O fantasma de 1929

O fantasma de 1929
(Arte Andreia Freire)

 

Após anos de aumento da desigualdade, expansão do crédito e formação de bolhas de ativos, um colapso financeiro deu início a uma crise profunda, marcada por um círculo vicioso de diminuição de renda. A redução dos preços dos ativos (ações e imóveis) fez diminuírem os gastos de empresários e de trabalhadores, levando à acumulação de estoques por parte das empresas e à falência de várias delas, especialmente as mais endividadas. A concessão de crédito por parte do sistema financeiro foi reduzida, e o desemprego subiu, afetando aqueles que trabalhavam nas organizações que faliram e os que foram demitidos por aquelas que buscavam cortar custos para compensar a queda no faturamento. Sem renda, os trabalhadores demitidos reduziram ainda mais seu consumo, realimentando a trajetória declinante da economia. Mais falências, mais desempregados, menos crédito, menos gastos – o círculo vicioso. A crise se alastrou e colocou em questão as condições de subsistência de milhões de pessoas. O colapso financeiro, iniciado nos Estados Unidos, logo atingiu as economias europeias e a crise do desemprego adquiriu dimensão mundial.

O parágrafo anterior poderia ser interpretado como uma descrição da crise que se iniciou com a quebra do Lehman Brothers em 2008. Mas poderia referir-se também à crise iniciada quase oitenta anos antes, em 1929. Tais paralelos sugerem a necessidade de investigar a natureza estrutural das crises capitalistas, partindo da suspeita de que as semelhanças entre as duas crises não são mera coincidência. A tradição de pensamento herdeira das obras de Karl Marx sempre colocou essa investigação, sobre a determinação das crises, em primeiro plano. Não obstante as controvérsias sobre o assunto, a trajetória da lucratividade costuma desempenhar um papel de destaque nas interpretações. A queda da taxa de lucro seria uma expressão das contradições inerentes ao modo de produção capitalista e, concretamente, representaria uma redução do excedente disponível para levar adiante a acumulação de capital.

A trajetória da taxa de lucro tem sido objeto de inúmeros estudos empíricos, a maior parte influenciada pelo trabalho pioneiro de T. Weisskopf. Ressalvados seus limites, decorrentes da imprecisão inerente às estimativas e das incompatibilidades conceituais entre o arcabouço marxista e as convenções das contabilidades nacionais, esses trabalhos colaboram significativamente para a compreensão das crises no capitalismo. Há ampla aceitação, por exemplo, de que a crise dos anos 1970 foi provocada pela queda da taxa de lucro nos países desenvolvidos, ainda que se divirja sobre as causas dessa queda. Há também autores, como R. Brenner e A. Kliman, que associam a crise deflagrada em 2008 ao persistente declínio da lucratividade, que supostamente teria ocorrido nas últimas décadas. Diferenças metodológicas sobre a estimação do estoque de capital e sobre o que deve ser incluído na massa de lucros, no entanto, levam a resultados divergentes sobre a trajetória da lucratividade e, consequentemente, a interpretações distintas da crise

  1. Duménil e D. Lévy argumentam de forma convincente que, ao contrário da crise dos anos 1970, nem a crise de 1929 nem a crise atual podem ser consideradas fruto de uma queda da lucratividade. As décadas que precederam os dois colapsos parecem ter sido, ao menos no seu epicentro (a economia dos Estados Unidos), marcadas por uma elevação da taxa de lucro. Segundo essa interpretação, essas crises decorreram da acumulação de desequilíbrios provocada justamente pelas tentativas de elevar a taxa de lucro, revertendo a queda anterior.

No período que antecedeu a crise iniciada em 2008, o ataque contra as organizações dos trabalhadores, aprofundado pelos governos dos países desenvolvidos a partir da década de 1980 (um dos marcos iniciais do neoliberalismo emergente), conseguiu manter praticamente estagnados, em termos reais, os salários da grande maioria dos trabalhadores. Assim, os aumentos de produtividade (embora modestos) foram quase que integralmente apropriados na forma de lucro. Tal ataque foi auxiliado por uma reorganização geográfica da produção de mercadorias, com o deslocamento para o leste da Ásia de uma parcela crescente das atividades industriais, incorporando no circuito da exploração trabalhadores com salários muito mais baixos do que os dos países desenvolvidos.

Desse modo, emergiu da virada neoliberal um processo de valorização do capital que interligava, mais estreitamente do que nos períodos anteriores, várias economias nacionais. Por um lado, a acumulação de capital vertiginosa no leste da Ásia, especialmente na China, dependia do aumento da demanda por mercadorias nos Estados Unidos e na Europa. Tal demanda, por sua vez, provinha das camadas mais ricas das populações desses países, que apropriavam parcelas cada vez maiores da renda total, e também das classes trabalhadoras que, a despeito da renda estagnada, ampliavam seu consumo recorrendo a um crescente endividamento. Essa demanda era também estimulada pelas bolhas de ativos, observadas nos Estados Unidos desde os anos 1990, imensa acumulação de capital fictício que, a qualquer momento, poderia derreter. Por outro lado, a acumulação de capital na China requeria a produção de quantidades crescentes de produtos primários, que serviam de insumo para a produção industrial e de alimento para a reprodução da sua força de trabalho. Assim, os preços do minério de ferro, do petróleo, da soja, da carne e de outros produtos aumentaram. Tal aumento, o chamado boom das commodities, ligou à acumulação de capital chinesa as economias sul-americanas, onde se concentravam parte substancial das empresas capitalistas dedicadas aos produtos primários.

O colapso financeiro iniciado em 2008 representou, nesse contexto, a queda da primeira peça do dominó. A resultante redução da demanda dos países desenvolvidos diminuiu a lucratividade das empresas capitalistas instaladas na China, desacelerando a acumulação de capital. Alguns anos depois, essa desaceleração se refletiu nos preços das commodities, que derrubaram consigo as economias sul-americanas. A crise representou, assim, o colapso do processo mundial de valorização do capital promovido pelo neoliberalismo. Seu deflagrador foi uma instabilidade determinada, em larga medida, pelo endividamento crescente de milhões de trabalhadores com renda salarial estagnada, promovido por um sistema financeiro cada vez menos submetido à regulação estatal e propenso à criação de instrumentos financeiros intransparentes, como vários tipos de derivativos.

Resta ainda, no entanto, um último paralelo com a crise de 1929. Em ambos os casos, a crise do desemprego representou o desfecho de um longo período de repressão sindical, estagnação salarial e desigualdade crescente. A insatisfação popular daí resultante e a perda de legitimidade do sistema político provocou, também em ambos os casos, o desmoronamento do centro do espectro político, abrindo espaço para o crescimento eleitoral de grupos da extrema direita e da esquerda radical. O caso alemão é o mais célebre: antes de Adolf Hitler chegar ao poder, seu partido apresentou um rápido crescimento eleitoral, acompanhado pelo partido comunista alemão, enquanto tanto a social-democracia quanto os principais partidos conservadores perdiam espaço. Essa polarização tendeu, com poucas exceções, a favorecer a extrema direita. O evidente deslocamento do espectro político observado nos últimos anos, com uma aceitação inesperada de discursos racistas, xenófobos e machistas, acompanhado da crise que vem afetando os partidos tradicionais, sugere que o fantasma de 1929 teima em retornar. Voltar à história permite que reconheçamos que há, como havia nos anos 1930, mais de uma saída para o impasse, e buscá-la é necessário para impedir que a tragédia se repita, dessa vez como farsa.


FERNANDO RUGITSKY é doutor em Economia pela The New School for Social Research e professor da FEA-USP

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