O epitáfio de um mundo desaparecido

O epitáfio de um mundo desaparecido

Fotos: Bob Sousa

“A pretensa abertura do gosto moderno para as belezas do passado e de outros lugares, desde os primórdios do romantismo, é ilusão; nós achamos que apreciamos tudo, mas triamos em toda parte. Rejeitamos a velha estreiteza do bom gosto para nos enfiar em outra; damos a nós mesmos o direito de buscar em qualquer lugar aquilo que pode satisfazer nossa paixão moderna pelos licores fortes”.
Paul Veyne, Elegia erótica romana. Tradução por Mariana Echalar.

Após a brutal tirania exercida por Calígula (37-41) e Nero (54-68), cujos governos imperiais foram marcados por grande agitação política, temperada sempre com muito sangue e violência, Roma conheceu, a partir do ano 96 da era cristã, o advento dos “cinco bons imperadores”: Nerva (96-98), Trajano (98-117), Adriano (117-138), Antonino, o Pio (138-161) e Marco Aurélio (161-180), aos quais a História conferiu a fama de ciosos administradores e convictos pacifistas. Nascido no ano de 76, em Itálica (Bética), Públio Hélio Adriano sucedeu a Trajano aos 41 anos de idade, sendo orientado em seu governo por uma dupla preocupação: manter a paz e dar continuidade à organização do Império, com cuja unificação total passa a sonhar a partir da série de visitas que empreende pelos domínios romanos, primeiramente, de 121 a 126; depois, de 128 a 134. Dos cinco distintos imperadores, talvez seja Adriano aquele que mais tenha se deixado influenciar pela cultura helênica clássica, conforme se pode depreender da leitura de seus Pensamentos, nos quais permite vazar seu grande apreço pelas artes, pela literatura e pela filosofia da Hélade.

Essa fascinante figura do mundo greco-latino antigo, cuja história pessoal e política chegou até nós de maneira bem documentada, embora sobre ela pairem também, como é natural, certas lacunas, ávidas de serem reconstituídas por pura fantasia e imaginação, atraiu a atenção na primeira metade do século passado da escritora belga Marguerite Yourcenar, que em Memórias de Adriano (iniciado em 1924, mas publicado somente em 1951, pela prestigiosa editora Gallimard) transformou o imperador no protagonista de um romance histórico de caráter epistolar que obteve grande sucesso entre o público leitor. Romances históricos, todos sabemos, constituem um típico fenômeno de sociologia de massa, por seduzirem, com sua linguagem fácil e atraente, aqueles leitores dispostos a acreditar piamente na verdade da ficção. Este certamente não é o caso de Yourcenar, cuja obra, nas palavras de Otto Maria Carpeaux, “resiste à análise pelo historiador mais crítico”, fazendo uso de “recursos mais amplos, de erudição e de força poética”. É o mesmo Carpeaux quem dá a chave para a compreensão do poder de atração deste gênero ainda tão em voga na cultura ocidental, que nos últimos tempos, vale observar, migrou do cinema para as séries de TV: “Uma das grandes seduções do romance histórico é a possibilidade de tecer comparações, mais ou menos subentendidas, mais meditadas ou mais baratas, com acontecimentos da história contemporânea”.

Sobre o fato de Yourcenar ter concebido sua obra em torno de um antigo imperador humanista, amante da paz e da cultura, para tratar, em termos comparativos, do mundo moderno no qual ela própria vivia, recém-emergido de duas grandes guerras consecutivas, que fizeram a barbárie corroer os pilares da cultura e da civilização, não pairam dúvidas. A questão é que tipo de interlocução o teatro contemporâneo, realizado sob as condições históricas que gravitam em torno deste ano de 2016, pode estabelecer com uma figura como a de Adriano, morto duas vezes: não somente em 138, em Baias, como figura histórica, em virtude das condições do tempo natural, como também em 1951, por intermédio da pena de uma escritora que o havia ressuscitado para tentar privar da sabedoria da consciência de toda uma experiência vivida, condição esta que normalmente uma personagem literária adquire nos momentos finais de sua existência. (“Ninguém morre tão pobre que não deixe alguma coisa atrás de si” é a proposição de Pascal examinada por Walter Benjamin em seu célebre ensaio sobre a narrativa).

O espetáculo Memórias de Adriano, ora em cartaz na sala Jardel Filho do Centro Cultural São Paulo, está assentado em torno dessa dupla morte, propondo, por sua vez, como seria de se esperar, que tanto o Adriano histórico quanto o Adriano literário sejam ultrapassados por um Adriano concebido pela forja do teatro contemporâneo, de onde ele extrai a força e o vigor para o advento de uma terceira vida, processo no qual foram fundamentais os empenhos criativos de Felipe Lima (idealizador do projeto), Thereza Falcão (responsável pela dramaturgia) e Inez Viana (que assina a direção) e cujo resultado apoia-se no imenso talento de um ator do calibre de Luciano Chirolli, por intermédio do qual a figura do velho imperador chega até nós.

O espetáculo constitui uma espécie de recital, que não abre mão, de modo geral, da simplicidade de sua execução, embora não descuide em momento algum do rigor das ideias que quer veicular. Quando dá início ao seu discurso, convertendo cada espectador, por meio do aqui e agora do teatro, no interlocutor a quem se dirige no romance de Yourcenar, Adriano passa a exibir aquele tipo de eloquência que era peça essencial no funcionamento das civilizações antigas, mobilizando grandes auditórios e servindo de meio de comunicação social. O bem falar do imperador – que a pena da escritora belga – reconstrói com muita sensibilidade – repercute em nós as palavras de Cícero em Do orador (traduzidas aqui por Maria Helena da Rocha Pereira): “Na verdade, para já não falar da utilidade da oratória, que é soberana em toda a cidade que viva em paz e com liberdade, é tal a fascinação da habilidade oratória que nada de mais aprazível pode ser percebido por ouvidos ou mentes humanas? Quem pode descobrir canto mais doce do que um discurso equilibrado? Um poema mais harmonioso pela cadência artística das cláusulas verbais? Um actor mais agradável ao imitar a verdade do que um orador, que a apoia?”.

Mas a eloquência de Adriano, como logo se pode perceber, não resvala na retórica vazia, vaidosa e empolada, de que há vestígios na vida moderna nos âmbitos jurídico, acadêmico e jornalístico, por exemplo. Antes, ela está mais preocupada em constituir uma ferramenta para o exame da ideia do bem, deixando-se contaminar por um registro elegante e grave e emoldurar por uma sólida preparação cultural. (Não à toa Adriano mandou construir uma biblioteca pública em Atenas, cujas paredes ainda hoje estão conservadas). As qualidades técnicas do discurso do imperador atendem à exigência das qualidades morais, tão caras à velha educação latina, tão necessárias ao mundo do pós-guerra, por onde transita o texto de Yourcenar, tão inúteis aos homens sentados na plateia hoje, a quem se dirige o ator travestido de monarca. É sob a ótica do exame das qualidades morais também que se pode compreender a longa passagem que trata da relação de Adriano com Antínoo – de natureza erótica, sim, mas temperada pela forja da velha instituição da efebia, tão cara ao mundo grego. Adriano negligencia o amor dedicado do arrebatado Antínoo – nome cuja composição morfológica significa “aquele que resiste (antí) à inteligência (nóos)” ou “aquele que age inadvertidamente” – e colhe os frutos amargos dessa falha moral.

A grande qualidade da encenação é manter preservadas a vitalidade e a beleza do discurso de Adriano, procurando formas sensoriais modernas que garantam a mediação deste discurso para conosco, de modo que palavras tão belas não se enrijeçam, estuem e quebrem antes de atingirem nossa sensibilidade contemporânea. Naturalmente, em uma empreitada dessa ordem, o ator é o elemento responsável por operar tal mediação. Desse modo, a escolha por Luciano Chirolli não poderia soar mais acertada. A energia criativa, a extensa paleta de nuances emocionais e o pleno domínio dos recursos vocais e corporais que ele põe à disposição do personagem são notáveis e valem por si só a ida ao teatro. Mas há também outras mediações modernizadoras: a trilha sonora, composta e executada ao vivo por Marcello H.; a cenografia de Aurora de Campos; os figurinos de Juliana Nicolay e a iluminação de Tomas Ribas – todos eles, em maior ou menor medida, constituindo elementos responsáveis por criar certa atmosfera pop, desistoricizada, investida da beleza efêmera de que são feitas as coisas sem ênfase nos dias de hoje.

O contraste é intencional e proporciona expressivo impacto em nossos espíritos. Memórias de Adriano parte de duas esferas simbólicas – a da Roma das lendas, da República e dos césares, que “ilumina com uma luz viva cerca de doze séculos da história da humanidade”, de acordo com o reputado historiador e latinista francês Pierre Grimal, e a da “posse de um mundo interior”, conforme anuncia Marguerite Yourcenar nas notas que acompanham a edição de seu romance histórico – para chegar à forma do epitáfio de ambos os mundos, hoje totalmente desaparecidos. Tendo o lirismo cultista das velhas elegias latinas de Catulo, Propércio e Ovídio e a refinada erudição de uma grande narradora da língua francesa por companhias, o Adriano dos dias de hoje resiste como pode, mas acaba por se revelar uma figura obsoleta, seja lançando-se ao dramatismo desabrido da Canzone per te, de Sergio Endrigo e Sergio Bardotti, seja dando livre curso a um modo de subjetivação que não tem outro compromisso senão o de fazer o homem conciliar-se consigo mesmo, insuflado pelos valores humanistas mais fundamentais: a estabilidade política e social, o respeito às leis e o apreço às artes, à literatura e à cultura.

Memórias de Adriano
Onde: Centro Cultural São Paulo – Sala Jardel Filho (Rua Vergueiro, 1000 – São Paulo)
Quando: até 28 de fevereiro (sextas e sábados, às 21h; domingos, às 18h30)
Quanto: R$ 20,00
Info: (11) 3397-4002

 

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