O inquérito

O inquérito

por Aleksandr Kuprin

O subtenente Kozlovski traçava, pensativo, sobre o oleado branco da mesa o delicado perfil de um rosto feminino, rodeado por uma cabeleira armada e com uma gola à la Mary Stuart.

A disposição oficial do comando que jazia diante dele ordenava expressamente que ele conduzisse uma rápida investigação a respeito do furto de um par de botas e de trinta e sete copeques em dinheiro, cometido pelo soldado raso Mukhamet Baigúzin, de dentro de um baú trancado pertencente ao jovem soldado Venedikt Essipaka. As testemunhas reunidas para o caso eram: o suboficial Ostaptchuk e o cabo Piskun, além do soldado raso Kutcherbáiev, convocado como tradutor. Estavam reunidos na cozinha do quartel, de onde eram encaminhados um por um para a sala do subtenente por um ordenança, cujo rosto mantinha uma expressão digna do caso – grave e até um pouco arrogante.

O primeiro a entrar foi o suboficial Tarás Gavrílovitch Ostaptchuk, fazendo-se notar de imediato por meio de uma tosse respeitosa, com o quepe cobrindo-lhe a boca. Tarás Gavrílovitch – um “leão” em matéria de regulamento, autoridade inabalável para todo o alto-comando – gozava de ampla notoriedade no regimento. Sob sua experiente direção, a companhia passava com êxito por revistas, paradas e toda sorte de inspeção, enquanto o comandante da companhia passava dia e noite pensando em medidas contra os mandados executivos que, vez por outra, os incontáveis credores dos agiotas do regimento apresentavam a ele na chancelaria do quartel.

O suboficial tinha a aparência de um rapagão pequeno porém forte, propenso a uma sadia obesidade, de rosto quadrado e vermelho, cujos olhos estreitos observavam de maneira penetrante e perscrutadora. Tarás Gavrílovitch era casado e no tempo livre que passava no acampamento após a chamada noturna bebia chá com leite e pãezinhos quentes, sentado de roupão listrado em frente a sua barraca. Adorava conversar sobre política com os voluntários de sua companhia, atendo-se sempre a sua opinião particular e, de vez em quando, designando serviços inúteis aos que dele discordavam.

– Como… você… se chama? – perguntou Kozlovski, inseguro.

Ele ainda não completara um ano de serviço no regimento e sempre gaguejava quando tinha de tratar de maneira tão informal um indivíduo tão eminente quanto Tarás Gavrílovitch, de cujo peito pendia uma grande medalha de prata, ganha por serviços prestados, e em cuja manga esquerda estavam bordadas faixas douradas e prateadas.

O experiente suboficial apreciou, delicada e lealmente, o desconforto do jovem oficial e, um tanto lisonjeado, enunciou seu nome completo.

– Conte-me… Conte-me… Quem cometeu esse roubo? Um par de botas, parece, não é? E sabe Deus o que mais!

Acrescentara a imprecação para dar pelo menos um pouco de segurança ao seu tom. O suboficial ouvia com ar de atenção redobrada, esticando o pescoço para a frente. Começou seu testemunho com um inevitável “pois bem”.

– Pois bem, vossa senhoria, eu estava sentado copiando a ordem do dia. Subitamente o soldado que estava de guarda chegou correndo, esse aí mesmo, o tal Piskun, e relatou: “Senhor suboficial, as coisas vão mal na companhia”. – “Como assim ‘vão mal’?” – “Mal mesmo – disse. – Roubaram as botas de um jovem soldado e também trinta e sete copeques.” – “E por que ele não trancou seu baú?”, perguntei. Isso porque cada um deles tem que colocar um cadeado em seu bauzinho, vossa senhoria. – “Aí é que está – disse ele. – Ele trancou, mas arrombaram.”

– “Quem arrombou? Quem ousou fazer isso? Que absurdo é esse?” – “Não sei dizer, senhor suboficial.” Eu fui então até o comandante da companhia e declarei: foi assim, vossa excelência, que aconteceu isso, e no momento eu não estava presente na companhia porque tinha ido até o armeiro.

– Isso é tudo que você sabe?

– Precisamente.

– Bem, e esse soldado Baigúzin, é um bom soldado? Já haviam notado antes alguma coisa nele?

Tarás Gavrílovitch projetou o queixo para a frente, dando a impressão de que a gola lhe cortava o pescoço.

– Na verdade, sim, no ano passado ele esteve foragido por três semanas. Considero esses tártaros uma nação completamente parva. Eles rezam para a lua mas não entendem nada do que é nosso. Eu considero, vossa senhoria, que não é mais possível viver no mesmo país que esses tártaros…

Tarás Gavrílovitch adorava conversar com homens instruídos. Kozlovski ouvia em silêncio, mordiscando a ponta da caneta.

Devido a sua falta de experiência no serviço, não conseguiu criar coragem, nem encontrar o devido tom de severidade para abordar o polido suboficial.

Finalmente, gaguejando, ele indagou, apenas para dizer alguma coisa e imediatamente sentindo que Tarás Gavrílovitch entenderia a inutilidade da pergunta:

– Bem, e o que farão agora com esse Baigúzin?

Tarás Gavrílovitch respondeu num tom bastante benévolo:

– É de se presumir, vossa senhoria, que Baigúzin será açoitado. Porque, se ele não tivesse fugido no ano passado, aí o assunto seria diferente, mas agora eu acredito que ele sem dúvida será açoitado. Pois ele já foi punido antes.

Kozlovski leu o inquérito e o entregou para que ele assinasse. Tarás Gavrílovitch pronta e cuidadosamente escreveu sua patente, seu nome, patronímico e sobrenome, depois releu o que estava escrito, pensou um pouco e, fazendo uma inesperada garatuja sobre a assinatura, olhou de maneira astuta mas amigável para o oficial.

Positivo, negativo

Depois entrou o cabo Piskun. Ele ainda não havia passado pela avaliação do grau de competência do alto-comando e por isso arregalava igualmente os olhos para todos, tentando falar “em bom som, sem hesitar e sempre com a verdade”. Com isso, ao perceber na pergunta da chefia um indício de que a resposta deveria ser afirmativa, gritava “positivo”; caso contrário, “negativo”.

– Então você não sabe quem roubou as botas do jovem soldado Essipaka?

Piskun gritou que não sabia dizer.

– Mas pode ter sido o Baigúzin quem fez isso?

– Positivo, vossa senhoria! – gritou Piskun com uma voz animada e segura.

– E por que você acha isso?

– Não sei dizer, vossa senhoria.

– Então pode ser que você não o tenha visto roubando em absoluto.

– Negativo, não vi. Quando os soldados foram jantar, ele ficou o tempo todo de um lado para o outro por entre os beliches. Eu perguntei para ele: “Por que você está aí zanzando?”. E ele disse: “Estou procurando meu pão”.

– Quer dizer que o furto em si você não viu?

– Não vi, vossa senhoria.

– Mas será que não havia mais ninguém lá além do Baigúzin? E que talvez não tenha sido ele quem roubou?

– Positivo, vossa senhoria.

Com o cabo, Kozlovski sentia-se incomparavelmente mais desenvolto e por isso, chamando-o de burro, entregou-lhe o inquérito para assinar.

Piskun ajeitou-se por um tempo, fungando ruidosamente e colocando a pontinha da língua para fora por conta do esforço, e finalmente traçou com uma dificuldade colossal: cabu Spiridon Peskunou.

Agora Kozlovski entendia que o caso todo no final das contas se resumia ao testemunho inconsistente de Piskun, soldado da companhia que estava de guarda e viu Baigúzin zanzando na hora do jantar no quartel. No que se referia ao jovem soldado Essipaka, ele havia sido mandado ainda antes ao hospital porque estava com tracoma.

Olhar de macaco

Finalmente o ordenança mandou entrar os dois tártaros. Entraram timidamente, pisando de maneira excessivamente cuidadosa com suas botas, das quais a lama outonal soltava-se aos pedaços sobre o chão, e pararam bem junto à porta. Kozlovski ordenou que se aproximassem; eles deram mais três passos cada, levantando bastante as pernas.

– Sobrenomes! – disse a eles o oficial.

Kutcherbáiev enunciou clara e prontamente seu sobrenome, no qual havia todos aqueles ogli, girey e mirza.

Baigúzin permaneceu calado, olhando para o chão.

– Diga a ele em tártaro para falar seu sobrenome – ordenou Kozlovski ao tradutor.

Kutcherbáiev virou-se para o acusado e disse algo em tártaro num tom de aprovação.

Baigúzin levantou os olhos, lançou para o tradutor o mesmo olhar fixo e triste com que um macaquinho observa seu dono e disse rapidamente, numa voz rouca e indiferente:

– Mukhamet Baigúzin.

– É isso mesmo, vossa senhoria, Mukhamet Baigúzin – completou o tradutor.

– Pergunte se ele pegou as botas de Essipaka.

O subtenente outra vez convenceu-se de sua inexperiência e de sua falta de coragem, pois por um algum sentimento pudico e de delicadeza não conseguira pronunciar a palavra verdadeira, “roubou”.

Kutcherbáiev novamente virou-se e pôs-se a falar, dessa vez de maneira interrogativa e com um tom mais severo. Baigúzin ergueu os olhos para ele e de novo manteve-se calado. E a todas as perguntas respondeu com o mesmo silêncio entristecido.

– Não quer falar – explicou o tradutor.

O oficial levantou-se, caminhou pensativo de um lado para o outro da sala e perguntou:

– E ele não entende nada mesmo de francês?

– Entende, vossa senhoria. Ele até sabe falar. Ei! Kharandach, korali mingá,  – voltou-se ele novamente para Baigúzin, dizendo uma frase longa em tártaro, a que Baigúzin respondia apenas com seu olhar de macaco. – Negativo, vossa senhoria, não quer.

Fez-se um silêncio; o subtenente mais uma vez pôs-se a caminhar de um canto a outro e subitamente gritou enfurecido ao tradutor:

– Vá embora. Eu não preciso mais de você… Pode ir, pode ir!

Quando Kutcherbáiev saiu, Kozlovski caminhou por mais um bom tempo de um canto para outro de sua sala solitária. Nos momentos difíceis de sua vida, ele sempre corria para esse ambiente leal. A cada vez que passava por Baigúzin, ele o examinava, de lado, para não ser notado.

Aquele defensor da pátria era magro e pequeno como um menino de doze anos. Seu rosto infantil, moreno, de maçãs salientes e completamente imberbe assomava, ridícula e tristemente, de dentro de um capote cinza excessivamente grande, cujas mangas iam até os joelhos e dentro do qual Baigúzin parecia solto como um grão de ervilha numa vagem. Não se viam seus olhos, pois ele os mantinha baixos o tempo todo.

– Por que você não quer responder? – perguntou o subtenente, parando em frente ao soldado.

O tártaro continuou em silêncio, sem erguer os olhos.

– Mas por que é que você está calado, meu irmão? Estão dizendo que você roubou um par de botas. Mas será que foi você, afinal? Hein? Pode falar, você pegou ou não? Hein?

Sem esperar uma resposta, Kozlovski começou novamente a andar. A noite de outono chegava com rapidez, e a sala foi sendo tomada por tons monótonos e acinzentados. Os cantos mergulhavam na escuridão, e Kozlovski distinguia com dificuldade a figura abatida e imóvel diante da qual ele caminhava. O subtenente compreendeu que se ele continuasse a caminhar daquela maneira a noite inteira e a madrugada inteira, até a manhã, aquela abatida figura continuaria parada no mesmo lugar, igualmente imóvel e silenciosa. Esse pensamento lhe pareceu especialmente pesado e desagradável.

O relógio de parede com pesos soou rápida e abafadamente onze vezes, depois silvou e, como que refletindo, acrescentou mais três.

Kozlovski sentiu muita pena daquela criança vestida com um grande capote de soldado. Era, aliás, um sentimento incompreensível, estranho e completamente novo para Kozlovski, que não conseguia explicá-lo. Como se o culpado pela triste humilhação e pelo desamparo de Baigúzin fosse ninguém mais que o próprio subtenente Kozlovski. Em que consistia aquela culpa ele não seria capaz de responder, mas sentiria vergonha se naquele momento alguém o lembrasse de que ele era bem apessoado, de que dançava muito bem, de que era considerado bastante inteligente, de que assinava uma volumosa revista e de que era comprometido com uma linda dama.

Ficou tão escuro que Kozlovski já não divisava a figura do tártaro. Sobre a chaminé começaram a brincar longas e pálidas manchas projetadas pela recém-nascida lua.

– Escute, Baigúzin – começou Kozlovski numa voz sincera e amigável. – Deus é um só para todos nós. Para vocês é Alá, não é? Por isso é preciso dizer a verdade. Não? Porque se você não disser agora, vão descobrir depois de qualquer maneira, e aí será ainda pior. Se você confessar, aí já será diferente. Além disso, eu vou interceder por você. Dou a minha palavra de que falo sério, irei interceder por você. Entendeu? Uma só palavra: Alá.

Fez-se novamente silêncio na sala, e apenas o relógio trabalhava numa uniformidade persistente e enfadonha.

– Eu estou pedindo como homem, Baigúzin. Simplesmente como homem, não como chefe. Chefe iok. Entendeu? Você tem um pai? Hein? E uma inai, você tem? – acrescentou ele, lembrando por acaso que em tártaro “mãe” se diz inai.

O tártaro permaneceu calado. Kozlovski caminhou pela sala, puxou para cima o peso do relógio e depois, aproximando-se da janela, pôs-se a olhar com o coração entristecido para a fria escuridão da noite de outono.

Então, de repente, ele estremeceu ao ouvir atrás de si uma voz rouca e fina:

– Tenho inai.

Terna ligação

Kozlovski virou-se rapidamente. Nesse preciso momento pensou que ele também tinha uma inai, uma querida e velhinha inai, da qual ele estava separado por um espaço de mil e quinhentas verstas. Lembrou-se de que, na verdade, sem ela, estava completamente sozinho naquela região, onde falavam um russo macarrônico e onde ele sempre se sentiu um estranho; lembrou-se de seus cálidos, meigos e ternos cuidados; lembrou-se de que às vezes, levado por uma vida tumultuada, desordenada, ele se esquecia por meses de responder suas longas, minuciosas e ternas cartas, nas quais ela constantemente invocava-lhe a proteção da rainha celeste.

Entre o subtenente e o tártaro de repente surgiu uma sutil e terna ligação. Kozlovski aproximou-se decidido do soldado e colocou ambas as mãos sobre seus ombros.

– Escute, meu querido, diga a verdade, você roubou ou não roubou essas botas?

Baigúzin assoou o nariz e repetiu, como um eco:

– Roubei as botas.

– E os trinta e sete copeques, também roubou?

– Roubei os trinta e sete copeques.

O subtenente suspirou e pôs-se novamente a andar pela sala. Agora ele já se arrependia de ter começado a falar da inai e de ter induzido Baigúzin a confessar. Antes pelo menos não houvesse nenhuma prova direta.

“Bom, ele estava zanzando pelo quartel, e qual o problema de ficar zanzando? Ninguém poderia provar nada. E agora, por conta desse sentimento de dever, é necessário registrar a sua confissão. Mas oras, isso lá é dever? Ou talvez meu dever agora consista em não registrar essa confissão? Surgiu-lhe afinal no coração um bom sentimento, até mesmo de arrependimento, muito possivelmente. E ele como reincidente vai ser açoitado sem dúvida, sem dúvida. Isso ajuda em alguma coisa? Ele também tem uma inai. E além disso, o dever é um ‘conceito maleável’, como diria o nosso capitão Grebber. Mas e se ele for interrogado novamente? Eu não posso entrar num acordo com ele, ensiná-lo a enganar o comando. Mas para que diabo eu fui lembrar dessa coisa de inai! Ah, seu coitado, seu coitado! Eu acabei trazendo o mal a você com essa compaixão.”

Kozlovski mandou o tártaro dirigir-se ao quartel e voltar no dia seguinte, de manhã cedo. Até esse momento ele esperava ponderar todo o caso e chegar a alguma sábia decisão. A melhor saída ainda lhe parecia apelar para um dos comandantes mais amigáveis e explicar todos os pormenores.

Tarde da noite, já deitado em sua cama, perguntou a seu ordenança o que ele achava que fariam com Baigúzin.

– Sem dúvida será açoitado, vossa senhoria – respondeu o ordenança num tom de certeza. – E como não açoitá-lo sendo que ele roubou o último par de botas de um soldado? O soldado é um homem condenado por Deus… Onde já se viu roubar o último par de botas de um irmão? Diga-me, por favor…

Nasceu uma manhã clara e levemente gelada de outono. A grama, a terra, os tetos das casas: tudo estava coberto por uma fina camada de gelo. As árvores pareciam ter sido cuidadosamente empoadas.

O amplo pátio do quartel, cercado dos quatro lados por longas construções de madeira, fervilhava como um formigueiro com as silhuetas acinzentadas dos soldados.

No início, parecia que nesse grande rebuliço não havia nenhuma ordem, mas um olhar experiente já podia perceber que nos quatro cantos do pátio formavam-se quatro grupos e que aos poucos cada um deles transformava-se numa fila longa e regular.

As últimas pessoas que chegavam atrasadas corriam apressadamente, terminando de mastigar no caminho um pedaço de pão e abotoando a cinta com os cartuchos.

Após alguns minutos, as companhias, uma após a outra, passaram retinindo suas armas, e uma após a outra caminharam até o centro do pátio, onde pararam com o rosto voltado para dentro, formando um quadrilátero regular, no meio do qual restou uma pequena área de aproximadamente quarenta passos de lado.

Um pequeno grupo de oficiais reunia-se ao lado, ao redor do comandante do batalhão. O tema da conversa era o soldado raso Baigúzin, sobre o qual seria levada a cabo a execução designada pelo tribunal do regimento.

A conversa era comandada por um imenso oficial ruivo, vestido num grosso capote militar de feltro com gola de pele de carneiro. Esse capote tinha sua própria história, e era conhecido no regimento por dois nomes: o sobretudo da guarda e a capa da vovó. Ninguém porém o chamava assim diante de seu dono, pois todos temiam sua língua comprida e sua boca suja. Ele falava, como sempre, de maneira grosseira, com pronúncia ucraniana, com largos gestos que nunca acompanhavam o assunto da conversa e com aquelas construções absurdas que denunciam um antigo seminarista.

– Lá no seminário é que batiam de verdade. Na época era assim, todo sábado, quisesse ou não, era abaixar as calças! Falavam assim: “Você tem razão, meu queridinho, tem razão. Agora deite-se aí…”. Se fosse culpado era como punição, se não fosse culpado era como estímulo.

– Ah, esse deve sofrer bastante – falou o comandante do batalhão. – Os soldados não perdoam roubos.

O oficial ruivo virou-se rapidamente na direção do comandante com uma objeção pronta, mas pensou melhor e ficou em silêncio.

Um suboficial aproximou-se correndo do comandante do batalhão, parou a seu lado e declarou a meia-voz:

– Vossa excelência, estão trazendo o tal tártaro.

Todos se viraram para trás. O quadrilátero vivo de súbito moveu-se sem qualquer comando e aquietou-se. Os oficiais caminharam apressadamente para seus regimentos, abotoando no caminho suas luvas.

Passos pesados

Em meio ao silêncio que se fez, ouviram-se nitidamente os pesados passos de três homens. Baigúzin caminhava entre dois soldados que o escoltavam. Estava vestido com o mesmo capote desmesurado, remendado nas costas com trapos de diferentes cores; as mangas pendiam como antes até os joelhos. As abas do chapéu que levava enterrado na cabeça estavam abaixadas na frente sobre a cocarda, ao passo que atrás estavam bem levantadas, o que dava ao tártaro uma aparência ainda mais miserável.

Esse pequeno e encurvado criminoso provocava uma estranha impressão parado entre os dois soldados de escolta, em meio a quatrocentos homens armados.

A partir do momento em que o subtenente Kozlovski leu a ordem que designava o castigo físico a Baigúzin, ele foi tomado por uma sensação feroz e controversa.

Ele não conseguira fazer nada por Baigúzin, pois o comando já no dia seguinte o apressara com o inquérito. É verdade que, lembrando-se da palavra dada ao tártaro, ele se dirigira ao comandante de seu regimento para pedir conselhos, mas fracassara completamente. O comandante do regimento primeiro ficou surpreso, depois pôs-se a gargalhar e finalmente, vendo a crescente inquietação do jovem oficial, começou a falar de coisas diversas e desviou a sua atenção.

Agora Kozlovski sentia-se não exatamente um traidor, mas tinha a sensação de ter enganado Baigúzin para conseguir a confissão de roubo. “Mas isso talvez seja até pior – pensava ele –, comover um homem com lembranças de sua casa, da mãe, e depois desferir o golpe.”

Agora, ouvindo o oficial ruivo, ele sentia um ódio peculiar por sua barba suja e desagradável, por sua figura rude e pesada, pelas tranças ensebadas de seus cabelos, que assomavam por detrás de seu chapéu. Aquele homem, pelo visto, viera com prazer apreciar o espetáculo, cujo réu, afinal, Kozlovski considerava que fosse ele próprio.

O comandante do batalhão dirigiu-se até o meio do pátio e, virando-se de costas para Baigúzin, gritou de maneira ríspida e arrastada as palavras de comando:

– Pelotão! Em…

Kozlovski desembainhou o sabre até a metade, estremeceu, como que de frio, e depois não conseguiu mais parar de tremer, levemente, de nervoso. O comandante deslizou os olhos pela formação e gritou entrecortadamente:

–… guarda!

O quadrilátero remexeu-se, brandiu com nitidez suas armas duas vezes e congelou.

– Ajudante de campo, leia a sentença do tribunal do regimento – pronunciou o comandante com sua voz dura e clara.

O ajudante foi até o meio. Ele não sabia em absoluto cavalgar, mas imitava o andar dos oficiais da cavalaria, balançando-se ao caminhar e inclinando o corpo para frente a cada passo.

Leu acentuando incorretamente as palavras, de maneira desleixada e alongando desnecessariamente as palavras:

– O tribunal do regimento de infantaria N., na pessoa de seu presidente, o tenente-coronel N., e os membros tal e tal…

Baigúzin, cabisbaixo como antes, continuava entre os dois soldados e apenas de vez em quando lançava um olhar apático para as fileiras de soldados. Notava-se que ele não ouvia uma palavra do que estavam lendo, e provavelmente sequer tinha consciência do motivo pelo qual o puniriam. Apenas uma vez ele se mexeu, assoou o nariz e limpou com a manga do capote.

Kozlovski tampouco dava atenção às palavras da sentença e tremeu de repente quando ouviu seu sobrenome. Tratava-se do ponto em que falavam de seu inquérito. Ele imediatamente teve a sensação de que todos por um instante viraram as cabeças em sua direção, voltando-se logo em seguida para o outro lado. Seu coração começou a bater, assustado. Mas foi apenas impressão sua, porque além dele ninguém prestou atenção ao sobrenome e todos de maneira igualmente indiferente ouviam o ajudante anunciar rápida e monotonamente a sentença. O ajudante terminou dizendo que Baigúzin seria punido com cem golpes de chibata.

O comandante do batalhão ordenou: “descansar!” e fez um sinal com a cabeça para o médico, que timidamente e com ar de dúvida espiava por entre as fileiras. O médico, um homem jovem e sério, pela primeira vez na vida presenciava uma punição. Atrapalhado e sentindo-se constrangido pelas centenas de olhos fixos nele, caminhou desajeitadamente até o meio do batalhão, pálido e com o maxilar trêmulo.

Quando ordenaram a Baigúzin que se despisse, o tártaro não entendeu de imediato, e apenas quando repetiram, gesticulando, o que ele tinha de fazer, lentamente e com movimentos estabanados ele desabotoou o capote e a farda.

O médico, evitando olhar o outro nos olhos e com uma expressão de nojo e horror no rosto, ouviu-lhe o coração e tomou-lhe o pulso, encolhendo descrente os ombros. Ele não sentira o menor indício da inquietação costumeira nessas situações. Era nítido que ou Baigúzin não entendia o que queriam fazer com ele, ou seu cérebro ignorante e seus fortes nervos não podiam ser afetados nem pela vergonha, nem pela covardia.

O médico disse algumas palavras ao ouvido do comandante do batalhão e rapidamente, com o mesmo passo desajeitado, voltou para a formação. De algum lugar surgiram uns cinco soldados, que cercaram Baigúzin. Um deles, um tamborileiro, permaneceu ao lado e, erguendo a mão direita com o bastão, olhava com expectativa para o comandante do batalhão.

O tártaro começou a tirar o capote, mas fazia isso muito lentamente, e por isso os homens que haviam se apresentado foram obrigados a ajudá-lo. Por algum tempo ele hesitou, sem saber o que fazer com o capote, mas por fim estendeu-o com cuidado no chão e começou a se despir. Seu corpo era escuro e de uma magreza singular. Pela mente de Kozlovski passou o pensamento de que o tártaro certamente estava com muito frio, e esse pensamento o fez tremer ainda mais.

O tártaro permaneceu em pé, imóvel. Os atarefados soldados que o cercavam começaram a mostrar para ele que era preciso deitar-se. Ele se ajoelhou de maneira lenta e desengonçada, tocando o chão com as mãos, e depois deitou-se no capote dobrado. Um dos soldados, de cócoras, segurou-lhe a cabeça, outro sentou-se sobre as pernas. Um outro, um sargento, ficou ao lado para contar os golpes, e apenas então Kozlovski percebeu que no chão, próximo aos pés dos outros dois que estavam ao lado de Baigúzin, jazia um feixe de varas flexíveis.

Cem golpes

O comandante do batalhão acenou com a cabeça e o tamborileiro começou a rufar ruidosamente os tambores. Os dois soldados que estavam ao lado de Baigúzin olhavam indecisos um para o outro; nenhum deles queria desferir o primeiro golpe. O sargento aproximou-se deles e disse alguma coisa… Então o soldado que estava do lado direito, cerrando os dentes e fazendo uma expressão endurecida, ergueu velozmente a chibata e na mesma velocidade abaixou-a, inclinando o corpo todo para frente. Kozlovski ouviu o assobio entrecortado das varas, o baque surdo e a voz do sargento gritando “um!”.

O tártaro soltou um grito fraco, surpreso. O sargento comandou: “dois!”. O soldado da esquerda de maneira igualmente veloz ergueu a chibata e curvou-se. O tártaro gritou novamente, dessa vez mais alto, e sua voz refletia o sofrimento daquele corpo jovem e torturado.

Kozlovski olhou para os soldados que estavam ao seu lado. Seus rostos acinzentados e uniformes estavam imóveis e indiferentes como sempre ficam quando estão em formação. Nem pena, nem curiosidade: não se podia ler nenhum pensamento em seus rostos de pedra.

O subtenente o tempo todo tremia de frio e inquietação; o mais torturante para ele não eram os gritos de Baigúzin, nem a consciência de sua participação na punição, mas sim o simples fato de que o tártaro nitidamente não compreendia sua culpa, nem sabia ao certo por que estava apanhando; ele se alistou já tendo ouvido falar em casa de toda sorte de horrores sobre o exército, já pronto de antemão para o rigor e a injustiça.

Seu primeiro movimento após a dura recepção que tivera do regimento, do quartel e do comando foi correr de volta para seus queridos campos de Belebei. Mas foi preso e posto no cárcere. Depois ele pegou aquelas botas. Por que impulso pegou, com que finalidade, ele não saberia dizer até mesmo às pessoas mais próximas: seu pai e sua mãe.

E o próprio Kozlovski não se torturaria tanto se punissem ali um ladrão intencional, premeditado, ou até mesmo um homem completamente inocente, desde que fosse alguém capaz de sentir toda a vergonha de uma surra em público.

Cem golpes foram contados, o tamborileiro parou de rufar o tambor e em volta de Baigúzin começaram novamente a se agitar aqueles mesmo soldados.

Quando o tártaro se levantou e começou a se abotoar desajeitadamente, seus olhos e os olhos de Kozlovski se encontraram, e mais uma vez, assim como no momento do interrogatório, o subtenente sentiu entre ele e o soldado uma estranha ligação espiritual.

O quadrilátero estremeceu, e suas paredes cinza começaram a se desfazer. Os oficiais caminharam todos juntos em direção aos portões do quartel.

– Mas oras – disse o oficial ruivo de capa, fazendo com as mãos gestos amplos e estabanados. – Isso por acaso é chicotear? Lá no seminário, quando batiam, passavam o chicote antes no vinagre… Ah, se me dessem esse tártaro, eu mostrava para ele essas botas! Isso não é chicotear, é fazer cócega.

Kozlovski sentiu de repente um zumbido nos ouvidos, e diante de seus olhos recaiu uma bruma avermelhada. Ele traçou o caminho até o oficial ruivo e com a voz embargada, sentindo-se naquele momento ridículo e, por ter consciência disso, tremendo ainda mais, gritou com voz esganiçada:

– O senhor já falou uma vez essa porcaria e… e… não se dê ao trabalho de repetir! Tudo o que o senhor está dizendo é desumano e ignóbil!

O oficial ruivo, olhando de alto a baixo para seu inesperado inimigo, deu de ombros.

– O senhor deve estar doente, não, meu jovem? Por que está implicando comigo?

– Por quê? – gritou Kozlovski com voz esganiçada. – Por quê…? Estou implicando porque… Se o senhor não se calar imediatamente…

Mas os oficiais, alarmados pela briga inesperada, já o puxavam para trás pelos braços, e ele, cobrindo o rosto com as palmas das mãos, irrompeu em altos soluços, que faziam seu corpo inteiro tremer, como se fosse uma mulher em prantos, terrível e dolorosamente envergonhado de suas lágrimas…

Tradução de Lucas Simone

Aleksandr Kuprin (1870-1938) destaca-se pelo caráter filantrópico e humanitário atribuído a suas obras. Fez parte do grupo Znânie (Conhecimento), uma associação literária e editorial de São Petersburgo de começos do século 20, mas também ficou famoso pela vida agitada – foi estivador, repórter, sacristão, pescador, artista de teatro, operário e militar.

O ano de 1894, quando pede dispensa do serviço no Exército, é também o da publicação de “O Inquérito”, cuja denúncia das injustiças da caserna é um bom exemplo do tom do escritor.

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