, Estado Natural do Dharma e caminho verdadeiro do homem na Terra:

todos os verdadeiros caminhos levam pelas montanhas –

Com um halo de fumaça e chamas atrás de si, os incêndios florestais de kali-yuga, incêndios causados pela estupidez dos que pensam ser possível ganhar e perder coisas quando, na verdade, tudo é pleno e abundante no Céu Azul e na Terra Verde da Mente Única;

A pança roliça mostra sua natureza afável e diz que a terra tem comida para todos que a amam e nela confiam;

Pisoteando rodovias destrutivas e subúrbios supérfluos, esmagando os vermes do capitalismo e do totalitarismo;

Apontando a tarefa: seus seguidores, tornando-se libertos dos carros, casas, comidas em lata, universidades e sapatos, compreendem os Três Mistérios de seus próprios Corpo, Fala e Mente; destemidos, derrubam as árvores podres e arrancam os galhos doentes desta nação América, deitando seus restos ao fogo.

Furioso, mas calmo. Austero, mas Cômico. Smokey, o Urso iluminará aqueles que o ajudem; mas aqueles que o impeçam ou maldigam…

ELE OS ANIQUILARÁ.

Eis seu grande Mantra:

Namah samanta vajranam chanda maharoshana Sphataya hum traka ham mam

“DEDICO-ME AO DIAMANTE UNIVERSAL

QUE A RAIVA IRACUNDA SEJA DESTRUÍDA”

E ele protegerá aqueles que amam as matas e rios, Deuses e animais, mendigos e malucos, prisioneiros e doentes, músicos, mulheres brincalhonas e crianças auspiciosas:

E se alguém for ameaçado por publicidade, poluição do ar, televisão ou pela polícia, deverá entoar a PRECE DE GUERRA DO URSO SMOKEY:

PORRADA NELES

CACETE NELES

PORRADA NELES

CACETE NELES

E Smokey, o Urso certamente surgirá para vencer o inimigo com sua pá-vajra.

Ora, os que recitarem este sutra e tentarem praticá-lo acumularão méritos tão incontáveis quanto as areias do Arizona e de Nevada.

Ajudarão a salvar o planeta Terra do vazamento de petróleo que o assola.

Entrarão na era da harmonia entre homem e natureza.

Conquistarão o amor dócil e o cuidado de homens, mulheres e feras.

Terão sempre amoras para comer e um lugar ao sol, sob um pinheiro, onde sentar.

E, NO FINAL, ATINGIRÃO A SUPREMA E PERFEITA ILUMINAÇÃO

… assim ouvi…

Reprodução autorizada, eternamente gratuita

 


Escrevi o “Sutra de Smokey, o Urso” na primavera de 1969, na época em que o jovem movimento ambientalista vinha tentando frear a expansão da energia nuclear. Precisávamos de algo forte, uma imagem vital para nos ajudar, e foi assim que nasceu “Smokey”. O meu Smokey é um dharmapala, um protetor do dharma, e o fiz inspirado na figura japonesa de Fudo. No budismo esotérico, Fudo é o padroeiro dos ascetas das montanhas e dos yogins, e seu sadhana é praticado até hoje no Nepal e em partes do Tibet, além do Japão. Em sânscrito, chama-se Achala, que significa “imóvel, inagitável”, que também é o significado de fudo. Tem uma aparência feroz e costuma ser representado envolto por chamas, mais um elemento para provar que Smokey, o mascote do Serviço Florestal, é sua encarnação norte-americana. Podemos ver Fudo como um bodhisattva motoqueiro. Ele vai até o inferno para salvar o povo, não importando se querem ser salvos ou não. É um bodhisattva bravio.

A mensagem básica do sutra é a de que temos uma responsabilidade sagrada em proteger toda a vida. O primeiro e mais importante preceito ético do budismo é ahimsa, que quer dizer não-violência contra nenhum ser. E isso não se limita aos seres humanos. A inclinação do budismo, por isso, é ecológica desde o começo. Nossa responsabilidade é proteger a vida até da menorzíssima criatura, proteger nossa comunidade, manter nossa própria prática e honrar a impermanência, tudo ao mesmo tempo.

Por minha leitura arquetípica de Fudo, ele também é o Grande Urso dos cultos ursinos do Paleolítico Superior (não dos cultos polares, não). Por isso, no sutra, enxergo Smokey ao mesmo tempo como a encarnação do ancestral urso pardo do norte e como Fudo. Mas é claro que o Serviço Florestal não sabia de nada disso, dessas associações e reverberações, e essa era parte da graça: virar a imagética do sistema de pernas para o ar.

Gary Snyder, 2005
[reeditado, com a nota explicativa, em Inquiring Minds, edição de outono (Vol. 22, N. 1, 2005). Tradução de Leandro Durazzo]


Sobre o tradutor

Leandro Durazzo é poeta, antropólogo, tradutor e professor da UFRN. Autor de Tripitaka (2014), Histórias do Córrego Grande (2015), Cantos de Natal (2017) e Mar de viração (2018), integrou a antologia de poesia contemporânea É agora como nunca, organizada por Adriana Calcanhotto (2017). Trabalha com povos indígenas e religiões orientais, nem sempre ao mesmo tempo, e tem no bodhisattva Gary Snyder um exemplo de prática, sabença e ação no mundo.


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