O eleitor paranoico
O eleitor-paranoico atua a partir de uma certeza que não admite contraste ou contestação (Arte RevistaCULT)
A dessimbolização do mundo
O capitalismo, segundo Dany-Robert Dufour, após consumir os corpos (a noção de “corpos produtivos” é, nesse sentido, um excelente exemplo), passou a consumir os espíritos, como “se o pleno desenvolvimento da razão instrumental (a técnica), permitido pelo capitalismo, se consolidasse por um déficit da razão pura (a faculdade de julgar a priori quanto ao que se é verdadeiro ou falso, inclusive bem ou mal). É precisamente esse traço que nos parece propriamente caracterizar a virada dita ‘pós-moderna’: o momento em que uma parte da inteligência o capitalismo se pôs a serviço da ‘redução de cabeças’”.
A racionalidade neoliberal, que transforma tudo e todos em objetos negociáveis, e só se preocupa com o lucro e a acumulação do capital, além de elevar o egoísmo à condição de virtude, produz um fenômeno: a dessimbolização (que alguns preferem identificar como uma mera mutação do simbólico), o desaparecimento dos valores e limites que condicionavam a civilização.
A partir da diminuição de importância tanto da pessoa humana quanto de valores como a “verdade” e a “liberdade”, que cada vez mais passaram a ser tratados como se fossem “mercadoria”, as explicações forjadas na modernidade, que procuravam dar conta de um mundo em que o ser humano não mais seria instrumentalizado, de um mundo em que o sujeito seria o centro de referência para todos os fenômenos, se tornaram obsoletas.
Essa dessimbolização/mutação do simbólico gera modificações sensíveis na posição dos cidadãos, em especial na figura do eleitor. Quanto menos limites tiver, e mais “livre” (e acrítico) for o eleitor, quanto mais esvaziada a linguagem, maior a possibilidade de que seu voto e suas manifestações políticas potencializem o arbítrio.
O esvaziamento da linguagem leva a distorções na percepção da realidade e nas práticas políticas, inclusive no julgamento típico do momento de votar. Ao desaparecer o justo a priori, quando a política fica reduzida à identificação dos “amigos” e dos “inimigos” (e a correlata guerra entre eles), se os valores e limites democráticos encartados na Constituição da República são desconsiderados, o voto passa a depender exclusivamente do imaginário de um eleitor egoísta e acrítico.
A hipótese da Eleitor Paranoico
As leis, que regulavam o gozo e impunham limites externos ao sujeito, cada dia mais passam a ser relativizadas ou ignoradas. Pessoas agem sem qualquer limite em um mundo percebido como sem limites. Avanços tecnológicos levaram à crença de que tudo é possível. A técnica, como toda manifestação carregada de ideologia, ilude e nubla a percepção do sujeito. Ao mesmo tempo, o capitalismo, em sua nova versão sem luvas, revela-se insaciável: não há limites ao lucro e à acumulação do capital (os inimigos do mercado e do capitalismo financeiro devem, portanto, ser neutralizados). O egoísmo tornou-se uma virtude.
Essa mudança da economia psíquica, do sujeito neurótico, preocupado e atormentado com os limites e a tradição em que foi lançado ao nascer, para o sujeito psicótico (ou, na melhor das hipóteses, o sujeito perverso), que desconhece (ou goza ao violar) limites, acaba por produzir mudanças na hora da eleição. Tem-se, então, a hipótese do eleitor psicótico.
O mecanismo essencial da psicose, como lembrou Lacan, é a foraclusão do Nome-do-Pai, ou seja, em apertada síntese: a não-inclusão da norma edipiana. O “não”, aquilo que figura como limite externo imposto por um terceiro (e os mitos trabalhados por Freud, tanto o do Édipo quanto o do Pai da Horda, são narrativas sobre a existência de limites), deixou de ser introjetado pelo sujeito. Um eleitor que não reconhece o “não” (o não poder agir fora dos limites da lei adequada à Constituição da República; o “não” que veda tratamento discriminatório entre homens e mulheres; o “não” que veda a pena de morte; o “não” que assegura a dignidade da pessoa humana etc), atua fora dos marcos democráticos, uma vez que a existência de limites ao exercício do poder, inclusive ao poder de votar, é condição de possibilidade da vida democrática.
Aquilo que foi foracluído do lado de dentro, retorna com força no lado de fora, no mundo sensível, na rua, sob a forma de delírios ou alucinações (não por acaso, ao clínico interessa o retorno do foracluído). No caso de um eleitor marcado pela dessimbolização, o que foi foracluído retorna no momento do voto e, principalmente, na adesão a versões parciais, na formação de convicções e nos quadros mentais que condicionam sua atuação. A dessimbolização explica, em grande parte, a razão pela qual pessoas que necessitam de políticas sociais voltadas à redução da pobreza votem em políticos comprometidos com o fim dessas políticas ou que mulheres que se afirmam feministas (por fake feminist entende-se a adesão ao discurso feminista para se juntar a um movimento que está na moda ou como uma espécie de justificação de gênero para o fracasso pessoal) prefiram votar em homens do que em outras mulheres feministas.
A partir da não introjeção dos limites, a realidade do sujeito da psicose, em especial do paranoico, torna-se povoada por criações inconscientes projetadas nos parentes, vizinhos, colegas ou em pessoas com visibilidade. Os delírios ou versões alucinadas a que adere o sujeito passam a influir na vida pessoal e no trabalho. Forma-se ódio onde antes existia inveja e ressentimento.
Nas eleições em tempos de dessimbolização, a verdade perde importância diante das certezas, ainda que delirantes, dos eleitores. Pense-se, por exemplo, nos ganhos sociais de um governo que podem ser ignorados a partir da “certeza” da “ameaça comunista”. Ou dos discursos de ódio que são relevados diante da “certeza” de que não passavam de uma brincadeira. Ou da naturalização do tratamento subalterno reservado às mulheres através da “certeza” de que o “machismo não existe” (vale lembrar de simpáticos “neologismos” como “co-governadora” e “co-presidenta”, que disfarçam a opção preferencial – e machista – por candidatos homens, mesmo diante das regras eleitorais que aumentaram as verbas do fundo partidário para candidaturas de mulheres). Tem-se, então, o primado da hipótese sobre o fato, uma vez que a voto distancia-se da realidade (trama simbólico-imaginária) para atender à certeza delirante (mero imaginário) do eleitor.
O paranoico, mesmo que muitos não percebam (e o paranoico, não raro, é um fingidor), cortou os laços com as exigências da civilização. Em outras palavras, a sua recusa aos limites significa que ele não admite renunciar às pulsões sexuais. Tem-se, então, a recusa à lei simbólica, típica do momento histórico marcado pelo processo de dessimbolização. O eleitor-paranoico, por sua vez, atua a partir de uma certeza que não admite contraste ou contestação: para ele, admitir a simples possibilidade de estar errado já significaria uma renuncia ao gozo, o que é inadmissível.
Ao não reconhecer limites às pulsões, o eleitor-paranoico afirma um mundo sem lei. Desaparecendo o simbólico, desaparecem também os valores e os limites. A lei torna-se uma construção imaginária do psicótico, ou seja: a lei passa a ser aquilo que o psicótico imagina. A lei torna-se uma criação do paranoico a partir da imagem que ele tem da “lei”, do “justo” e da “ética”. Para o eleitor-paranoico, as leis e os valores democráticos nunca representam dados a serem levados em consideração no momento do voto. Desaparece, também, a preocupação com o outro e com o comum, uma vez que o voto passa a depender do imaginário empobrecido e egoísta do eleitor.
A psicose e os laços sociais
Os discursos são laços sociais que funcionam a partir de limites e como formas de tratamento do real do gozo pelo simbólico. Discursos são sustentados pelo Nome-do-Pai (pelo não-do-pai que funciona como o primeiro limite imposto ao sujeito). A ausência de limites torna o eleitor-psicótico avesso ao laço social.
Não por acaso, o psicótico representa um ameaça para qualquer ordem. Um eleitor psicótico, por exemplo, é uma ameaça à diversidade e à ordem democrática, isso não se dá em razão apenas de sua fala tendencialmente pulverizante e virulenta, mas principalmente porque suas atitudes desfazem as significações adotadas e as conexões entre significantes e significados. No caso desse eleitor paranoico, a tendência ao gozo indomável pulveriza o sistema democrático e cria um novo “ordenamento” a partir das imagens que faz do que é correto, lícito, moral ou justo.
O psicótico ataca o laço social, critica-o, aponta a inconsistência da linguagem como garantidora da lei e do amor. Ao mesmo tempo, ele tem uma postura rígida que o leva à identificação imediata com um significante ideal. Ele acredita ser o “Um”, o líder, o único, o salvador da pátria, aquele que sabe o que é bom para os outros. Ele é a lei. Ele acredita ser aquilo que ele representa, por esse motivo tende à tirania. O psicótico acredita ser o saber e trata a todos como objetos. Ele é megalomaníaco. Sente-se livre e completo porque, como dizia Lacan, tem o seu objeto de gozo no bolso.
Ao contrário do esquizofrênico, que apresenta distúrbios da associação de ideias, o paranoico é um interprete. O eleitor paranoico interpreta condicionado por suas certezas delirantes. O paranoico fica retido por um significante. Significante, por definição, é tudo aquilo que os outros não são. Sua principal característica é ser somente diferença. Um significante não é o mesmo ao mudar de lugar, ao mudar de contexto. Em toda identificação há um traço distintivo: o traço unário, mencionado por Lacan. Há o “Um” que reúne, o “Um” que institui a norma, o “Um” da Lei. Na psicose, o sujeito ocupa a posição desse “Um”, ele é o Um, a que tudo se refere, a exceção a qualquer norma, o lugar de onde se origina a lei. Essa onipotência internalizada pelo psicótico é um dos sinais da ruptura do sujeito com a realidade. O eleitor paranoico cria uma realidade paralela, um sistema social em que ocupa a posição de “Um”, daquele que tudo sabe e tudo pode, daquele que diz o que é justo.
Somos todos paranoicos?
O processo de dessimbolização do mundo coloca uma questão: todos estão loucos? A paranoia tomou conta de cada um? O sistema eleitoral é feito de psicóticos? Por evidente, não. Mutações subjetivas não podem ser tomadas por quadros clínicos individuais. Ademais, pode-se pensar no fenômeno da “foraclusão local”, ou seja, da foraclusão que se manifesta em apenas um aspecto da vida, sugerida por Juan-David Nasio.
Mas, evidentemente, o processo eleitoral abre-se cada vez mais para quadro mentais paranoicos, para lógicas paranoicas de atuação no mundo da vida. Em um mundo cada vez mais dessimbolizado, em que a “verdade” e a “liberdade”, valores democráticos, passaram a ser tratadas como objetos negociáveis, desaparecem os limites éticos e legais que condicionavam os eleitores.
Um mundo dessimbolizado permite o retorno e a naturalização do libertarianismo, o crescimento do fanatismo religioso e a criação de inimigos imaginários. A liberdade acaba reduzida à liberdade de ter, que reduz todos os direitos ao direito de propriedade, ao mesmo tempo em que rejeita os laços de solidariedade social. Apenas um mundo dessimbolizado opera com a dicotomia liberdade versus igualdade, quando na realidade esses valores não são necessariamente contraditórios. Apenas um mundo dessimbolizado substitui tanto a fé autêntica pela verdade revelada, que interdita diálogos, quanto as ideias cristãs de libertação e caridade pelos valores individualistas da chamada “teologia da prosperidade”, a partir da qual milagres são negociados e a fé apresentada com um investimento destinado à obtenção de sucesso pessoal e aquisição de bens materiais. Apenas um mundo dessimbolizado convive com a aceitação acrítica de mentiras, fake news e a demonização dos adversários políticos.
No mundo do eleitor paranoico, a certeza cega da verdade do que se pensa e do que se faz leva a distorções que comprometem a dimensão material da democracia, aquela que diz respeito à defesa dos direitos e garantias fundamentais. Tem-se uma espécie de fantasia tóxica, no qual várias pessoas são chamadas a atuar. Diante dos riscos à democracia, impõe-se responder com mais democracia. É preciso desvelar e desfazer essa fantasia tóxica que pode levar ao fim da democracia por meios formalmente democráticos.
RUBENS R.R. CASARA é juiz de Direito do TJRJ e escritor. Doutor em Direito e mestre em Ciências Penais. É professor convidado do Programa de Pós-graduação da ENSP-Fiocruz. Membro da Associação Juízes para a Democracia e do Corpo Freudiano