O desafio da política

O desafio da política
‘Balão vermelho’, do artista Banksy, 2002 (Arte Revista CULT)

 

Muitas pessoas se manifestaram perplexas com a minha decisão de participar de uma candidatura e de uma campanha política. Seja pelo momento assustador pelo qual passa a democracia brasileira, seja pelo que podemos chamar de “a coisa em si da política” que amedronta qualquer cidadão, eu fui bem desaconselhada.

Para alegria de uns e tristeza de outros, não fui eleita. Tivesse sido, faria tudo para implementar o melhor programa de governo dessa eleição no Rio de Janeiro. Participar da produção do programa de governo foi, aliás, uma parte boa desse processo. Para quem não imagina, é bom saber que ninguém faz um programa de governo sozinho. Muitas pessoas se unem para colaborar dentro de suas especialidades, suas pesquisas e saberes. Na construção, um misto de idealismo e pragmatismo, de teoria e de prática, de saber e esperança. Projetar um mundo melhor, no mínimo faz bem à alma e tenho certeza de que, fazendo o que fiz, junto de tanta gente querendo ajudar a construir um mundo melhor, me senti menos mal do que estaria se não tivesse participado.

O relato completo dessa experiência política eu mostrarei em um livro que deve ser publicado no começo de 2019. Vou contar o lado bom e o lado ruim. Falarei das luzes e sombras que compõem a política cujo desenho precisamos olhar mais de perto.

Por enquanto, conto com a paciência do leitor para colocar em cena aquele aspecto que sobressai como a arena concreta das lutas políticas. O lugar da verdadeira disputa quando tudo parece perdido: a subjetividade. Ou, para usar um termo mais antigo e mais simples, a alma.

A sensação de que tudo está perdido se torna cada vez mais comum e é ela que devemos superar em nome da luta.

Vitória do fascismo?

Fala-se de vitória do fascismo. É uma vitória parcial, pois ainda estamos aqui para lutar. Para isso, temos que melhorar os métodos que nos permitam manter a alma viva.

Temos que fazer valer o amor capaz de enfrentar o ódio. Mas tem que ser amor mesmo, amor de verdade. O amor não é um sentimento ou um postura fácil. Ele dá trabalho. É evidente que o ódio é mais fácil de sentir, não exige esforço, ao contrário, causa muito prazer.

Talvez estejamos mais uma vez na guerra entre “Eros” e “Tanatos” – o desejo de vida contra o desejo de morte. A negação, a destruição são compensações fáceis. Além disso, a sensação de que se está vivo quando se odeia é imensa. E é isso também o que temos que superar.

Falo do amor como uma energia psíquica capaz de afetar o poder. Há muitas provas de amor que podemos dar à sociedade. Nesse momento, podemos dizer que é eleger Haddad. Unir as lutas, os movimentos e os partidos de esquerda também exige um esforço que só o amor pode sustentar. Sempre haverá amor no ato de lutar para que a democracia seja real e concreta.

Se os fascismo venceu, mesmo que parcialmente, foi porque muitos contribuíram para a derrocada da subjetividade humana, seja por ação ou omissão. A cada vez que surge um fascista temos que nos preocupar com a nossa parte na produção da subjetividade. Por que um modo de pensar ou um comportamento fascista não nasce só e não se sustenta na solidão.

O fascismo está no discurso de ódio desumano que vemos exposto em falas de líderes fascistas ou de cidadãos comuns nas redes e também nas ruas. Mas ele é, sobretudo, o desejo de aniquilação do outro. Mas o ódio é apenas um afeto manipulável. Como eu já disse tantas vezes, por trás dele, há a inveja.

É o que vemos manifesto no assassinato de Marielle Franco e na profanação delirante de seu nome por candidatos em campanha que se tornaram também os parlamentares mais votados nesse momento.

Nesses dias, lembrei do filósofo alemão Friedrich Hegel ao elogiar Napoleão como a “alma do mundo” a avançar na história e de outro filósofo alemão, Thedor Adorno a constatar assustado que “a alma do mundo” encarnava nos aviões que lançaram bombas atômicas sobre Hiroshima e Nagasaki em agosto de 1945. Os homens que quebraram a placa com o nome de Marielle Franco são o atual espírito do tempo que, em 2018, precisa ser superado. Deliram de maldade com a contribuição de seus adoradores servis, seus eleitores. Nós não podemos seguir como se nada tivesse acontecido, ainda mais agora que estão eleitos com uma quantidade importante de votos. Quem teria votado em tamanha brutalidade? Quem elegeria pessoas capazes de gestos tão destrutivos e maldosos?

É certo que seguiremos e que buscaremos a força da verdade e da esperança para nos amparar. A luta é a única dignidade da política. Mas quem realmente está em luta?

Além do fascismo, o desafio político

Mas o fascismo está também – mais velado – na condição miserável em que são deixadas milhões de pessoas sob a fome. A velha tanatopolítica (a política dos grupos que decidem sobre a morte do outro) – aquela que nas teorias de Foucault poderia ter sido superada – retorna à cena e se mistura à moderna biopolítica  como controle sobre a vida em um tempo em que o nome “vida” nos obriga a pensar mais.

É aterrador pensar que a crueza fascista de nossos tempos é o lado escancarado e diabólico do capitalismo que se manifesta até o desejo e a prática da matança e da aniquilação da memória. O desejo de acabar com a memória, de fazer com que nada exista é o extremo do individualismo que reserva em um mundo apenas para si. Mas um mundo assim já não faz sentido.

Por isso, apesar da fascistização do mundo, o grande desafio político continua a ser a capacidade de comprometer-se com os que mais sofrem.

Não há nada mais desafiador em política.

A subjetividade atual está longe da compaixão. Jogos de poder deturpadores da condição humana e, ao mesmo tempo, parte dela, aliados a meios de comunicação de massa, massacram qualquer perspectiva mais humana ou mais ética no campo da política. O fascismo nada mais é do que a deturpação da subjetividade operada pelos jogos de poder e pelos meios de comunicação de massa em sua tática de invasão na interioridade da pessoa humana. Salvar a subjetividade lúcida, afetuosa, complexa, investir nela é o que há de mais urgente. E isso só será possível com educação e cultura.

O fascismo avançará enquanto não sustentarmos um projeto de humanidade voltado à compaixão, esse tipo de amor que se relaciona à capacidade de sentir a dor do mundo. Não falo da compaixão apenas como um sentimento. Mas como o princípio que deve estar no coração da democracia. Sem ela toda a vida política corre o risco de reduzir-se a mero jogo de poder, sem nenhuma outra função do que manter o poder em benefício daqueles que aprendem a jogá-lo em nome próprio e não se importam com a destruição do mundo.

É nesse momento em que estamos, é esse momento que devemos superar com o trabalho da lucidez, tão difícil e árduo como o trabalho do amor.

(7) Comentários

  1. Prof, acompanho seu trabalho ha anos (por amor e nao por odio).
    Nem sempre concordo, mas sempre respeito pois sempre vi a boa fé, alem de grande conhecimento filosófico.
    Achei que veria neste texto uma autocritica, por isso ate me espantei de le-lo antes do 2turno. Me empouguei no inicio do 10 paragrafo, “se o facismo venceu”…
    A questão principal que decidiu as eleições tem mais a ver com a objetividade das praticas dos governos “progressistas” do que com a subjetividade humana.
    Por conta dos liberais nos costumes (a esquerda) nao colocar o dedo nesta ferida os de costumes conservadores ganham força junto ao povo, que só quer ter paz e cuidar dos filhos. E nao se sentir roubados nos seus sonhos e bolsos.

    Com amor e admiração,
    Ricardo Santos

  2. Os textos da Márcia são fascinantes, porque são inteligíveis… Esteticamente lindos… Quando começo a ler um texto dela me sinto mais inteligente, mais sofisticado, elegante… Sim, elegante. São duros, mas carregados de esperança em dias melhores. Isso e bom, visto que estamos vivendo tempos sombrios. Mas não podemos desanimar, nisso eu estou com ela, porque é exatamente isso o que os criminosos fascistas querem. Sigamos, pois é o certo a se fazer. Abraço grande e muito obrigado, Márcia Tiburi.

  3. Como é bom te-la de volta querida Marcia.
    Seu texto lucido e iluminado como sempre, nos trazendo a reflexão sobre o que nos é urgente e o que os nossos processos subjetivos demandam de alguma forma.
    Estou muito orgulhoso pela coragem, disposição e o amor com que abraçou sua candidatura. Você é uma vitoriosa.
    Espero podermos continuar a acompanha-la em sua trajetória, seja ela na política, como filosofa, professora e escritora brilhante que és.
    Seja bem vinda de volta.
    Estamos juntos.
    Um abraço afetuoso meu e do Klaus.
    Marcos – RJ

  4. Marcia, desde la Ciudad de México te mando un saludo solidario a tus posturas filosóficas y políticas contra el fascismo: el amor o la subvetividad, creadores y actuantes en la comunidad que somos libremente.

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