O Estrangeiro

O Estrangeiro

por Marília Kodic

Numa manhã de 2002, em um hotel em Berlim, Fernando Meirelles tomava café da manhã quando um senhor se aproximou para elogiar seu trabalho. Ao perguntar para seu agente quem era o sujeito, se surpreendeu: era Sidney Lumet, diretor americano e seu ídolo. Naquele ano, há exatos dez invernos, Meirelles lançava o marco do cinema brasileiro pós-retomada, Cidade de Deus – junto com sua carreira internacional.

Desde então, adicionou ao seu currículo O Jardineiro Fiel (2005), que garantiu o indelével título de primeiro brasileiro indicado ao Oscar de Melhor Diretor; Ensaio sobre a Cegueira (2008), aclamado por José Saramago – que, num vídeo amplamente visto no YouTube, chora ao fim da exibição do filme [assista aqui]; e 360, seu novo longa, que estreia no dia 17 de agosto no Brasil. Com um estrelado elenco incluindo Jude Law, Anthony Hopkins e Rachel Weisz, exibe uma série de  relacionamentos ao redor do mundo e seus desenlaces.

A seguir, Meirelles, aos 56 anos, fala sobre a simbologia freudiana do novo filme e adianta detalhes do próximo, uma biografia sobre o magnata grego Aristóteles Onassis, último marido de Jacqueline Kennedy. Além disso, defende a obrigatoriedade de produção nacional na TV a cabo, analisa o boom das escolas de cinema no Brasil, criticando a falta de educação sobre televisão no currículo do Ensino Básico, e diz que, apesar de querer mergulhar no projeto, o país não estaria interessado em ver uma adaptação de Grande Sertão: Veredas no cinema.

CULT – A atração carnal é o principal elo entre os personagens de 360?

Fernando Meirelles – Todos os personagens têm suas tramas desencadeadas por um desejo que não conseguiram frear. Todos são bons maridos, bons pais ou bons cidadãos, mas, como a maioria de nós, são levados por seus desejos e paixões a fazer o que não gostariam de ter feito. É a velha luta entre nosso lado racional e o primitivo, já muito percorrida desde O Mal Estar na Civilização, de Freud, em que ele demonstrou que, para construirmos uma civilização/cultura, precisamos reprimir nossos desejos. Ao sublimar a pulsão sexual criamos arte, ciência, religião, organizações sociais etc.

Claro que hoje somos muito mais tolerantes com o desejo alheio e com os nossos próprios do que éramos quando Freud escreveu seu texto (aliás, ele o escreveu 30 anos depois da peça de Schnizler, na mesma Viena), mas mesmo assim ainda não superamos esse conflito.

A estrutura do filme constitui um círculo imaginário ligando o primeiro ao último personagem – como na peça La Ronde, de Arthur Schnitzler, que inspirou o roteiro – mas, muitas vezes, passa de um a outro sem aparente ligação. Isso foi intencional?

A peça do austríaco tinha essa estrutura circular e foi uma grande novidade há 105 anos. Mas, se usada hoje, seria adivinhada pela audiência no primeiro terço do filme. Então o Peter Morgan, roteirista, criou um círculo mais quebrado, meio cubista, onde a figura final não é tão circular assim. O público de hoje está mais esperto em relação a formatos. Creio.

Um jornal brasileiro publicou que você estaria intermediando a regência de Anthony Hopkins na Orquestra Filarmônica Bachiana de São Paulo. É verdade?

Hopkins compõe para orquestra e rege também. Recebeu um convite de vir apresentar uma peça sua com a Orquestra Bachiana no dia 5 de agosto, mas infelizmente não pôde vir. Eu apenas os ajudei a fazer a ponte com o ator. Em 360, ele compôs e tocou a música do seu personagem. É um pianista muito bom também, além de pintar e dirigir. O camarada é multitalentoso. Por que será que algumas pessoas vêm com todos os softwares no pacote?

Ao longo de sua carreira, você pôde conhecer inúmeros atores e diretores de calibre. Qual destes encontros tem como mais importante?

No Brasil, o Goulart de Andrade e depois o Guel Arraes me abriram muitas portas antes de eu começar a fazer filmes. Sou muito grato a eles. Fora do Brasil, lembro que em 2002 estava num hotel em Berlim tomando café da manhã e veio um senhor falar comigo. Elogiou Cidade de Deus, disse que não entendia como eu conseguia filmar daquele jeito, aparentemente tão desorganizado, me fez perguntas sobre como eu tinha feito esta e aquela cena.

Quando se afastou, perguntei ao meu agente, que estava ali comigo, quem era o camarada. “É o Sidney Lumet”, disse. Foi uma surpresa, nunca havia conhecido nenhum diretor internacional e justamente ele me aparece assim do nada. Me envergonhei e lamentei não tê-lo reconhecido, pois queria ter dito que o primeiro livro que li sobre direção foi Fazendo Filmes, que ele escreveu. Aprendi todos os rituais com ele. Recomendo o livro, aliás.

Pela primeira vez, as novas gerações de cineastas brasileiros têm uma educação cinematográfica formal, o que já acontece há algum tempo em países vizinhos, como a Argentina. Como isso afeta as produções?

O Brasil tinha seis ou sete escolas de cinema até a década passada. Nos últimos dez anos, devem ter sido abertos uns 60 novos cursos. Foi uma explosão. Não achei um levantamento no Google, mas chuto que nestes anos o número de alunos de audiovisual saindo das escolas saltou de duas centenas para milhares por ano.

A maioria dos diretores da minha geração, como eu, veio de outras áreas e começou a fazer cinema sem uma visão completa da profissão. Nas escolas, os alunos compreendem melhor as regras do mercado. Pelo que vejo com estagiários na O2 Filmes, essa nova geração está muito mais interessada em se comunicar com o público do que em provar que são gênios e que estão prontos para dinamitar o Louvre e reinventar a arte, um mal que assolou outras gerações.

Sem entrar no mérito da qualidade de cada escola, com o simples fato de termos dez vezes mais profissionais escrevendo, fotografando, dirigindo etc., certamente é de se esperar que mais gente talentosa desponte. E já que falamos em educação, acho curioso que as escolas tenham curso de literatura em seus currículos, mas não falem sobre cinema e TV. Seria ótimo termos uma audiência mais crítica e a escola me parece o lugar certo para formá-la.

Quantas horas um garoto passa lendo por ano e quantas horas ele passa vendo TV ou filmes? Faz sentido ensinar a “ler” o que se assiste diariamente.

Como avalia a qualidade da TV aberta no Brasil atualmente?

Talvez pela chegada de muita gente na classe média no Brasil, mais do que nunca a TV aberta está focada em conquistar essa audiência, o que significa popularizar a programação.

Lembro que a Globo, até a década passada, arriscava mais em projetos que sabia de saída que não seriam campeões de público. Por força do mercado, isso tem deixado de acontecer e eu compreendo este movimento. A boa notícia é que, com a obrigatoriedade de produção brasileira nos canais a cabo, este setor está explodindo. Como são segmentados, esses canais podem e precisam arriscar mais para buscar seu público.

Creio que daí virá o que de mais interessante veremos na TV brasileira nos próximos anos. Aliás, hoje, o que mais gosto da produção brasileira está no cabo: Um Pé de Que, Larica Total, As Olívias, Casas Brasileiras… Nos EUA já vem acontecendo isso, as grandes séries que estão surgindo são todas produzidas por canais a cabo e não mais pelas TVs abertas. Estamos indo nessa direção.

Quanto à obrigatoriedade de produção nacional na TV paga – lei que entra em vigor em setembro deste ano –, vê algum argumento contra?

Acho que nem os executivos de algumas dessas TVs que espernearam no começo discordam que essa lei é um divisor de águas – não só na TV, mas em nossa indústria do audiovisual.

O argumento de que o espectador tem o direito de assistir ao que quiser é cínico e não se sustenta por dez segundos. Os canais precisarão transmitir três horas de programação brasileira por semana em horário nobre. É muito pouco, mas é um grande passo. Ponto para o governo, que bancou a pressão dos lobbies contrários à lei.

Este ano, Cidade de Deus – seu último filme produzido por aqui – completa dez anos. Que valor  emocional o filme tem para você? Ainda mantém contato com os atores?

Cidade de Deus foi meu trabalho mais pessoal, pois desenvolvi o projeto desde o início e financiei eu mesmo a produção, o que significa que não respondia para ninguém, apenas para mim mesmo.

Não tenho dúvida que minha carreira hoje está ligada a este filme. Mantenho contato com parte do elenco, pois após as filmagens foi criada a ONG Cinema Nosso, que continua funcionando hoje num prédio na Lapa, no Rio, e faz um trabalho impressionante ligado ao cinema. Este ano, alguns ex-atores do filme lançarão um documentário sobre o que aconteceu com parte do elenco dez anos depois, e eu lançarei uma HQ para comemorar a data.

Você já disse ter vontade de filmar Grandes Sertões: Veredas. O que mais o atrai na obra? Tem planos de materializar a ideia?
Esse é o livro que mais me impressionou até hoje. Cada parágrafo traz preciosidades não só no que é escrito, mas como é escrito. Tudo na história tem dois lados, tudo que parece ser, não é.

Apesar de querer muito mergulhar nessa história e naquela paisagem cheia de buritis para poder compreender mais o livro, acho que o espectador brasileiro não estaria tão interessado assim na história. E, como seria um filme muito caro pela quantidade de jagunços, guerras e dificuldades de filmagem, acho que não vou mais fazê-lo. Não se justificaria. Uma pena.

Recentemente, Walter Salles disse que “um cineasta tem que ficar próximo de suas raízes para ter o que dizer, a menos que decida fazer parte de outra cultura”. Concorda? Tem planos de voltar a produzir no Brasil?

Acho que o que acontece quando saímos da nossa cultura é que tendemos a virar cidadãos do mundo e não a fazer parte de alguma outra cultura nacional. Eu não tenho nenhum interesse em fazer um filme sobre algum evento da França ou da Inglaterra, por exemplo, a menos que tenha algum reflexo global.

Se não estou no Brasil, instintivamente passo a olhar o mundo como um todo. Foi assim no Jardineiro, no Ensaio, no 360 e assim será em Nemesis, meu próximo longa. Nunca pensei em fazer isso, mas é para onde vai meu interesse quando sou estrangeiro. Mas quero, sim, voltar a filmar no Brasil, e muito. Minhas raízes estão aqui e são bem fundas.

Seu próximo projeto, Nemesis, é sobre Aristóteles Onassis e Jacqueline Kennedy. Pode adiantar algo sobre a obra e quem serão os protagonistas?

O filme será uma adaptação de Nemesis, uma biografia do armador grego escrita por um jornalista inglês chamado Peter Adams. O centro da história é o ódio que Onassis nutria por Bobby Kennedy e o reverso. O cara mais rico do mundo contra o cara mais poderoso. Muito escândalo, muito sexo, algumas mortes, tudo num ambiente muito chique, na época mais chique que houve no século passado, os anos 1950 e 60.

Se tudo der certo, devo rodar em novembro entre a Croácia, Budapeste e a Inglaterra. Se não conseguir fechar o elenco em 30 dias, talvez a gente empurre para abril. O elenco ainda não está fechado – mas, mesmo que estivesse, não poderia contar, pois será anunciado no festival de Toronto em setembro.

(1) Comentário

  1. Que me desculpe o grande realizador Meirelles, mas qualquer um que defenda a obrigatoriedade de programação nacional em todos os canais da TV a cabo é, no mínimo, burro, mas pode ser pior: mal intencionado, protecionista e corporativista, sem falar em puramente autoritário. Os programas apontados por ele são absolutamente ruins, sem exceção. Não é porque ele gosta de ver que eles prestam, e não é porque há gente fazendo algo que esse “algo” seria necessariamente bom e deva ser veiculado. Ele diz que o argumento dos espectadores é “cínico” e “não se sustenta”, mas não diz nada para derrubar — simplesmente porque não tem como derrubar. Eu, como assinante, quero fugir da lixaria da TV aberta e exijo programação de excelente qualidade, inclusive sem dublagem alguma, sem cortes, no original. E, para ver TV a cabo, pago bem caro (e esse ponto infelizmente nunca varia: pagamos uma das TVs a cabo mais cara do mundo, pra variar) e escolho, sim, o que quero ver. Não é novelinha, nem qualquer filminho de roteiro péssimo e atuações medonhas, não é programa de “humor” sem humor, coisas típicas da produção nacional. Obrigar canais é ditatorial e intrusivo, obrigar consumidores é ditatorial, desrespeitoso e provavelmente inconstitucional. Quer programação nacional na TV paga? Não faça como Multishow e GNT, que abriram as pernas e são TV aberta disfarçada: aprenda a fazer e faça BOA programação nacional e seu espaço estará garantido naturalmente. TV paga serve para isso.

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