O feminismo das outras

O feminismo das outras

Para a crítica do fundamentalismo feminista

Se quisermos que o feminismo persista como crítica social, precisamos trabalhar em sua autocrítica. É neste sentido exclusivo que escrevo o que segue.

É espantoso como há, no campo feminista, disputas sobre o feminismo das outras. Há muitas feministas falando sobre o que é e o que não é feminismo. No caso, o das outras. Curioso é que nem as ativistas mais sérias, nem as teóricas mais consistentes gastam muito do seu tempo com isso. Elas tem consciência de que podemos acabar numa disputa que só alimenta o fundamentalismo – altamente anti-feminista, mas muito bem mascarado de feminismo – em vigência e, em consequência, a manutenção da ideologia patriarcal. No Brasil há muitas feministas nascendo. E com elas pontos de vista e posturas que se misturam ao que entendem por feminismo. Não há feminismo puro, mas essas pessoas que chegam ao campo feminista falam muitas vezes em termos de pureza. A pureza é uma invenção da dominação masculina contra a qual é preciso estabelecer uma crítica consistente. Na mesma linha, praticar a autocrítica relativa ao feminismo – crítica à percepção de si mesma -, pode nos ajudar a respeitar o feminismo das outras. Isso, tendo em vista que o feminismo não é uma unidade – a unidade é masculinista – mas é um campo de reflexão e ação onde o dissenso e o desentendimento precisam ser produtivos.

Bom, podemos dizer que as pessoas que não se preocupam muito com a decisão sobre o que é, e o que não é, feminismo estão mais ligadas à prática do feminismo como presença. As que se ocupam, por sua vez, estão preocupadas com o sentido do feminismo.

A prática da presença implica a aceitação do feminismo das outras, a prática do sentido pode facilmente implicar julgamento e a imposição de regras sobre o que “deve ser” o feminismo. Do que se pensa – porque ter certeza é impossível – que uma coisa “é”, deduz-se o que essa coisa “deva ser” numa estratégia altamente falaciosa. Como se existisse uma verdade sobre o feminismo, passa-se a julgar o feminismo das outras. No caso, fala-se do ponto de vista de uma verdade que algumas feministas teriam enquanto outras não teriam. Surgem as donas da verdade do feminismo que falam do mesmo modo que os machistas misóginos que também se acham donos da verdade do feminismo quando falam mal dele. Não sabemos quem prejudica mais a luta contra a dominação masculina…

Quando o feminismo se torna uma espécie de “discurso verdadeiro” ele vai muito mal. O discurso do tipo sofístico que os filósofos na antiguidade clássica aplicaram contra os outros discursos – inclusive o dos sofistas – para reservar o “mercado” das ideias só para si. Isso quer dizer, em termos práticos: eu sou sofista, mas não declaro e, chamando o outro de sofista, me garanto como não sendo o que eu mesmo escondo ao usar o outro como instrumento do ocultamento da minha verdade. É assim que funcionam as projeções. O feminismo sempre incomoda, mas neste último caso, quando as feministas começam a legislar sobre o feminismo das outras, o moralismo – essa ética de fachada – invade o feminismo. Neste ponto, algumas feministas que há muito ganharam a maldosa pecha de grandes “chatas”, “rancorosas”, “mal-amadas”, por parte dos sujeitos da dominação masculina, começam a prejudicar a si mesmas. Não pode deixar de gerar surpresa que feministas gastem mais tempo criticando outras mulheres do que atacando o patriarcado.

Em outras palavras, as feministas quando brigam entre si, só reforçam o que anti-feminismo espera delas, que se autodestruam, que continuem a produzir separação. Caem ingenuamente na armadilha inventada por aquilo que elas pretendiam negar. O fundamentalismo feminista, que julga o feminismo das outras, só prejudica o próprio feminismo e tudo o que ele tem a ensinar à sociedade em termos de política e respeito à diversidade.

Ora, na prática feminista está em jogo o peso da presença ou o peso do sentido. Em termos concretos, o primeiro agrega e o segundo desagrega. Tudo o que o feminismo continua precisando fazer, em termos sociais para avançar é “agregar”, é reunir, unir, juntar. “Sororidade” seria a ética das feministas capazes de proteger umas às outras. A misoginia, a dominação masculina, o machismo estrutural, contam com a desagregação das mulheres, e das feministas, impedindo a ação conjunta que é só o que pode desestruturar o poder na forma masculinista que conhecemos. Os machistas – esses masculinistas em estado fascista – festejam quando as feministas atacam umas às outras.

Born to be Sold: Martha Rosler Reads the Strange Case of Baby M Martha Rosler. 1988.

A preocupação das pessoas com o sentido do feminismo tem dois momentos:

1- no primeiro, um momento necessário. Definir-se feminista é afirmar uma posição política. Mas isso o feminismo como prática de presença também faz.

2- No segundo, a pergunta pelo sentido do feminismo pode levar à sua autocrítica, mas pode também levar à crítica abstrata – ou seja, à crítica sem consistência por desconhecimento do objeto criticado – do feminismo das outras.

Não digo isso para reduzir a importância da pergunta pelo feminismo. Ao contrário, o momento autocrítico é essencial para que o feminismo possa seguir. O feminismo é, em si mesmo, uma pergunta que sempre moveu as feministas e promove há tempos mudanças sociais profundas. Mas a autocrítica não é a crítica abstrata do feminismo das outras. Essa é uma armadilha política na qual caem as próprias feministas quando entram em guerra com suas colegas de ativismo.

Enquanto isso, o machismo estrutural segue matando.

É também certo que aquela que julga o feminismo da outra, não questiona o seu próprio. A postura fundamentalista garante o gozo da verdade. Paranoia é seu nome verdadeiro, mas quem o detém não pode viver sem ele. A pobreza de espírito que dela decorre está garantida também entre as feministas.

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