O dia de Bloom
John Shevlin como James Joyce no Bloomsday em Dublin (Foto Ruth Medjber)
Tudo começou em 16 de junho de 1904
James Joyce deixou Dublin em dezembro de 1902 para estudar medicina em Paris. Voltou às pressas em abril de 1903 depois de receber um telegrama do Pai, John Joyce: “MÃE MORRENDO VOLTE PARA CASA PAI”. May Joyce morreu em agosto daquele ano e Joyce permaneceu em Dublin, onde, em 10 de junho do ano seguinte, conheceu Nora Barnacle, a camareira do Finn’s Hotel que à primeira vista pensou que ele fosse um marinheiro sueco. Marcado o primeiro encontro para o dia 14, ela não compareceu. Joyce renovou o convite e o primeiro encontro amoroso do casal se passou em 16 de junho de 1904. Estava plantada a semente do Bloomsday.
Um dos principais romances do século 20, Ulisses levou sete anos (1914-1921) e três cidades (Trieste-Zurique-Paris) para ser escrito. Quando os primeiros exemplares desembarcaram do expresso Dijon-Paris, saídos da tipografia de Maurice Darantiere, em 2 de fevereiro de 1922, data do quadragésimo aniversário do escritor, puderam enfim os leitores acompanhar toda a odisseia de Leopold Bloom entre a manhã do dia 16 de junho e a madrugada do dia 17.
A fama do livro já corria quando a tiragem inicial de mil exemplares chegou aos compradores, muitos dos quais já tinham se comprometido com a aquisição da obra depositando uma ficha na livraria Shakespeare and Company, da norte-americana Sylvia Beach.
Mas foi preciso lutar contra a acusação de obscenidade que pesava sobre o livro. As vidas das personagens do romance, com idas a pubs e banheiros, igrejas e bordéis, afrontava à moral, o que fez com que exemplares do livro fossem incinerados nos Estados Unidos e na Inglaterra. E houve também quem reclamasse do mau gosto de Joyce, como o dublinense Bernard Shaw:
Na Irlanda procura-se instilar bons hábitos de higiene nos gatos esfregando-lhes o focinho em sua própria sujeira. O senhor Joyce tentou empregar o mesmo tratamento à temática humana. [Mas] se a senhora imagina que algum irlandês, principalmente em idade avançada, seria capaz de pagar 150 francos por tal livro, pouco conhece dos meus compatriotas.” (Sylvia Beach, Shakespeare and Company, trad. Cristiana Serra, Casa da Palavra).
Flores brancas e azuis
Mas o romance resistiu, e a aventura de Joyce e Nora também, que a essa altura já tinham dois filhos: Giorgio e Lucia. Eles, no entanto, só se casariam em 1931.
Em 16 de junho de 1924, um grupo de amigos presenteou Joyce com hortênsias coloridas de branco e azul, cores da capa da primeira edição de Ulisses, para marcar o que chamaram de Bloom’s day. Joyce, que se recuperava de uma cirurgia oftalmológica na clínica Borsch, em Paris, achou graça e se perguntou se aquela data seria lembrada no futuro.
Em 27 de junho de 1929, ocorreu o primeiro Bloomsday importante: Adrienne Monnier, proprietária da livraria Maison des Amis des Livres, na Rue de l’Odéon, também endereço da Shakespeare and Company, organizou um almoço para comemorar a publicação da tradução francesa de Ulisses. O déjeuner Ulysse, como ficou conhecida a ocasião, ocorreu no Hotel Leopold (que belo nome!), com a presença de Paul Valéry, Édouard Dujardin, entre outros.
As críticas ao nacionalismo e à Igreja Católica fizeram com que Joyce demorasse a ter seu talento reconhecido no país de origem. O primeiro Bloomsday dublinense ocorreu em 16 de junho de 1954. A comemoração contou com John Ryan, Anthony Cronin, Brian O’Nolan, Patrick Kavanagh e Tom Joyce (nesta ordem na foto abaixo) e, para nossa sorte, um curto vídeo amador foi realizado e pode ser facilmente encontrado na internet.
O Bloomsday passou a ser celebrado em diversas partes do mundo. É um evento que reúne acadêmicos e não acadêmicos, especialistas em Joyce e curiosos. Regada à literatura, cerveja, whisky e, às vezes, até rim, é uma festa literária espontânea que demonstra a atualidade e o alcance da obra joyciana e de seu herói-homem-comum Bloom, Poldy para os íntimos. Em Dublin, e agora online, o James Joyce Centre organiza atividades para o Bloomsday desde 1994. Vale a pena ver a programação deste ano em bloomsdayfestival.ie.
O Bloomsday no Brasil
A tradição chegaria ao Brasil nos anos 1980 e hoje é impossível falar de Ulisses por aqui sem pensar no papel dessa festa literária. O primeiro Bloomsday paulistano aconteceu no dia 16 de junho de 1988, no Finnegan’s Pub, organizado por Haroldo de Campos e Munira Mutran. Foi especial porque a ocasião viu nascer a Associação Brasileira dos Amigos de James Joyce, que um ano depois se tornaria a atual Associação Brasileira de Estudos Irlandeses – ABEI. Munira Mutran e Marcelo Tápia organizaram uma ótima síntese dos primeiros anos do Bloomsday de São Paulo em Joyce no Brasil. Antologia Bloomsday 1988-1997.
Em 1998, ocorreu o primeiro Bloomsday no Rio de Janeiro, marcado pela participação de Antônio Houaiss, primeiro tradutor de Ulisses para o português, e da futura tradutora da obra, Bernardina da Silveira Pinheiro. O evento carioca nasceu da iniciativa de José Rache de Almeida e Peter O’Neill. Todos os anos, diversas atividades acontecem no Brasil na semana do Bloomsday. Fiquem atentos.
Um Bloomsday no cemitério
Muitas vezes ouvimos falar no Bloomsday como uma celebração de Joyce, ou da obra de Joyce, ou de Ulisses. Se isso não é errado, é impreciso. No Bloomsday celebramos Bloom. Por isso Bloom’s day, dia de Bloom, personagem central da odisseia joyciana. Tanta coisa saiu errado para Leopoldo naquele 16 de junho de 1904, vamos ao menos deixar que ele tenha um dia só dele.
Mas, claro, cabe de tudo nessa festa que, aliás, pode ocorrer em qualquer lugar. Se pubs são locais propícios a animadas leitura de Ulisses, ambientes mais tranquilos também podem dar lugar à festa. Assim é que em Northampton, na Inglaterra, Peter Mulligan organiza um Bloomsday no cemitério Kingsthorpe. A razão: Lucia Joyce, a filha do escritor, está enterrada lá.
Em 2018, Richard Rose e James Vollmar escreveram a peça Letters to Lucia (Cartas a Lucia), baseada na biografia de Joyce e sua filha. A peça foi encenada – adivinhem onde – perto do túmulo de Lucia.
O talento de Lucia e seu papel na vida de Joyce, aliás, têm sido reavaliados nos últimos anos. Neste mês do Bloomsday, Carol Loeb Shloss, biógrafa de Lucia Joyce, será nossa convidada especial no II Workshop in Progress. Quem quiser acompanhar sua fala pode se inscrever gratuitamente no evento aqui.
Feliz Bloomsday!
Vitor Alevato do Amaral leciona Literaturas de Língua Inglesa na Universidade Federal Fluminense. Organiza o II Workshop in Progress do grupo de pesquisa Estudos Joycianos no Brasil, que ocorrerá entre 31 de junho e 2 de julho.