O inferno são os outros

O inferno são os outros
O filósofo Jean-Paul Sartre (Divulgação)

 

Paris sob a ocupação
“Chegando a Paris, muito ingleses e norte-americanos ficam espantados de nos encontrar menos magros do que eles pensavam. Eles viram vestidos elegantes e que parecem novos, vestes que, de longe, mantinham ainda um ar respeitável; raramente encontraram a palidez nos rostos, essa miséria fisiológica que testemunha a banalidade da inanição. A solicitude, agora que ela se decepciona, se torna um rancor: acho que eles se incomodam de estarmos exatamente conforme a idéia patética que eles tem de nós. Talvez alguns dentre eles tenham se perguntado, no segredo de seus corações, se a ocupação foi tão terrível, se, depois de tudo, a França não devia considerar como um golpe de sorte a derrota que a colocou fora de jogo e que a permitiu reencontrar seu lugar entre as potências sem ter dado sua cota de sacrifícios; talvez eles tenham pensado, com o Daily Express, que os franceses, em comparação com os ingleses, não viveram tão mal nos últimos quatro anos. Eu quero me dirigir a esses. Queria explicar que eles se enganam, que a ocupação foi uma prova terrível, que não é certo que a França possa se recuperar e que não existe um único francês que não inveje a sorte de seus aliados ingleses.”
(Jean-Paul Sartre em La France Libre, 1945)

Cocktail filosófico
“Cocktail de abricot ou uma simples cerveja? A lenda hesita ainda sobre o tipo de bebida que acompanha o dia bendito no qual Aron, de passagem por Paris, encontra Sartre e Simone de Beauvoir e mostra a eles as mais recentes descobertas filosóficas. Simone de Beauvoir afirma que se trata, sem qualquer dúvida, de um coktail de abricot; Raymond Aron, de seu lado, jura por seus deuses que foi nada mais do que um copo de cerveja. Sartre, até onde sei, jamais se pronunciou sobre a identidade da bebida: a questão permanece aberta. Quando Aron, no começo do 1933, propõe esse encontro em um café, os três esperam uma troca interessante, isso é certo, sobre suas últimas leituras, seus trabalhos recentes, ele na Alemanha e os outros na França, mas nenhum deles desconfiava de que, naquele dia, alguma coisa maior se produziria. Tudo foi mais do que um simples reencontro, Sartre fala de seu ‘factum sobre a contingência’, Aron sobre suas mais recentes leituras, a filosofia alemã; o milagre se produz, enfim, quando Aron entende as intenções de Sartre e rascunha uma aproximação da fenomenologia: este copo, esta mesa, os fenomenólogos falariam de um mundo filosófico… Não precisou muito para Sartre se sentir imediatamente em estado de familiaridade, ele compra o livro que Emmanuel Levinas tinha lançado pela Alcan, três anos antes, e que se chamava Teoria da intuição na fenomenologia de Husserl. Ele o folheia de maneira desajeitada, quase o devorando, com a impressão de encontrar a cada página algo familiar, reconhecendo alguma coisa: à primeira vista, de qualquer maneira, Husserl abordava freqüentemente o conceito de contingência. É assim que Sartre encontra Husserl.”
(Sartre, de Annie Cohen-Solal)

As mulheres
“Um dia uma, um dia outra. O dia de almoçar com Arlette. As horas com Wanda e Michelle, há muito conhecidas. As horas da agradável Evelyne. Liliane, a quem ele não cansa de repetir: ‘Você chega sempre tarde, não tenho mais espaço, tenho que me dedicar ao trabalho’. E Liliane interioriza a tal ponto a lei que, assim que traz um carpinteiro para reformar a biblioteca, toma o cuidado de avisar: não se incomode, ele está ‘sob meu tempo’. E Dolores, a amante da América, a única a ter deixado Simone de Beauvoir com ciúmes. E Léna, a russa, que desembarca nesse uso saturado do tempo: ‘Isso te rouba uma terça, diz uma – uma quinta, fala outra’. E a chegada das maoístas em sua vida: não há mais tempo, conta Liliane! Todo tempo disponível foi tomado, então ele ‘marca seus encontros em um tempo que é meu!’. Sempre essa obsessão com o tempo, do ganho, da produtividade, da rentabilidade, logo, do tempo. Sempre essa representação de si mesmo com uma engenho, um mecanismo chapado sobre um ser vivo, uma máquina para transformar, não a vida, mas as palavras, o tempo, a literatura. Cito, entre os mestres, Céline, Joyce, Bergson, Hegel, Heidegger. Seria preciso dizer também La Mettrie – ‘o homem-máquina’, segundo La Mettrie, essa ‘colagem de molas’, essa ‘relógio’ superaquecido, do qual ele é, sem dúvida, uma boa encarnação.”
(O século de Sartre, de Bernard-Henri Lévy)

Dias de maio
“Os dias tumultuados de maio–junho de 1968 na França guardam ainda uma parte de seu enigma. Passados ao pente fino da análise crítica, histórica, política, eles escapam a uma plena inteligibilidade. Imprevistos, não é certo nem mesmo que, apesar de sua intensidade dramática, tiveram uma influência profunda sobre a sociedade e as instituições francesas. Eles provocaram, indiretamente, a saída do general de Gaulle em 1969, após um referendum fracassado, levaram à reforma universitária Edgar Faure… eles, sem dúvida, marcaram uma geração, mudaram comportamentos, ajudaram a França a entrar em uma nova era da comunicação: o ajuste de contas ainda está para ser feito. Gilles Deleuze e Félix Guattari, que foram os filósofos em evidência nos anos que se seguiram, escrevem em 1984: ‘Maio 68 está na ordem de um acontecimento puro, livre de toda causualidade normal ou normativa. (…) o que conta é que foi um fenômeno de esclarecimento, como se toda a sociedade visse repentinamente tudo o que ela possuía de intolerável, vendo também a possibilidade de uma outra coisa’.

A explosão do meio estudantil, a partir da agitação causada pela interdição da Faculdade de Nanterre, surpreendeu a todos. Nenhum escritor, nenhum filósofo, nenhum teórico acendeu o fogo que, se ampliando, vai incendiar toda a rua, o mundo do trabalho e, finalmente, todos os estratos da sociedade, família, escola, administração, Igreja, mídias e todo o resto.

Sartre, figura de ponta nos protestos contra a guerra do Vietnã, que preside o tribunal Russel e que acaba de publicar suas conclusões em dezembro de 1967 e prossegue na redação de seu ‘Flaubert’ (O idiota da família), sem faltar a seu almoço de domingo com a mãe no La Coupole, nem a suas horas ao piano com sua filha adotiva Arlette, ou a seus encontros com Wanda, Michelle Vian, Castor (Simone de Beauvoir). Surpreso pela amplidão das manifestações estudantis, em razão da evacuação da Sorbonne em 3 de maio, Sartre dá a eles seu apoio: com Blanchot, Gorz, Klossowski, Lacan, Lefebvre, Nadeau, ele assina um petição que aparecerá no jornal Le Monde de 10 de maio: ‘A solida-riedade que damos aqui ao movimento dos estudantes no mundo francês – esse movimento que vem bruscamente, nas horas de espanto, sacudir a sociedade dita do bem-estar perfeitamente encarnada no mundo francês – é de início uma resposta às mentiras pelas quais todas as instituições e formações políticas (quase sem exceção) e todos os órgãos da imprensa (sem nenhuma exceção) procuram há meses alterar esse movimento, pervertindo seu sentido ou mesmo tentando transformá-lo em algo banal’”.
(O século dos intelectuais, de Michel Winock)

O fim
‘“Jean-Paul Sartre está morto”, anuncia o jornal Libération como quem dá um grito. A primeira página era inteiramente consagrada a ele, com uma grande foto do filósofo – do início dos anos 70 –, engraçado, as mãos sobre os joelhos, na espera de testemunhar em um milésimo processo, sentado no Palácio de Justiça. ‘O imenso Sartre – comenta Serge July – ocupa o século como Voltaire e Hugo ocuparam os seus… ele que esteve em toda parte, nos últimos quarenta anos, de todos os escritos, de todos os combates…’. ‘Sartre está morto’, anuncia o Le Matin em toda uma página, com a estranha foto de um homem com óculos, lendo ou escrevendo sob uma grande luz branca. ‘Com ele desaparece um dos raros homens verdadeiramente livres de nossa época’, dizia o comentário, ‘um dos únicos homens honestos em meio a uma época terrível e turbulenta.’ ‘Morte de Jean-Paul Sartre’, escreve o Le Figaro, na manchete, enquanto em suas páginas internas, Jean D’Ormesson destaca ‘um dos últimos mestres do pensamento francês’ (…) Relatos de todas as testemunhas possíveis, extratos de suas obras, de todas as datas-chave ou presumidas assim, de todas as viagens, de todas as publicações, em uma espécie de álbum de família no qual cada um encontrava reunidos os grandes momentos do século. Um tipo de subleilão delirante que não tinha, ao fundo, uma única e verdadeira significação: dar conta, de uma vez só, de uma dívida considerável em relação a Sartre; dar conta, sobretudo, da impossibilidade de exprimir toda essa dívida.”
(Sartre
, de Annie Cohen-Solal)


 

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