O grande inquisidor
“Eis o que contam os mordovinos: Deus estava só sobre um rochedo. ‘Se eu tivesse um irmão, faria o Mundo! ’, diz ele, e escarra sobre as Águas. Desse escarro nasce uma montanha. Deus a fende com sua espada e da montanha sai o Diabo (Satã). Assim que aparece, o Diabo propõe a Deus que sejam irmãos e criem juntos o Mundo. ‘Não seremos irmãos’, responde-lhe Deus, ‘mas companheiros’. E, juntos, procederam à criação do Mundo”. Mircea Eliade, Mefistófeles e o mito do andrógino: comportamentos religiosos e valores espirituais não-europeus.
O grande inquisidor – o segundo espetáculo que integra a “trilogia do subterrâneo”, reunião de três monólogos baseados em narrativas de Dostoiévski que Celso Frateschi já encenou, dirigido por Roberto Lage, mas que agora voltam a ser apresentados no Ágora Teatro – evidencia a propensão dramatúrgica do trabalho do romancista russo. O autor de Os irmãos Karamazov, de onde se extraiu o episódio ora levado à cena, conhecia com profundidade a literatura dramática universal, cultivando grande admiração não somente pelas duas principais referências teatrais do romantismo europeu do século XIX, Shakespeare e Schiller, como também pela dupla de escritores sobre cuja obra está assentado o classicismo francês do século anterior, Corneille e Racine.
Em Tolstoi ou Dostoiévski, George Steiner destaca o poder de atração que a dramaturgia exerceu sobre o autor ao longo da vida. Segundo nos informa o crítico literário francês, parecia haver entre os primeiros escritos de Dostoiévski “dois dramas ou fragmentos dramáticos”, que não sobreviveram, entretanto. Em 1841, Dostoiévski tentou dramatizar as histórias de Boris Gudnov, e Maria Stuart (já conhecida na versão de Schiller), mas acabou abandonando o projeto. Em 1844, o escritor provavelmente estava de posse de algum manuscrito quando escreveu para seu irmão: “Afirmas que minha salvação está em meu drama. Mas passará um longo tempo para ser encenado, e mais longo ainda para que eu consiga dinheiro para isso”. Por fim, Steiner declara que a fascinação do escritor russo pelo palco nunca cessou completamente: “… sabemos de planos para uma tragédia e uma comédia no inverno de 1859 e, bem no final de sua vida criativa, enquanto trabalhava no décimo primeiro livro de Os irmãos Karamazov, no verão de 1880, Dostoiévski se perguntava se não deveria transformar um dos principais episódios do romance em uma peça”.
Dentre suas inúmeras qualidades, os espetáculos da trilogia do subterrâneo capitaneados por Celso Frateschi e Roberto Lage, a despeito de seu despojamento estilístico e formal, ajudam os espectadores contemporâneos a entender os elementos dramáticos da ficção dostoievskiana e a usufruir de sua complexidade. No caso específico de O grande inquisidor, poder-se-ia mesmo falar da relação maior que Os irmãos Karamazov estabelece com o Hamlet e o Rei Lear, de Shakespeare, e com Os assaltantes, de Schiller, mas é preferível ater-se ao aspecto camerístico da empreitada, advindo das modestas dimensões do Ágora, do tempo reduzido de duração do espetáculo e do modo tão particular como esse explora uma micronarrativa sob a forma de um monólogo em que se sobressai a máxima concentração de elementos.
Vislumbra-se a vocação dramatúrgica de Dostoiévski no tom adotado pelo narrador no quinto livro de Os irmãos Karamazov, “Pró e contra”, onde está incrustada a lenda que o escritor russo chegou a considerar, em conversa com o editor Putsikóvitch, como “o ponto culminante de sua atividade literária”. Depois de contar como Ivan e Aliócha se encontram na taverna, o narrador deixa que os irmãos “se conheçam” por meio de um caudaloso diálogo que um pouco mais à frente, entretanto, irá se transformar em peça monológica por intermédio da qual Ivan dará a conhecer a Aliócha o poema que “inventou” e que está “gravado em sua memória”. A voz de Ivan se dirige diretamente a Aliócha, seu destinatário, realçando a “retórica do drama” (a expressão é de George Steiner) que está implícita na relação desse “eu” com seu “público”.
Se, no romance, Aliócha faz pequenas intervenções no relato de Ivan e discute com ele um pouco mais amplamente ao final do capítulo, na adaptação para o palco, a presença física do irmão caçula de Ivan Karamazov simplesmente desaparece, convertendo-se, de modo alegórico, em cada um dos espectadores que o ator-narrador tem diante de si. O projeto cênico do prosador russo é assim reconfigurado pela realidade do teatro, cuja natureza parte da exterioridade do que ocorre no palco rumo à interioridade de cada um de nós. Trata-se da concretização não somente da “cena focada para dentro” como também da “linguagem como gesto”, vislumbradas pela crítica dostoievskiana.
A narração teatral é complexa e implica o entrelaçamento de quatro planos: o do narrador ficcional do romance original; o de sua transformação no personagem Ivan, ainda dentro daquela narrativa; o de sua corporificação na figura do ator do monólogo a que o espectador está assistindo; e, por fim, o da representação que este ator faz da personagem do Inquisidor – que domina grande parte dos cerca de sessenta minutos que dura a encenação. Após um pequeno preâmbulo em que analisa um conto bizantino do século XII que narra a compaixão da Virgem Maria pelos condenados ao Inferno, este ator-narrador-personagem conduz os espectadores ao Sul da Espanha, mais precisamente à cidade de Sevilha, no tempo da Inquisição, transformando-se rapidamente na figura do cardeal que irá ficar frente a frente com o Cristo.
Segue-se então uma longa recriminação do Inquisidor a Cristo, cuja presença é indicada por uma peça de tecido disposta sobre uma cadeira. Os poucos objetos e adereços de que se serve o intérprete ou que apenas orbitam em torno de seu corpo, a iluminação austera, a trilha sonora pontual e a parcimoniosa projeção na tela que ocupa o fundo da cena ajudam a conferir a devida expressão dramática à luta travada por uma consciência dividida entre razão e fé – consciência essa polifonicamente instaurada. Se conseguir neutralizar a posição passiva comumente adotada diante de um monólogo e abrir-se à experiência do dialogismo complexo que esse monólogo não negligencia em momento algum, o espectador perceberá sua própria presença ali diante do ator como incontornável e essencial. E entenderá que a arte do teatro é capaz de converter duas solidões – a solidão do artista em cena e a solidão do espectador na plateia – no exercício de uma convivência entre eles. A maior das transgressões no mundo capitalista, onde os indivíduos transformam misantropia e isolamento em sinônimos de virtude.
Ao tratar – em Problemas na poética de Dostoiévski – da superação do monologismo na obra do escritor russo, Mikhail Bakhtin afirma: “Os atos mais importantes, que constituem a autoconsciência, são determinados pela relação com outra consciência (com o tu). A separação, o desligamento o ensimesmamento são a causa central da perda de si mesmo. Não se trata do que ocorre dentro, mas na fronteira entre a minha consciência e a consciência do outro, no limiar. O todo interior não se basta a si mesmo, está voltado para fora, dialogado, cada vivência interior está na fronteira, encontra-se com outra, e nesse encontro tenso está toda a sua essência. É o grau supremo da sociabilidade (não externa, não material, mas interna). Nesse ponto Dostoiévski se opõe a toda a cultura decadente e idealista (individualista), à cultura da solidão de princípio e incontrastável. Ele afirma a impossibilidade da solidão, da solidão ilusória. O próprio ser do homem (tanto interno quanto externo) é convívio mais profundo. Ser significa conviver. (…) Ser significa ser para o outro e, através dele, para si. O homem não tem um território interior soberano, está todo e sempre na fronteira, olhando para dentro de si ele olha o outro nos olhos ou com os olhos do outro”. Ora, não somente pelos grandes temas de que trata – ligados à essência do homem –, mas também, e sobretudo, pela forma como os trata, o teatro é capaz de revelar a falsidade das consciências solitárias e se insurgir contra elas, tornando-se por si só uma arte insubmissa e insurgente. Assim é que por meio deste O grande inquisidor a literatura e o teatro se unem para produzir uma imagem do homem que é a via para o eu do outro.
Nunca é demais atentar para a qualidade do trabalho de interpretação de Celso Frateschi, cujo registro emocional recusa o arrebatamento e sai em busca de uma aventura interior artesanalmente construída – torneada, aqui, pela natureza filosófico-ideológica do texto-matriz. Por meio do corpo e da presença de espírito do intérprete, somos convidados a usufruir – sinestésica e intelectualmente – desse belíssimo espécime literário-dramatúrgico e de seu excepcional tom de universalismo filosófico. E examinar a grande questão que nele se coloca e até mesmo nos divertirmos com ela. Pois, embora se trate de uma das obras artístico-filosóficas mais profundas de toda a literatura universal, de acordo com a crítica, a encenação em momento algum solicita de nós gravidade, sentimento de fé, crença em valores supremos.
Bakhtin identifica tanto no encontro de Ivan e Aliócha na taberna como na posterior narrativa do grande inquisidor um tipo de registro humorístico muito antigo, o da sátira menipeia, cujo peso cômico não desaparece, mas se reduz acentuadamente (“O fenômeno do riso reduzido tem uma importância bastante grande na literatura universal. O riso reduzido carece de expressão direta, por assim dizer, ‘não soa’, mas deixa sua marca na estrutura da imagem e da palavra, é percebido. Parafraseando Gógol, podemos falar de um ‘riso invisível ao mundo’. Esse mundo nós encontramos nas obras de Dostoiévski”). Uma vez que atores também podem ser chamados de comediantes e que Celso Frateschi encontra-se em uma ótima fase de sua carreira de intérprete, nada mais natural do que nos entretermos com a Lenda do Grande Inquisidor, na qual uma magnífica ideia filosófica se funde a uma tênue alegoria cômica, concebendo uma unidade cênica orgânica e indissociável.
O grande inquisidor
Onde: Ágora Teatro (Rua Rui Barbosa 664, Bela Vista – SP)
Quando: até 10 de julho; sextas, às 21h30, sábados, às 21h, domingos, às 19h
Quanto: R$ 60,00 e R$30,00 (meia)
Info: (11) 3284-0290
A Deus o que ainda é de César
O Grande Inquisidor e a peregrinação de Cristo pelo deserto de nossa história
por Flávio Ricardo Vassoler
Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça,
pois eles serão saciados.
Fragmento do Sermão da Montanha, de Jesus Cristo
(Evangelho segundo Mateus, capítulo 5, versículo 6)
Preâmbulo
Sevilha, século XVI, auge da Inquisição Ibérica.
Com o poema narrativo O Grande Inquisidor, Ivan Karamázov, personagem quintessencial do romance Os Irmãos Karamázov (1880), de Fiódor Dostoiévski (1821-1881), transforma Jesus Cristo e Satanás em intérpretes da história. Em meio às três tentações no deserto narradas pelo Evangelho segundo Mateus (capítulo 4, versículos 1-11), o Messias e o demônio, segundo o clérigo-mor, sintetizariam o devir da humanidade.
Após o batismo de Cristo com a cuia de João Batista embebida pelas águas do Jordão, “Jesus foi conduzido pelo Espírito ao deserto para ser tentado pelo demônio” (MATEUS, 4, 1).
Ora, por que Cristo deveria ser tentado pelo demônio?
Como filho de Deus, ele não é a perfeição encarnada?
Por que submeter o Messias a uma tentação que não poderá desviá-lo?
Ora, mas e se Jesus não fosse idêntico ao Cristo desde o princípio?
Se assim pensarmos, Jesus voltará a ser o filho do carpinteiro José.
Todos somos ou fomos filhos, assim como Jesus, a princípio insciente sobre a via crucis que o levaria ao Gólgota e consumaria a Paixão.
A quarentena no deserto narrada pelo evangelista Mateus e pelo grande inquisidor de Dostoiévski, além de sintetizar uma possível filosofia da história, tem um sentido eminentemente pedagógico. Jesus precisou evoluir como todos nós.
Já não se trataria mais do Escolhido ou dos escolhidos, mas de um caminho que todos e cada um de nós podemos percorrer.
Primeira tentação
Ego, fiat lux!
Após quinze séculos, Cristo volta ao nosso mundo, caminha entre a multidão sevilhana, realiza milagres – a massa o ovaciona.
Não demora até que o grande inquisidor ordene aos gorilas eclesiásticos que levem o Messias redivivo à masmorra da inquisição.
No cubículo gradeado e escuro ocorrerá o diálogo, ou melhor, o monólogo dialogado, entre o clérigo-mor e o Cristo novamente aprisionado.
Logo no início do poema narrado por Ivan, o inquisidor nonagenário entrevê as três tentações do deserto como a síntese da história humana:
Se jamais houve na terra um milagre autêntico e retumbante foi o dia daquelas três tentações. (…) Essas três questões provam por si sós que se têm de ver com o espírito eterno e absoluto e não com um espírito humano transitório. Porque resumem e predizem ao mesmo tempo toda a história ulterior da humanidade, são as três formas em que se cristalizam todas as contradições insolúveis da natureza humana (Os Irmãos Karamázov, p. 188[1]).
A quarentena de Cristo no deserto, assim, transforma-se em um microcosmo que concentra o movimento contraditório da história em nossa busca por liberdade.
Assim falou Satanás em sua primeira tentação:
– Se és Filho de Deus, ordena que estas pedras virem pães (MATEUS, 4, 3).
À época, a humanidade ainda estava longe de se constituir.
Para as comunidades primitivas que precisavam lutar pela própria sobrevivência, era preciso orar pelo pão nosso de cada dia.
Se Cristo transformasse as pedras em pães, um enorme suplício dos homens estaria satisfeito. Mas que resultaria daí? Assim falou o grande inquisidor a ressoar a voz da massa: “Reduzi-nos à servidão, contanto que nos alimenteis” (Os Irmãs Karamázov, p. 189).
Homens e mulheres ainda pouco diferenciados, membros de comunidades não de todo fixadas – em cuja memória ainda ressoava o atavismo nômade –, seriam congregados em função do pão e orbitariam ao redor do ser místico que os alimentasse sem mais. O ego, que nem de longe havia despontado, continuaria amorfo e plasmado ao espírito coletivo.
Em um esboço de ensaio sobre as tensões e imbricações envolvendo cristianismo e socialismo que Dostoiévski escreve em 1864, o escritor afirma que, “nos estágios primitivos da sociedade, Deus é a ideia coletiva de humanidade, da massa, de cada um. Quando o homem vive em massa (nas comunidades patriarcais primitivas, sobre as quais foram deixadas muitas lendas), então o homem vive espontaneamente”[2].
A espontaneidade, nos primórdios das comunidades humanas, refere-se não ao desenvolvimento da liberdade, mas à vivência contumaz da necessidade.
Sem o desenvolvimento técnico, o homem não consegue cortar o cordão umbilical que o aguilhoa à natureza. O ego desponta como um pseudópode do todo.
A baixíssima divisão social do trabalho ata os poucos elos produtivos e quase não os distancia geograficamente.
O caçador entrega o espólio de sua jornada diretamente àqueles que deverão executar os trabalhos secundários. O aproveitamento da carne e da pele.
Quando o excedente produtivo começa a permitir o ócio reverencial, os primeiros sacerdotes abençoam o fruto do trabalho alheio.
Assim, Deus e seus representantes sacerdotais fundem-se à alienação do trabalho, à consciência de que um Outro que não a comunidade embasa as realizações do todo social pouco diferenciado.
Eis o ícone silencioso diante do qual os primórdios da humanidade devem se ajoelhar.
Nas comunidades originais, o ego não tem consciência de si. Os animais sociais são extensões da comunidade. Assim, a saciedade imediata da fome cristalizaria os homens na heteronomia. As pedras transformadas em pães acorrentariam os homens a um estágio de consciência primitivo que geraria egos animalescos. Egos atados ao estômago.
Não se trata, é claro, de negar a importância da supressão das carências materiais. Trata-se de correlacioná-las com o sentido de desenvolvimento do todo.
Homens e mulheres assim pouco diferenciados veriam, mágica e instantaneamente, o rompimento dos laços da necessidade.
As comunidades se tornariam a somatória centrífuga dos egos recém-forjados pela saciedade do estômago.
A nova liberdade, insciente sobre si mesma, traria como consequência a completa dependência dos seres em relação ao deus fornecedor.
Mas e se os pães voltassem a ser pedras?
Logo haveria guerras pela posse dos poucos pães remanescentes.
A consciência seria aguçada, então, não por um sentido de conexão entre o ego e o todo, mas por um ímpeto de beligerância. Apenas um Messias mágico poderia restabelecer a paz pela transformação de novas pedras em pães. Assim, o grande inquisidor sentencia que a massa compreende por fim que
a liberdade e o pão da terra à vontade para cada um são inconciliáveis, porque [os homens] jamais saberão reparti-los entre si! (…) Tal é o sentido da primeira pergunta que te foi feita [a Cristo] no deserto, e eis o que rejeitaste em nome da liberdade, que punhas acima de tudo. No entanto, ocultava ela o segredo do mundo. Consentindo no milagre dos pães, terias acalmado a eterna inquietação da humanidade – indivíduos e coletividade –, isto é: “Diante de quem se inclinar?” (Os Irmãos Karamázov, pp. 189-190).
Neste momento, o inquisidor revela a síntese de suas apreensões sobre os dilemas que configuram a história humana.
Deus assume a forma da autoridade máxima.
Deus Pai.
A humanidade devolve o fruto de seu trabalho a Deus para Dele receber a produção com a bênção divina. Deus se transforma na própria produção social deificada pelos dominantes que a usurpam da coletividade.
A milênios de distância de nossa época, em meio ao deserto mítico da Bíblia e de Dostoiévski, descobrimos o dilema que enredaria o socialismo.
Há milênios, a consciência baça e trêmula mal podia pedir algo para além do pão.
A imagem de um deus provedor afinava-se com o espírito da época.
Mas eis que os socialistas revisitam a liberdade a partir (e para além) do estômago.
Seus melhores representantes entreveem que a condição para a verdadeira liberdade de um é a liberdade de todos. Só assim o homem estaria livre para o exercício de suas máximas faculdades.
Que a fome fosse extirpada, que a humanidade se visse livre, efetivamente, do jugo da natureza. Que a emancipação aproximasse os desígnios da imaginação da prática cotidiana da humanidade.
Mas a história traz em seu bojo a consciência atávica.
O otimismo revolucionário vai ficando para trás.
Filho dileto da modernidade, o capitalismo prega que todos e cada um podem maximizar suas satisfações pessoais – com os demais e, sempre que for preciso, contra os demais.
A multiplicação dos pães e dos peixes, a acumulação das riquezas, pressupõe a divisão do trabalho em escala competitiva.
Sendo assim, que fizeram os líderes comunistas diante do capitalismo estatal soviético?
O ímpeto por mais consumo era calado autoritariamente.
A sociedade devia produzir até alcançar seus limites, mas o novo Deus, o Partido, e o novo Filho, o Guia Genial dos Povos, decidiriam como se daria a partilha.
Assim, para Dostoiévski, o socialismo se vê enredado por dilemas análogos aos que emparedaram a religiosidade primitiva.
A liberdade se vê transformada no culto da necessidade, ainda que o desenvolvimento material tenha potencializado sobremaneira a consciência dos homens.
Assim responde Jesus à primeira tentação de Satanás:
– Não só de pão vive o homem, mas de toda palavra que procede da boca de Deus” (MATEUS, 4, 4).
Ora, a multiplicação dos pães teria vindo de Cristo, filho de Deus. Sendo assim, por que a palavra que procede da boca de Deus não pode coincidir com a saciedade material?
Ocorre que a saciedade material coincide com um ego autossuficiente no sentido mais prosaico do termo.
É bem verdade que a coletividade havia se diferenciado dos animais ao viver para além da mera contingência. Mas o ego entregue a si mesmo sem a consciência expandida não progrediria para além do ímpeto de se saciar.
Sendo assim, por que voltar ao trabalho?
Qual o sentido da atividade social quando o ego se liberta das correntes que o condenavam à vida em comunidade?
É claro que a noção de que o ego não deve receber os frutos de seu trabalho à exaustão pode ser utilizada para fins reacionários. Para os donos do poder, sempre deve haver uma instância de decisão que repartisse de forma justa e desigual – ou pior, justamente desigual – os frutos da riqueza social.
Assim tem sido historicamente.
Mas, a reboque das reflexões do grande inquisidor, poderíamos perguntar se a humanidade já alcançou o cume do desenvolvimento que mostra uma inequívoca reciprocidade entre o ego e os outros.
A palavra que procede da boca de Deus visaria, então, à diminuição da distância entre o todo e o ego, uma vez que o movimento de transformação não é imediato.
A liberdade não-mediada poderia se transformar em autocracia. E, aqui, não se trata de aceitar a desigualdade atual com vistas a uma aposta em melhorias futuras. Trata-se de perceber a permanência das aporias que não conseguem transformar o ego humano apenas com a administração dos recursos produtivos.
Para seres que estão acostumados a viver sob o signo da distinção, a fundamental supressão das carências materiais tende a elevar o acirramento dos egos. É essa elevação, bastante desigual entre os povos, que, para Dostoiévski, constitui a civilização. Eis o que diz o escritor russo a esse respeito em seu esboço de ensaio sobre o socialismo e o cristianismo: “Mas então vem o período de transição, isto é, mais desenvolvimento, isto é, a civilização. (…) [Com isso, ocorrem] o desenvolvimento da consciência pessoal e a negação das ideias e leis espontâneas (leis autoritárias, patriarcais das massas)” [Dostoiévski (Frank), p. 505].
Moisés desceu do Monte Sinai com as Tábuas da Lei.
O todo impunha ao ego aquilo que deveria ser feito.
O Pai se confundia com o profeta e suas normas.
Mas o desenvolvimento material pressupõe uma maior especialização dos ramos produtivos, ou seja, uma divisão social do trabalho mais complexa.
O comerciante, mediador inequívoco, se interpõe entre aquele que produz e aquele que compra. O ego, em estreito diálogo material com a história, vê sua consciência se aguçar.
O ego, agora, já pode morar longe, ele não precisa necessariamente das aglomerações primordiais que sobreviviam sob a batuta do patriarca. O ego pede a Deus que continue a lhe dar forças, pois seu trabalho (supostamente) individual passa a prover aquilo de que ele precisa.
Deus agora passa a habitar a terra, mesmo que os olhos reverenciais ainda orem aos céus. O devir da civilização, assim, aproxima Deus dos homens, mas o faz segundo a lógica de emancipação parcial do ego.
O ego que antes se ajoelhava agora quer caminhar com as próprias pernas, ele quer mandar em si mesmo – e, potencialmente, comandar os demais.
Segunda tentação
Enforque-se na corda da liberdade
Chega o momento da segunda tentação demoníaca:
O demônio transportou-o [a Cristo] à Cidade Santa, colocou-o no ponto mais alto do templo e disse-lhe: “Se és Filho de Deus, lança-te abaixo, pois está escrito: Ele deu a seus anjos ordens a teu respeito; proteger-te-ão com as mãos, com cuidado, para não machucares o teu pé em alguma pedra” (MATEUS, 4, 5-6).
Quantos séculos se passaram desde a primeira tentação para que as comunidades amorfas pudessem erigir templos e observar do cume mais elevado o resultado de seu desenvolvimento?
Na primeira tentação, Cristo paira sobre homens e mulheres famintos.
Quando da segunda tentação, porém, o homem civilizado já tem o poderio de um deus. Seu desenvolvimento lhe permite escalar e colonizar montanhas, uma vez que todas as estepes já foram percorridas.
O homem se deslumbra com o próprio poder.
Se Deus antes se assemelhava à natureza indômita, agora a divindade passa a ter barbas e músculos tal como Michelangelo a eternizou no teto da Capela Sistina.
Deus passa a ser medido à imagem e à semelhança do homem.
Chega o momento, então, de destacar o ego do todo.
O indivíduo, invenção precípua da civilizada divisão do trabalho, quer se destacar da multidão.
Eis o ego centrífugo por excelência.
O ermitão.
O solitário testará o poder de Deus para ver até que ponto seu ego se faz independente. O comércio lhe dá a ilusão de que, a qualquer momento, tudo lhe pode ser oferecido.
Aos poucos, o ego se sente não apenas superior. Ele se sente só.
Assim, o suicídio, paradoxalmente, tenta restituir a união primordial perdida.
Aquele que se joga do penhasco procura braços etéreos que contenham sua queda.
Mas a massa primitiva que só fazia vagar pelas estepes da história já se dispersou há muito tempo.
A consciência expandida do ego que orbita apenas ao redor de si mesmo não encontra o diálogo que tanto busca em meio àqueles cujo trabalho provê a independência fictícia do artista e do intelectual.
Quem tenta se destacar completamente da multidão encontra a coletividade do cemitério como a reintegração ao todo.
Será que o ego se dará conta de que sua individualidade pressupõe o outro, os outros – a sociedade?
Quando o adulto altivo afaga a criancinha com carinho e saúda o idoso com reverência, ele traz à tona o respeito imemorial pelos períodos de desenvolvimento da humanidade. A criança lembra a massa heterônoma, o idoso a reboque da bengala lembra ao adulto bípede a contingência de sua altivez.
A segunda tentação se volta para todos aqueles que já não se reconhecem no seio da sociedade que os gerou.
A solidão, o exílio, o suicídio.
Eis a resposta de Jesus para Satanás:
– Também está escrito: Não tentará o Senhor teu Deus (MATEUS, 4, 7).
Àqueles que se moldam à divisão do trabalho e a seu embotamento ideológico, o ego centrífugo parece um louco. Sendo assim, é melhor não atentar contra Deus.
Por outro lado, a figura de Cristo também aponta para o ego que pode retornar ao todo.
A consciência expandida não pressupõe apenas o exílio.
A liberdade também pressupõe a negação do suicídio e a percepção de que o ego que se autonomiza apreende os momentos heterônomos de sua expansão.
O ego como construção social.
O ego como parte dos outros – nosotros, nós – não mais pela união primitiva, mas pela consciência do todo.
Não tentar a Deus, nesse sentido, refere-se ao movimento centrípeto do ego que retorna, engrandecido, ao sentido da criação.
A humanidade toma forma em seus entes conscientes que se percebem partes de um todo. A quarentena de Cristo, na verdade, dura quarenta séculos, milênios e eras. O tempo para a maturação da história.
Mas nós ainda não alcançamos a fusão entre liberdade e necessidade.
Nesse sentido, que fazem as religiões (espirituais e laicas) nos momentos de fratura?
Diante de Cristo, o grande inquisidor sentencia que as religiões pregam o milagre, o mistério e a autoridade.
Não há, repito-te, preocupação mais aguda para o homem que encontrar o mais cedo possível um ser a quem delegar esse dom da liberdade que o infeliz traz consigo ao nascer. (…) Não há nada de mais sedutor para o homem do que o livre arbítrio, mas também nada de mais doloroso. (…) Aumentaste a liberdade humana em vez de confiscá-la e assim impuseste para sempre ao ser moral os pavores dessa liberdade (Os Irmãos Karamázov, p. 190).
Para tais tendências religiosas, devemos sentir culpa em face de Jesus, não devemos entrevê-lo como mais um entre nós.
Para tais tendências religiosas, a quarentena e as tentações no deserto são meras peças alegóricas, Cristo ainda poderá descer da cruz. Se Jesus o fizer, o milagre voltará a nos orientar – ou melhor, a nos tutelar.
Fundir a liberdade à necessidade (e a necessidade à liberdade) é um processo histórico árduo e repleto de contradições.
Sendo assim, por que não se ajoelhar?
Um mundo outro depende do ímpeto da consciência, mas é mais fácil se referir a uma autoridade totalitária.
Deus Pai.
Quando não soubermos o que fazer, a Igreja lá estará.
Por séculos e séculos, amém.
Terceira tentação
A César o que é de César, e a Deus o que é de Deus?
Passemos à terceira e última tentação, aquela que arregimenta o ego centrífugo para o fardo dos grandes líderes, aquela que faz a liberdade se degenerar em vontade de poder – liberdade que se transforma em necessidade para todos aqueles que devem se ajoelhar diante do trono.
Eis que “o demônio transportou-o [a Cristo], uma vez mais, a um monte muito alto, e lhe mostrou todos os reinos do mundo e a sua glória, e disse-lhe: ‘Dar-te-ei tudo isto se, prostrando-te diante de mim, me adorares’” (MATEUS, 4, 10).
O cume é ainda mais alto, local ocupado apenas pelos maiores conquistadores.
Cristo seria não apenas o milagreiro da massa; Jesus se transformaria no Pai, com a condição de que incorresse no parricídio, isto é, com a condição de que reivindicasse o trono para si.
Assim respondeu Jesus Cristo:
– Para trás, Satanás, pois está escrito: Adorarás o Senhor teu Deus, e só a ele servirás (MATEUS, 4, 11).
Mas, ora, se Jesus responde com tamanha assertividade a Satanás, por que Cristo teria ficado em silêncio diante de Pôncio Pilatos enquanto os fariseus o acusavam?
Quando Pilatos lhe pergunta “O que é a verdade?” (JOÃO, 18, 38), Cristo permanece em silêncio.
Jesus bem poderia ter trazido uma explicação parcial e tática, mas a consciência expandida quer dar a cada um conforme o momento de necessidade e liberdade.
Se Cristo houvesse se batido contra Pilatos, o sangue voltaria a tingir a porta dos templos.
Se Jesus houvesse obrigado Pilatos a acreditar em seus ideais, a transformação se veria reduzida a uma mera coação, sem que o governante romano pudesse transvalorar seus próprios valores mediante uma nova consciência.
Cristo seria, então, um agente da inquisição, alguém que busca uma retratação formal e exterior, sem a dialética entre o transformação moral e seu espraiamento pelo mundo.
Paradoxalmente, o carrasco não conseguiria se libertar de sua vítima.
Pilatos estaria, então, aguilhoado ao exercício da dominação.
Pôncio não conseguiria deixar de ser Pilatos.
Assim, o silêncio de Cristo pressupõe a liberdade.
“A humanidade”, reconhece o grande inquisidor, “teve sempre tendência no seu conjunto para organizar-se sobre uma base universal” (Os Irmãos Karamázov, p. 193).
Mas a universalidade tem se constituído historicamente como o chicote contra o dorso dos dominados e dos diferentes.
Assim, os egos nacionais que se odeiam de modo encarniçado dentro de um mesmo país conseguem projetar uma aliança temporária para que o ódio seja ejaculado contra os estrangeiros.
O homem que quiser, então, voltar à espontaneidade da massa primitiva deve se ajoelhar diante do grande líder.
Em meio à escatologia de Dostoiévski, aquele que se torna hiperconsciente a respeito do próprio ego pode recorrer ao suicídio como consequência de sua sensação de isolamento insuperável em relação aos homens (Kiríllov, em Os Demônios) ou pode atentar contra a vida alheia para afirmar o poderio estéril de sua própria individualidade (Raskólnikov, em Crime e Castigo).
No primeiro caso, o ego será lembrado através da carta que (não) deixou aos familiares.
No segundo, receberá a pecha de homicida, será considerado culpado e voltará a ser isolado do convívio social que inicialmente renegou.
(O homicida só é exaltado quando reza segundo a liturgia de Nicolau Maquiavel, quando se torna um carrasco a mando dos poderosos – os únicos que não precisam sujar as mãos.)
Assim, em face de Cristo, o grande inquisidor se exaspera:
[Tu] Terias podido então tomar o gládio de César. Por que repeliste esse derradeiro dom? [Tu terias realizado] tudo quanto os homens procuram na terra: um senhor diante de quem se inclinar, um guarda de sua consciência e o meio de se unirem finalmente na concórdia em uma comunidade de formigueiro, porque a necessidade da união universal é o terceiro e derradeiro tormento da raça humana (Os Irmãos Karamázov, p. 192).
Ora, que significa ajoelhar-se diante de um ícone, não tomar decisões por si mesmo e unir-se de modo autoritário a uma comunidade que desfigura o indivíduo?
A estagnação infantil da humanidade.
Assim, o indivíduo trêmulo e desorientado tateia pelas aporias histórias que nos têm impedido de desenvolver uma consciência socialmente autônoma.
Nesse sentido, eis o que diz Dostoiévski em seu esboço de ensaio sobre as imbricações entre socialismo e cristianismo:
A desintegração das massas em personalidades, ou civilização, é um estado doentio e conduz, com relação ao indivíduo, à perda de uma ideia viva sobre Deus e a uma condição em que o homem sente-se mau, está triste, perde a fonte da vida viva, não conhece sensações espontâneas e está consciente de tudo [Dostoiévski (Frank), p. 505].
Dostoiévski se embebeu das aporias de seu tempo para tentar levar às últimas consequências a história como um movimento emancipatório.
A Europa em fins do século XIX hasteava bandeiras revolucionárias.
O positivismo prometia o mapeamento científico do mundo.
Darwin reescreveu o Gênesis.
O socialismo chegara a tomar de assalto a capital do mundo com a Comuna de Paris.
A crise oitocentista parecia estar restrita apenas ao subsolo repleto de contradições que Dostoiévski sempre se preocupou em escavar.
Em face da trajetória do século XX a desembocar em nossos dias, as aporias históricas analisadas pelo grande inquisidor parecem ainda mais encarniçadas. Afinal, conforme sentencia Ivan Karamázov ao fim de seu poema narrativo,
é uma felicidade medíocre atingir a liberdade perfeita, quando milhões de criaturas permanecem para sempre desgraçadas, demasiado fracas para usar de sua liberdade, (…) [já que] esses revoltados débeis não poderão jamais terminar sua torre [de Babel], e não é para tais gansos que o grande idealista [Jesus Cristo] sonhou sua harmonia (Os Irmãos Karamázov, p. 195).
A felicidade medíocre do capitalismo contemporâneo – sorriso fátuo que apenas alguns podem esboçar – tenta alardear o fim da história com a ode irrestrita ao atual estado de coisas. Mas a depressão massificada é um sintoma de que a promessa histórica não foi esquecida. A sociopatologia inocula os germes de uma sociedade outra para além da apatia e do torpor.
Dialeticamente, o grande inquisidor de Ivan Karamázov faz o papel da antítese para voltar a animar o ímpeto de contraposição em relação ao atual estado de coisas. O clérigo autoritário (e cínico) tem um momento de verdade a contrapelo de si mesmo. Assim, a Deus o que é de César, e a todos e a cada um de nós o que até hoje é alienado a Deus.
Flávio Ricardo Vassoler, escritor e professor, é doutor em Teoria Literária e Literatura Comparada pela FFLCH-USP e organizador do livro de ensaios Fiódor Dostoiévski e Ingmar Bergman: O niilismo da modernidade (Intermeios, 2012).
[1] As citações d’Os Irmãos Karamázov ao longo deste ensaio foram extraídas da edição brasileira traduzida por Natália Nunes e Oscar Mendes e publicada pela editora Abril Cultural, de São Paulo, em 1971.
[2] As citações ao esboço de ensaio de Dostoiévski sobre as imbricações envolvendo cristianismo e socialismo foram extraídas do terceiro volume da biografia que o crítico literário norte-americano Joseph Frank escreveu sobre o autor russo. Dostoiévski: Os Efeitos da Libertação, 1860-1865. São Paulo: Edusp, 2002. A partir de agora, farei as citações com a indicação [Dostoiévski (Frank)] e o respectivo número da página. Neste caso, trata-se da página 505.