O jornalismo e a vulgar arte do insulto presidencial

O jornalismo e a vulgar arte do insulto presidencial
O presidente Jair Bolsonaro concede entrevista coletiva em Santiago, Chile (Foto: Marcos Corrêa/Agência Brasil)

 

Jair Bolsonaro começou 2020 fazendo a única coisa para a qual tem realmente talento, preparo e competência que é dar declarações que visam ofender ou desqualificar alguém ou alguma coisa. Como já nos acostumamos a ver, o presidente da República é uma fonte inesgotável de desacatos. Em público, porque ofensa boa é aquela que se faz à vista de todos, que escandaliza e choca, e sobre a qual todos falam. Às vezes, as declarações presidenciais apenas deixam escapar o seu incontrolável racismo ou preconceito, como na recente live em que decretou que todo cearense “é cabeçudo”. Noutras vezes, a necessidade de destratar um interlocutor, por lhe ter feito uma pergunta desconfortável, por exemplo, ou de insultar alguém que lhe dirigiu crítica ou reparo, torna patente o perturbador sistema de valores e crenças do sujeito que ocupa o cargo máximo da Nação.

Já aconteceu inúmeras vezes e teve muitos alvos, mas é evidente uma preferência especial do presidente por agredir jornalistas e o próprio jornalismo. O “modus operandi” é sempre o mesmo: se um repórter lhe dirige uma pergunta de que não gosta a ofensa é certa e imediata. O teatro das grosserias presidenciais também costuma ser o mesmo. Em geral, entrevistas dadas a jornalistas cercados pela claque dos apoiadores do mandatário. A arena mais frequente costuma ser a saída do Palácio da Alvorada, em Brasília, pela manhã. O presidente bate, o jornalismo apanha, a camarilha bolsonarista vibra. Eis o rito praticado. A pergunta vem, o presidente não gosta dela e tome-lhe patada no jornalista, enquanto a pandilha aplaude e ri-se.

No final de janeiro, isto já havia acontecido, três vezes em um mesmo dia, quando o caso de corrupção envolvendo o senador Flávio Bolsonaro ocupava os jornais do dia. Para o primeiro jornalista que lhe perguntou sobre se ele ainda pretendia mudar a embaixada brasileira para Jerusalém, a resposta foi o deboche de um homofóbico contumaz. “E você pretende se casar comigo um dia? Não seja preconceituoso. Você não gosta dos olhos azuis? Isso é homofobia, vou te processar por homofobia”, gritou o presidente. A malta comemorou. O segundo repórter indagou sobre Flávio e a reação de Bolsonaro foi bem abaixo do nível da ofensa escolar infantil. “Você tem uma cara de homossexual terrível”, afirmou o chefe de governo em momento de extrema sutileza. E continuou, com lógica cristalina: “Nem por isso te acusam de homossexual, se bem que não é crime ser homossexual”. Isso, já aos berros. Como se não bastasse, para o terceiro profissional que lhe perguntou se existiam comprovantes do pretenso empréstimo feito a Fabrício Queiroz, foi reservada a mais infame e previsível das ofensas de rua, aquela em que se coloca a mãe no meio: “Ô, rapaz”, redarguiu o chefe de Estado, “pergunta para a tua mãe o comprovante que ela deu para o teu pai, tá certo? ”.

Pois é, meus amigos, pensem no nível mais baixo de agressão verbal vulgar, aquele que envolve xingar a mãe e afirmar que o seu interlocutor é homossexual, coisa que nenhum adulto decente faria na frente da própria mãe ou filhos, e vocês verão o presidente do Brasil fazer tal coisa, sem o menor prurido, diante de câmeras e microfones para que tal ato seja mostrada nos telejornais da noite para todos os filhos e mães do Brasil inteiro. Eis o presidente da família conservadora brasileira em mais um dia normal de trabalho.

De lá para cá, Bolsonaro já chamou muita gente de muita coisa. Greta Thunberg foi chamada de pirralha, Paulo Freire, de energúmeno, Lula foi chamado de canalha e Nando Moura, de covarde. Tudo isso em vinte e poucos dias.

Mas o ano começou e voltaram as entrevistas na saída do Alvorada. O gatilho para as declarações desta semana foi uma pergunta corriqueira sobre se Bolsonaro havia já conversado com os presidentes do Senado e da Câmara sobre o cronograma de votação das reformas administrativa e tributária. Recebeu de volta uma declaração, desta vez não sobre o jornalista, mas sobre o jornalismo. Disse o presidente: “Quem não lê jornal não está informado, e quem lê está desinformado. Tem que mudar isso. Vocês são uma espécie em extinção. Acho que vou botar os jornalistas do Brasil vinculados ao Ibama. Vocês são uma raça em extinção”. E continuou: “Cada vez mais gente não confia em vocês. E eu quero que vocês sejam, realmente, uma força no Brasil. É importante a informação, e não a desinformação ou o fake news. Perguntar aqui, por exemplo, eu cancelei todos os jornais no Planalto, todos, todos, não recebo mais nem jornal, nem revista. Quem quiser, que vá comprar. Porque envenena a gente ler jornal, a gente fica envenenado”. Vejam só.

Parece uma declaração serena de um observador arguto sobre as peripécias que afligem o jornalismo em nossos dias, mas o presidente nem é arguto nem observador e nem muito menos sereno. Era mais um dos seus ataques. O que Bolsonaro está fazendo aqui é trocar a desfeita de jornalistas no varejo para uma investida contra o jornalismo no atacado. O problema não é este ou aquele jornalista fazendo perguntas que o presidente não gostaria que lhe fossem feitas, a questão é o jornalismo representando o presidente de um modo que ele não gostaria de ser apresentado. Pois para Bolsonaro, como para Trump e outros personagens da extrema-direita com poder político neste momento no mundo, a definição de bom jornalismo e informação correta é simples: jornalismo bom é jornalismo que está do meu lado, defendendo a minha pauta e pontos de vista, dando notícias positivas sobre a minha administração enquanto ataca os meus adversários e, sobretudo, o jornalismo que me retrata sob uma luz favorável. O contrário disso é desinformação ou, como diz Trump e os bolsonaristas brasileiros, é fake news.

Pois é isso mesmo: o candidato cuja campanha mais produziu fake news na história brasileira, o presidente que mais endossa e, com isso, dissemina fake news em nível mundial, o primeiro escalão de governo mais dedicado a produzir e a disseminar informação falsa, o presidente cujos filhos alegadamente pilotam redes digitais de produção de notícias fraudulentas e de assédio aos adversários e dissidentes do bolsonarismo, pois é justamente esta gente a dizer que fake news é o que produz o jornalismo mais ou menos independente que temos no Brasil. Não o que eles fazem.

De fato, nesses tempos bolsonaristas, há claramente um novo Guia de Carreiras. Em baixa, como espécies em extinção, não por acaso, estão jornalistas, cientistas, professores, juízes de cortes superiores, artistas, realizadores e produtores culturais, membros de ONGs, profissões relacionadas à proteção ambiental e aos direitos humanos, assistentes sociais e intelectuais em geral. Enquanto em alta, como profissões de futuro, temos produtor de conteúdo falso para mídias digitais, disseminador de fake news, “comentarista” político de site de “notícias” de direita, mobilizador e recrutador de start up de ódio político online, “economista” pauloguedista fornecedor de sonoras ao JN e à Globo News, miliciano, profissões armadas, digital influencer de extrema-direita, guru político ultraconservador, argumentista e roteirista de teorias da conspiração, especialista em planejamento e operações de assédios e linchamentos digitais, designers de difamações e insultos a minorias e a adversários do governo, operadores de deep web misóginas, gerente de equipe humanos-máquinas e codificadores de bots bolsonaristas, estrategista e gerente operacional de guerra cultural, organizador de grupos de WhatsApp, pastores de extrema-direita, véios da Havan e fabricantes de abrigos nucleares. Ah, e roteiristas de insultos ao jornalismo também.

WILSON GOMES é doutor em Filosofia, professor titular da Faculdade de Comunicação da UFBA e autor de A democracia no mundo digital: história, problemas e temas (Edições Sesc SP)


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