O Congênito e o Adquirido

O Congênito e o Adquirido

Do dinheiro e do amor, da beleza e do valor, da doença e dos remédios

Francisco Bosco

Diz a anedota que o milionário de idade avançada está conversando com um amigo mais jovem. Conta a esse que sua nova namorada, de 20 e poucos anos, não para de lhe pedir presentes: roupas, joias, viagens, e acaba de pedir um carro. O jovem comenta: “Que namorada cara, hein?”. Ao que o outro responde: “Rapaz, na minha idade, ou é cara ou é coroa…”. As expressões e piadas sobre a relação entre dinheiro e amor são inúmeras. Convergem, em geral, para o sentido da expressão “dar o golpe do baú”, em que a relação é taxada de ilegítima do ponto de vista do amor: casou-se por causa do dinheiro, e não por amor; mais precisamente, casou-se contra o amor, disposto a sacrificá-lo pelo luxo material. A perspectiva de fundo desse juízo é pseudofilosófica; ela se apoia numa cadeia de oposições que estabelecem um fosso entre os supostos artifício (o dinheiro) e espontâneo (o amor), adquirido e congênito, no limite, falso e verdadeiro. Digo que essa série é pseudofilosófica porque ela reproduz, sem o saber, os termos do vocabulário filosófico, sem chegar, contudo, a questioná-los, sem chegar, portanto, à filosofia, cujo ponto de partida é a questão. E o que é a questão? A questão é o estado filosófico da pergunta. Uma pergunta encerra sempre uma afirmação, um modo de ver a priori. O trabalho filosófico começa por suspender esse a priori da pergunta. Quando uma pergunta perde seu chão, aí ela se metamorfoseia em questão. Daí que se pode detectar um espírito filosófico em sua atitude diante de uma pergunta: o filósofo não é aquele que responde à pergunta, mas que a questiona.

Pois bem, tentemos conduzir o problema ao nível da questão. O que se pode perceber é que a dissociação necessária entre dinheiro e amor não apenas se apoia na série de oposições descrita acima, como moraliza essa série, isto é, faz incidir sobre ela um nítido juízo de valor ao privilegiar um dos lados da cadeia. Assim, entre o congênito e o adquirido, nesse caso, fica-se com o congênito. O dinheiro, por ter sido adquirido, é um aspecto exterior ao sujeito, não lhe é constitutivo. E não se pode amar senão a “essência” da pessoa, já que o amor seria ele mesmo essencial, o que haveria de mais espontâneo em alguém. Esse juízo de fundo é assimilado não só pelo suposto aproveitador, o golpista do golpe do baú, mas também pela suposta vítima. Daí a figura clássica do milionário que se disfarça de pobre, que oculta sua riqueza por temer que os outros só vão gostar dele por causa de seu dinheiro. O milionário submete o outro a um teste, que consiste em que possa amá-lo independentemente de seu dinheiro, ou seja, “pelo que eu sou”.

Mas, curiosamente, a expressão mais cínica desse juízo é a que mais se aproxima de desconstruí-lo. “Dinheiro compra até amor sincero.” Pois, de certo modo, compra mesmo. Em primeiro lugar, deve-se observar que nenhum amor é, assim, tão sincero. A espontaneidade é um mito, e dos mais fracos. Para Freud, por exemplo, o sujeito só pode amar seja segundo uma determinação narcísica, seja segundo a reprodução de uma situação primitiva. No primeiro caso, apaixonamo-nos por nosso eu ideal: pela imagem que fazemos do outro e que corresponde ao que julgamos ou gostaríamos de ser. No outro caso, apaixonamo-nos por qualquer pessoa que substitua, para nós, o papel protetor da figura materna. O sujeito, assim, “tem originalmente dois objetos sexuais – ele próprio e a mulher que cuida dele”, diz-nos Freud. A espontaneidade revela-se tão somente uma construção ignorada. Como diz a canção, “até uma coca-cola é mais pura do que a fórmula do amor”.

Desmoralizar para moralizar

O que me interessa aqui é minar a oposição entre o congênito e o adquirido. Poderia fazer esse caminho pela psicanálise, por Freud e Lacan: para ambos a formação do eu remonta a uma alienação, ou a uma série delas. O eu não tem essência, não é da ordem da metáfora do fruto, mas da cebola: descascando-lhe as camadas (de identificações, de que se forma o eu), resta nada. Mas quero fazer o percurso interrogando o senso comum. Pois outra manifestação do espírito antifilosófico do senso comum é sua propensão à moralização. Moralizar os fenômenos é uma operação que raramente alcança o estado filosófico, que contudo é aquele a partir do qual se deve fundar uma moral. Moralizar, normalmente, consiste apenas em escolher um dos lados de uma oposição. É por isso que tão ou mais importante que moralizar os signos é desmoralizá-los. Não se deve moralizar sem antes desmoralizar.

Falando concretamente, no caso que estamos analisando, é preciso primeiro desmoralizar o problema, mostrando que a cadeia de oposições em que se apoia é arbitrária: o congênito e o adquirido formam uma espécie de banda de Moebius. Nos dois polos do problema: tanto no sujeito que ama quanto no sujeito amado (a expressão “objeto amado” é, para falar com humor, de uma perversão impressionante). O dinheiro é parte tão constitutiva do sujeito quanto sua beleza, sua saúde e quaisquer de suas qualidades (e tão transitório quanto essas). Não há como separar o dinheiro do sujeito que o possui. Para um herdeiro, a fortuna terá consequências decisivas em sua formação. Para um self-made man, a conquista do dinheiro terá moldado o seu caráter, ou terá sido moldada por ele. O dinheiro é um mundo. E uma das razões mais legítimas para se amar alguém é amar o seu mundo. Além disso, o próprio dinheiro pode ser congênito ou adquirido, isto é, herdado ou conquistado. Essa distinção é irrelevante do ponto de vista filosófico, como vimos, mas não do ponto de vista existencial. Aqui (e em tudo o mais), a observação importante, decisiva, que resolve mesmo a questão, superando-a, é a frase de um personagem de Almodóvar: “Uma pessoa é tanto mais legítima quanto mais se parece com seu sonho”. A partir disso, podemos voltar a moralizar a questão. Se há uma crítica a fazer a quem se junta a alguém por dinheiro, é essa: se tal união trai o seu sonho (o que é improvável, se feita por vontade própria), ou se esse sonho é um sonho, existencialmente falando, pequeno. Pois o dinheiro é um mundo, mas pode ser um mundo bem pequeno. Pois o poder é um mundo, mas pode ser um mundo bem infeliz: ser estrela é bem fácil, sair do Estácio é que é o x do problema.

As doenças e os remédios da história

Que a moralização pelo senso comum seja destituída de espírito filosófico, isso o comprova outra relação, aquela entre a beleza e o reconhecimento social. Aqui o caso clássico é o do sujeito belo que não quer se distinguir apenas por sua beleza, mas por sua qualidade profissional. O sinal moral então é invertido: o congênito é bruscamente desvalorizado – como uma espécie de injustiça – e o adquirido, valorizado, sem que se questione a oposição. O que parece estar em jogo, em ambos os casos, é um mecanismo compensatório da economia social das rivalidades imaginárias: desvaloriza-se o que o outro possui em alto grau, e valoriza-se o que ele não possui.

Fora dessa lógica da rivalidade, outro aspecto remonta às oposições entre congênito e adquirido, e também se manifesta como uma moralização. Refiro-me ao uso de medicamentos diretamente ligados ao psiquismo, como antidepressivos, ansiolíticos ou mesmo remédios para disfunção erétil (que muitas vezes tem causa psíquica). É claro que esse problema instaura imediatamente todo um campo complexo de problemas, em que não vou entrar. Quero apenas identificar a postura moralizante que consiste em não ingerir tais remédios com base nas oposições entre dentro e fora, natureza e cultura, puro e impuro etc. Muitas pessoas não se incomodam em tomar frequentemente remédios alopáticos para “o corpo”: antibióticos, anti-inflamatórios, e por aí vai. Mas hesitam, temem ou repudiam a ingestão de um ansiolítico. O que aí parece operar é uma lógica segundo a qual “o corpo” exclui o psiquismo e é considerado uma espécie de exterioridade, sobre a qual outra exterioridade (a dos remédios) pode atuar. Mas o psiquismo seria o núcleo, a essência do sujeito, uma interioridade que seria uma fraqueza moral socorrer com uma exterioridade. Aqui, no fundo, vige a oposição entre natureza e cultura. Mas o psiquismo, claro, é histórico: sobre ele pesam as determinações do Outro. Às doenças da modernidade correspondem os remédios da modernidade. E, mesmo que se tenha uma postura crítica ao espírito do tempo, mesmo que se consiga subtrair de muitas de suas determinações, ainda assim o sujeito se encontra atravessado por ele, exposto a ele, sofrendo suas consequências. A moralização fundada na positivação de uma suposta natureza implica sofrer as doenças da história e recusar seus remédios. É um ganho da psicanálise não pensar o sujeito sob essa lógica moral e pseudocausal, mas sob a lógica do desejo e da diferença entre tratar da estrutura e aliviar o sintoma.

 franciscobosco@revistacult.com.br

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