O garoto Ney e o carinho presidencial

O garoto Ney e o carinho presidencial
O presidente Jair Bolsonaro em visita a Neymar em um hospital em Brasília (Foto: Reprodução/Twitter Jair Bolsonaro)

 

Esta semana, a nossa insaciável capacidade de procurar tretas políticas encontrou um concorrente à altura, finalmente, na “caliente” história do encontro sexual de Neymar com uma modelo em Paris e no decorrente enredo de polícia e escândalo, tendo como epílogo, até agora, uma acusação de estupro por parte da moça envolvida. Meio mundo veio a público apresentar decisões seguras sobre o que teria acontecido no quarto daquele hotel, não apenas proferindo sentenças como sugerindo as punições cabíveis contra os lados considerados culpados. E o Brasil se viu, enfim, não mais dividido entre bolsonaristas e antibolsonaristas, mas entre os oniscientes que já decidiram que o menino Ney é um garoto inocente, que escapou por pouco da armadilha da pérfida messalina, e os clarividentes que sabem com certeza que ele é um macho estuprador, que se aproveitou da sua posição privilegiada de dinheiro e celebridade para violentar sexualmente a moça não apenas uma, mas duas vezes: uma no hotel e outra ao expor a conversa íntima dos dois na esfera pública digital para sepultar-lhe a reputação.

Como nasci tanto sem o dom da onisciência quanto o da clarividência, resignadamente tenho que esperar a decisão dos que vão analisar os fatos e inquirir os envolvidos, recolhendo-me a um provisório ceticismo. Somos poucos, porém, os que resolvemos nos restringir a um modesto “não sei o que aconteceu”. Por outro lado, como é um assunto espinhoso, arriscado, de resolução incerta, portanto uma armadilha para figuras públicas, é claro que eu e você pensamos que os políticos iriam passar longe desta roubada, vez que problemas não são propriamente algo que já lhes falte.

Mas não foi o que aconteceu.

Nesta quinta-feira mesmo, o deputado federal Carlos Jordy, do PSL do RJ, resolveu surfar na onda do momento e protocolou na Câmara dos Deputados um Projeto de Lei que agrava a pena de denunciação caluniosa de crimes contra a dignidade sexual. Aprovado o projeto, quem fizer uma acusação de estupro ou violência sexual que se revelar falsa passa a ter a pena aumentada em até um terço. Não é à toa que a norma legal proposta já está sendo chamada de Lei Neymar da Penha, projetada sob medida para proteger os pobres machos das insídias das ameaçadoras fêmeas da nossa espécie.

Para não deixar o PSL passando vergonha sozinho, o senador baiano Ângelo Coronel, do PSD, também veio a público defender o pobre petiz do assédio da sedutora oportunista. “Minha opinião nesse caso do Neymar:”, disse o recém-eleito senador, no Twitter, “Jogador mais famoso do Brasil, jovem, solteiro, rico. Aí aparece uma modelo desconhecida, endividada e parece simular toda essa história pra faturar uma grana e suas horas de fama. E o pior que conseguiu. Tá na hora de parar com essa novela”. Julgou, sentenciou e pontificou o clarividente senador.

Acham que só os políticos da segunda divisão nacional resolveram meter o bedelho na história? Não seja tolo, meu amigo. Ao contrário, justiça seja feita ao fato de que, antes de todos os outros, o presidente desta nossa república (sic) já havia aproveitado o lançamento de um projeto lá pelas bandas do Araguaia, nos confins de Goiás, para declarar, com o semblante compungido e o olhar sincero de sempre: “Espero dar um abraço no Neymar antes do jogo. É um garoto. Está num momento difícil, mas eu acredito nele”. E demonstrou tanta fé no menino que, na madrugada desta quinta-feira, em Brasília, foi vê-lo em um hospital depois do jogo da seleção contra o Qatar. Tudo para dar aquele abraço bróder ao sofrido garoto e postar uma foto com ele no Twitter, de modo que isso fosse a primeira coisa que a gente visse pela manhã. Neymar e Bolsonaro, dois craques, dois irmãos, dois perseguidos. Lindo.  

Agora, respondam-me vocês: Que presidente e de que República viria a público assumir uma posição não solicitada a favor de um acusado de estupro antes mesmo que a polícia e a Justiça formassem uma opinião sobre o caso? Acho que a resposta certa é “nenhum”, se o universo se restringir a “democracias civilizadas”. Bolsonaro, contudo, não é todo mundo, como se sabe. Ele não precisa que a polícia apure nem que a Justiça julgue, ele já sabe de que lado está.

Se Bolsonaro acredita que Neymar está falando a verdade, isso claramente significa que, oficialmente, ele não acredita na cidadã brasileira que acusou o garoto de tal crime. Não é preciso provas nem evidências de que ela mentiu ou de que ele esteja falando a verdade, é questão de preferência mesmo. Independentemente do que dirão as provas e do que revelarão os fatos, Bolsonaro já fez a sua escolha. E para um presidente que considera que mulheres não são mais que o resultado da fraquejadas dos machos que as geraram, esta é mais que certamente uma escolha óbvia.  Ou não.

WILSON GOMES é doutor em Filosofia, professor titular da Faculdade de Comunicação da UFBA e autor de A democracia no mundo digital: história, problemas e temas (Edições Sesc SP)


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