O mau selvagem de Oswald
“Anárquico”, “iconoclasta”, o gênio difícil do escritor paulistano Oswald de Andrade continua intrigando críticos e encantando leitores na mesma medida em que encarna grande parte do pensamento revolucionário do século 20 nas artes e na cultura.
A vida do modernista é tema da nova biografia do jornalista e escritor Lira Neto, que deverá ser lançada em fevereiro de 2025, pela Companhia das Letras, com o título Oswald de Andrade: Mau selvagem.
Lira recebeu a Cult na tarde da última quinta-feira, 23, em seu escritório em São Paulo, para falar sobre a vida do antropófago que provocou a intelectualidade brasileira com seus manifestos modernistas e terminou no ostracismo, com seus livros fora de catálogo.
Segundo Lira, nessa biografia, “o leitor verá Oswald de Andrade com suas contradições sendo postas à luz”. E não são poucas contradições as do escritor paulista, frequentemente referido como uma das figuras mais controversas da literatura brasileira.
Dono de um humor ácido que causou o rompimento com grande parte dos intelectuais de sua geração, como Mário de Andrade, Oswald legou à cultura brasileira uma obra extensa que rasurou todos os limites entre a arte popular e erudita e deixou marcas que vão muito além da Semana de Arte Moderna de 22, que Lira define como “um episódio quase marginal na trajetória do escritor”.
Com o bom humor característico, Lira começa esclarecendo: “É ‘Oswáld’ que se pronuncia”, com a segunda sílaba acentuada, como defendia Antonio Candido em um famoso artigo publicado em 1982 na Folha de S.Paulo.
Como foi a inserção de Oswald nos meios culturais e literários?
Oswald de Andrade foi um privilegiado. Seu pai fez fortuna no mercado imobiliário quando São Paulo passava por um processo vertiginoso de desenvolvimento. Com isso, teve condições de financiar o início da carreira do filho no jornalismo. Mesmo antes de começarem as aulas na Faculdade de Direito, porta de entrada para o mundo literário, ele já conseguiu um emprego como repórter no Diário Popular.
Chegou a escrever algumas poucas matérias assinadas com o pseudônimo de Joswald (uma fusão de seus dois pré-nomes, José Oswald), mas logo passou a redigir uma coluna teatral, por meio da qual começou a ser cortejado no meio cultural.
Essa coluna não indicava quem um dia viria a ser o Oswald de Andrade que conhecemos, pois era muito convencional e congratulatória. Depois, seu pai criou e financiou uma revista para ele chamada O Pirralho, na qual ele começou a se destacar como editor-chefe. Não à toa, a revista tinha esse nome: ele era muito jovem, com pouco mais de 20 anos.
O jornal era muito bem feito do ponto de vista gráfico – com muitas ilustrações assinadas pelo caricaturista Voltolino, que elaborou a identidade visual da publicação –, e muito satírico e incômodo aos poderosos, mesmo estando alinhado ao Partido Republicano da época, que estava no poder, e ao qual o pai de Oswald pertencia. Era quase um diário oficial do poder.
Do ponto de vista literário, ao mesmo tempo que O Pirralho criticava a Academia Paulista de Letras e os grandes medalhões da cultura paulistana, era muito elogioso a Olavo Bilac e Coelho Neto, que Oswald criticaria mais tarde. Os dois eram tratados nas páginas de O Pirralho como as grandes unanimidades nacionais. Nesse momento, Oswaldo não tinha nada de moderno. Portanto, sua inserção se dá por esse caminho pré-modernista, quando sua revista publicava, inclusive, poemas simbolistas, parnasianos e até românticos.
De onde vem essa iconoclastia do autor?
Oswald criou uma mitologia em torno de si próprio. Ele dizia ter escrito “o primeiro poema modernista da história da literatura brasileira”, sobre um tuberculoso andando num bonde, que unia a tuberculose – o mal dos românticos do século 19 – ao bonde elétrico – símbolo da modernidade. Esse poema não sobreviveu, se é que ele foi escrito. É muito pouco provável que tenha de fato sido composto antes de Oswald ir à Europa em 1912, financiado pelo pai.
Seu pai queria fazê-lo sucessor dos negócios imobiliários da família e considerava essa história de literatura um hobby. A mãe, que tinha como parente o escritor Inglês de Sousa, tinha uma ideia de literatura beletrista e jamais pensou que o Oswald fosse adotar uma postura anárquica e iconoclástica. O objetivo da família com sua viagem era fazê-lo conhecer o mundo e adquirir cultura para, quando voltar, tomar conta dos negócios.
As cartas que Oswald troca com os pais nesse período são muito interessantes, pois mostram que ele não atentou para a revolução que as vanguardas já estavam pondo em movimento, principalmente em Paris. Ele passa batido por Guillaume Apollinaire e Picasso, por exemplo. Estava muito mais a fim de se divertir. Tanto é que continua escrevendo de um jeito muito convencional.
A guinada de Oswald rumo ao modernismo é um grande enigma, e há tentativas de explicação por parte da crítica. Onde ele descobriu essa nova forma de escrever? É interessante perceber que, quando ele aluga a sua garçonnière, na rua Líbero Badaró, e passa a publicar o diário O perfeito cozinheiro das almas deste mundo, ele começa a soltar a sua escrita, com a convivência meio anárquica dos intelectuais jovens que frequentavam o local.
A presença irradiante e centralizadora de uma moça, chamada Maria de Lourdes Castro Pontes, conhecida como Deisi ou Miss Cyclone, aparece constantemente naquele diário, escrito de forma muito impetuosa e impulsiva, em que os frequentadores da garçonière faziam piadas e gozavam de tudo. Todos eles cortejavam Deisi. É nesse contexto que uma linguagem começa a se desenvolver, principalmente com o processo de reescrita de Memórias sentimentais de João Miramar, que começou a ser publicado em O Pirralho com uma linguagem absolutamente convencional. Depois ele começa a ser desconstruído, como uma decomposição cubista.
A presença de Deisi na garçonière é uma das possíveis explicações para essa virada da linguagem de Oswald. Ela foi um personagem bastante significativo do ponto de vista da compreensão da mudança, não só intelectual, mas literária, de Oswald.
Ela era poeta também?
Deisi era uma moça normalista de 18 anos que tinha um talento inegável para a escrita. Em seus diários, suas cartas, escrevia muito bem. Não diria que era poeta ou escritora, mas era um talento em potencial, não tivesse morrido tão cedo.
Oswald era um homem muito ciumento. E Deisi era absolutamente libertária, inclusive em suas relações pessoais. Tanto que, na garçonière, flertava com todos e todos flertavam com ela. Quando Oswald recebeu a notícia de que ela estava grávida, teve dúvidas se o filho era dele. Ela fez um aborto que gerou complicações e acabou morrendo. Mas a presença dela, para mim, é fundamental para a compreensão desse momento em que o Oswald de Andrade começa a se tornar Oswald de Andrade.
Como a transgressão de Oswald foi recebida pela crítica à época?
Em um primeiro momento, Oswald é absolutamente incompreendido pela crítica. Seus primeiros textos de caráter mais transgressor foram ridicularizados, vistos não como literatura, mas como uma brincadeira de mau gosto. A crítica teve dificuldades de aceitar essa transformação. Quanto mais a crítica o espicaçava, mais ele gostava e mais isso incentivava maiores ousadias. O personagem do Oswald é bem interessante nesse sentido: ele era um provocador. A forma que ele tinha de reagir às críticas era radicalizando ainda mais o seu texto.
Que imagem o leitor poderá formar de Oswald ao ler essa biografia?
Não escrevo para prestar homenagens aos biografados, nem para santificá-los, muito menos para fechar os olhos às suas contradições humanas. No caso de Oswald, isso é ainda mais evidente, porque se trata de um homem genial, mas com comportamentos que podem assustar o leitor. Oswald não foi pouco convencional apenas na arte, mas na própria vida. Para os padrões da época, nem se fala.
Seu humor, por vezes, atingia um nível de violência inaceitável para quem era alvo. O leitor vai ver Oswald de Andrade com suas contradições sendo postas à luz. Ele vai se apaixonar e se chocar ao mesmo tempo, como foi para mim o processo de escrita dessa biografia.
Zé Celso declarava que sua geração apanharia a bola que Oswald lançara com sua consciência cruel e antifestiva da realidade nacional e dos difíceis caminhos para revolucioná-la. Como você considera que a intelectualidade artística brasileira absorveu o legado de Oswald?
Oswald estava tão à frente de seu tempo que até hoje seu tempo não chegou. Ele só começou a ser recuperado mais de dez anos após sua morte. Zé Celso foi um dos responsáveis por essa ressurreição. Ele aproveitou o que havia de mais visceral e indomável em sua escrita ao retirar do esquecimento O rei da vela.
Precisou haver um Zé Celso para compreender o alcance da revolução do teatro oswaldiano, assim como precisou haver na plateia dessa encenação um jovem compositor baiano, com 20 anos à época, que assistiu àquilo e disse: “É isso que eu quero fazer”.
A ideia da antropofagia encantou Zé Celso, Caetano Veloso e o tropicalismo. A antropofagia rasura de uma vez por todas os limites entre arte popular e arte erudita, entre cultura de massa e cultura clássica, entre o nacional e o universal, entre o individual e o coletivo. Todas essas fronteiras foram implodidas. O próprio Caetano revela em Verdade tropical que Oswald foi uma das referências para a concepção da tropicália.
Quando se fala de Oswald de Andrade, muitos só se lembram da Semana de Arte Moderna de 22, que foi importantíssima, mas foi um episódio quase marginal na trajetória de Oswald, que deu contribuições muito mais significativas do que o próprio modernismo da primeira hora.
Como era Oswald com as mulheres?
Essa era uma das inúmeras contradições de Oswald. Ao mesmo tempo que, de forma revolucionária e pioneira, preconizava a utopia do matriarcado e o pensamento decolonial, ele era um homem machista, que poderia ser definido hoje como tóxico. Era incapaz de exercer a monogamia. Contra a moral burguesa, em todos os seus relacionamentos, ele foi pouco convencional. Isso causou ruídos e machucou pessoas. Todos os seus relacionamentos são marcados por mulheres muito intensas e fortes, mas que estavam em uma posição de subalternidade, com exceção de Tarsila e Pagu.
Como conciliar a figura modernista e arejada do escritor com os episódios sombrios de sua biografia?
Ele era um ser humano. O artista não necessariamente é um ser humano imaculado. Muito pelo contrário. Oswald detestava o puritanismo e as convenções morais. Ele queria romper com elas e pagou o preço por isso. Brigou com todos. Tentar avaliar a obra de um indivíduo a partir de seu comportamento pessoal não me parece um bom critério de avaliação. É esse “mau selvagem” que o livro vai mostrar sem adotar tons menos intensos.
Pode explicar a que se deveu a ruptura tão severa entre Mário e Oswald?
Oswald tinha o costume de perder o amigo sem perder a piada. Mário e Oswald – dois sujeitos tão diferentes entre si, mas tão complementares – viviam às turras desde sempre. Mário, mais apolíneo e intelectual; Oswald, dionisíaco, demolidor, fez piadas de mau gosto, que desgostaram Mário, principalmente no período da Revista de Antropofagia, quando Oswald começou a detonar todos os companheiros do primeiro modernismo.
Ele atacou Mário, que não engoliu. Na correspondência de Mário com Manuel Bandeira, isso fica muito claro. A cada ataque de Oswald, Mário se queixava, ao mesmo tempo que reconhecia a genialidade do antigo colega. Oswald tentou várias vezes reatar a amizade, mas não teve êxito, e Mário morreu quando Oswald estava viajando. Ele soube pelo jornal da morte e sepultamento do antigo amigo. Segundo testemunhas, ficou bastante abalado. Não digo arrependido, porque o Oswald não era um homem dado a arrependimentos.
Como foi a aproximação e o rompimento de Oswald com o comunismo? Ele parece não ter o perfil de um militante convencional…
A aproximação de Oswald com a militância comunista se dá a partir da década de 1930, quando o crash da Bolsa de Nova York teve um impacto muito expressivo na economia brasileira, principalmente com os cafeicultores. Ele estava com Tarsila do Amaral, que vinha de uma família cafeeira. Além disso, ele tinha uma fortuna em imóveis. Quando o mercado imobiliário desabou, ele se viu correndo dos agiotas e, pela primeira vez na vida, percebeu que não era mais rico. Nessa circunstância ele se aproxima de Pagu, que era militante.
Os dois inauguraram juntos o jornal O Homem do Povo, uma publicação panfletária. Ele, então, passa a negar todo o seu passado de modernista: no prefácio de Serafim ponta grande, afirmou que nunca passou de um palhaço da burguesia, que tomou consciência da exploração capitalista. Ele aparece em vários documentos dessa época como financiador do partido, apesar de muita gente do partido não levá-lo a sério.
Ele é preso várias vezes por sua militância e, perseguido, se refugia em Paquetá, no Rio de Janeiro, e no interior de São Paulo. É um momento muito difícil para Oswald e Pagu. E o Partido Comunista estava sob a orientação do chamado “obreirismo”, ou seja, a linha que dizia que os intelectuais tinham que renunciar à vida pequeno-burguesa e adotar a vida de proletário. Não menosprezo, como alguns gostam de fazer, a militância de Oswald, como se fosse insincera ou circunstancial. Havia ali uma confluência de fatores:
Ele já não era mais aceito nos círculos burgueses; já não era mais um burguês, talvez um burguês falido. Pagu era uma mulher forte, que o influenciou muito, mas que acabou abandonada por ele. Quando Pagu consegue fugir para Moscou, entre os dois se estabelece o acordo de que ele tentaria vender algum terreno e, com o dinheiro, iria ao encontro dela junto ao filho do casal. Oswald nunca foi, pois logo estava envolvido com outros casos.
Essa aproximação com o marxismo se reflete em sua obra. O rei da vela é escrito nesse contexto, assim como outros textos teatrais, como O homem e o cavalo. Em O rei da vela, Oswald destila todo o ódio que ele tinha aos agiotas, aos capitalistas e ao mundo burguês de uma forma geral.
Muito disso parece vir de uma visão privilegiada do autor, com seu passado burguês…
Sim. No caso de O rei da vela, por exemplo, os cenários descritos nas peças são os que ele frequentava como devedor dos agiotas. Os escritórios de Abelardo, o grande agiota, são repletos de metáforas que indicam que Oswald sabia muito bem do que estava falando.
Existe também a questão da cidade, que é uma distopia. A crise pela qual o mundo e o país passavam fazia com que ninguém tivesse mais dinheiro para pagar a conta de luz. As empresas de eletricidade faliram e a cidade ficou às escuras. É um texto forte e, ao mesmo tempo, muito engraçado. A genialidade de Oswald ao tratar de coisas muito sérias sempre de forma muito sarcástica é uma das características fundamentais de sua obra: o riso como arma.
E o rompimento com o partido, como se deu?
Ele começa a perceber que o partido cobrava dos militantes algo que ele jamais daria: a panfletarização de sua escrita. Oswaldo sempre foi experimentalista. Ele jamais achou que precisava escrever para o povo entender. Ele acreditava que uma arte revolucionária precisava ser necessariamente revolucionária também do ponto de vista formal. A arte tinha que estar engajada à transformação da linguagem. Os companheiros de partido não aceitavam isso. Quando ele percebeu que a busca de uma participação cada vez mais forte do operariado estava expulsando os intelectuais do partido, ele se afastou ainda mais.
O personagem fundamental para entender essa ruptura é Jorge Amado: os dois eram muito amigos, mas essa amizade se decompõe na medida em que Oswaldo não se submete à ortodoxia do marxismo.Quando Pablo Neruda vem ao Brasil, Jorge Amado se encarrega de definir quem vai se encontrar com o escritor. Ele veta o nome do Antonio Candido, que não era “suficientemente de esquerda”, causando o descontentamento de Oswald.
Nesse momento, o Brasil entrou no Estado Novo. Oswald, rompido com a esquerda e perseguido pela direita, fica no limbo. Aí tem início o ostracismo do qual Oswald será vítima durante o resto de sua vida. É um momento muito trágico da biografia, quando ele se vê sem amigos e seus livros saem de catálogo.
Acha que há algum ponto que ainda não recebeu atenção devida na obra oswaldiana?
A antropofagia precisa ser mais estudada. Nos estudos culturais, a proposta oswaldiana é moderníssima e continua sendo uma chave para entender determinadas questões. Em vez de aprofundar a diferença em relação ao outro, o que ele propõe é digerir o outro. Ao digerir o outro eu não deixo de ser eu, mas sou eu e o outro. Quanto mais diferente de mim, mais o outro me interessa.
Em um momento em que as oposições parecem inconciliáveis, Oswald dá uma grande contribuição sobre o exercício da alteridade. Enquanto o Brasil discutia a questão da identidade nacional, Oswald propunha apagar as fronteiras entre o nacional e o universal, o popular e o erudito. Isso é muito revolucionário até hoje.
Antecipando o pensamento decolonial, ele propôs sermos nacionais e universais ao mesmo tempo. Ele tinha como referência não o bom selvagem – o índio de José de Alencar, que se junta ao colonizador. Ele queria o mau selvagem, aquele que mastiga, deglute e digere o colonizador. Daí o título do livro: Oswald de Andrade: Mau selvagem.
Como escrever uma boa biografia?
Em A arte da biografia (Companhia das Letras), elenco alguns critérios básicos: o primeiro é não santificar o seu biografado; o segundo é não tentar compreender o passado com as lentes de hoje. Não que a história não seja as perguntas que o presente faz ao passado. Por isso jamais existirá uma biografia definitiva: a cada geração, as perguntas mudam. O terceiro critério é saber que sempre se biografa uma época. É preciso mostrar como o indivíduo e o seu tempo se retroalimentam e como o indivíduo se insere em um determinado contexto histórico.