O historiador do futuro terá que mirar ainda mais ao passado

O historiador do futuro terá que mirar ainda mais ao passado
(Foto: Reprodução/ Portal Memorial da Democracia)

 

Olhando o Brasil das últimas semanas, parece plausível pensar que o historiador do futuro terá grandes dificuldades em tentar explicar o paradoxo crescente entre a enorme mobilização de amplos e influentes setores da sociedade em oposição ao atual governo e a continuidade de ainda significativos níveis de apoio ao mesmo. E embora editoriais, artigos, análises de jornalistas e acadêmicos venham afirmando, quase à exaustão, a insustentabilidade da continuidade da atual composição de mandatários nas mais altas instâncias de poder da República, sondagens de opinião pública apontam de maneira consistente que entre um terço e metade dos eleitores apoiam a atual administração pública ou se opõe à sua retirada antecipada.

Se é tão evidente a falência do atual governo, por envolvimentos notórios com setores das milícias estaduais e notória incompetência administrativa, agravada de maneira dramática e trágica pela pandemia da Covid-19, como entender o apelo ainda existente se não ao governo em si, certamente à sua agenda e à sua retórica? Vejo que as chaves para entender tais questões devem ser buscadas em nossa história.

História de uma sociedade não só profundamente excludente e elitista, mas também conservadora, reacionária, violenta e profundamente racista. Embora relevante, um percurso mais longo por nossa história, por exemplo pelas linhas evolutivas do que viria a ser tornar a maior e mais duradoura sociedade escravagista do período moderno, claramente foge do alcance dessas linhas. Para os objetivos aqui propostos, o passado mais recente, em sua forma memorial da nossa ditadura civil-militar, deverá bastar.

Lembremos que a nossa ditadura, especialmente nos seus anos de chumbo, entre 1968 e meados dos anos 1970, contou com amplo apoio e apelo popular. Para além dos ganhos que as classes médias – base e porta-voz do regime de então, como o de agora – tiveram durante o dito “milagre brasileiro”, é central lembrar que havia apoio genuíno, especialmente por partes desses mesmo segmentos sociais da lógica, narrativa e atuação do regime em prol da chamada “lei e ordem”.

De maneira efetiva, no início dos anos 1970, a Arena, base primeira e central dos generais de então, se vangloriava de ser o maior partido do ocidente. Partido esse que podia contar com apoio direto e amplo não somente de vereadores e deputados de todas as partes do país, mas também de profissionais liberais e empresários que concordavam explícita ou implicitamente com os mandos e desmandos de um regime repressivo e mentiroso. O partido contava com o apoio entre as camadas culturalmente mais reacionárias e moralistas da população, que proviam, de maneira influente, apoio e legitimação necessários ao autoritarismo em curso.

As viúvas do regime empresarial militar ainda estão bem vivas entre nós! Entre os atuais generais da reserva que chefiam vários dos principais ministérios do (des)governo atual, entre o oficialato e mesmo nas bases das polícias militares de vários estados; entre jovens que não viveram a ditadura, mas que se apegam ao mantra mentiroso da manu dura propagado pelos mais velhos. No meio civil, além da base difusa entre as classes médias urbanas reacionárias e preconceituosas de sempre, temos, entre os partidos políticos, o chamado Centrão, de fato o principal representante do fisiologismo e da corrupção que (embora suas viúvas neguem!) grassavam já durante o nosso chamado milagre.

Mas se os ecos do passado são fortes demais para não serem ouvidos, a história tende a se repetir somente como farsa, conforme diz o truísmo consagrado. Como farsa, se Medici tinha apelo popular como o ditador simpático que ia aos estádios com seu radinho de pilha, nosso bufão autoritário de hoje se lança entre as multidões em plena pandemia. Da mesma forma, se nossa ditadura nunca soube e nem propriamente buscou construir uma base popular que poderia acrescer ao seu autoritarismo um traço fascista, é exatamente isso que nosso Capitão (reformado) tem buscado fazer. Entraremos ainda mais no túnel do tempo revivido hoje com teores fascistas ou os clamores pelo fim do maior pesadelo da história recente terão resultado?

Muito dependerá do que farão nossas classes médias, sempre prontas a prestar apoio ao último autoritário de plantão que prometa garantir seus parcos privilégios de uma distinção social precária, mas sempre aguerrida.

A Arena continua firme entre nós, ajudando a pautar nossos rumos, com seus ranços e preconceitos de sempre. Entender isso é base para que algo novo seja constituído ou pelo menos vislumbrado.

Rafael R. Ioris é professor da Universidade de Denver


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