Privado: O cheiro do espírito adolescente

Privado: O cheiro do espírito adolescente

Da revolução à conservação: a estética do fingimento

Marcia Tiburi

A adolescência é uma fantasia e como tal necessita de uma hermenêutica. Muito se falou sobre a invenção da infância desde a pesquisa de Philippe Áries em História Social da Criança e da Família. Raramente se fala da invenção da adolescência. A novidade é a ideia de invenção que até os dias de hoje não foi suficientemente assimilada pela cultura cotidiana acostumada a pensar de modo conservador, ou seja, reafirmando o axioma impotente “a vida como ela é” pelo qual se depreende que a vida não seria produção pessoal e coletiva, mas algo pronto em que se tornar adulto significaria necessariamente sucumbir ontologicamente a um modo de ser. Também a adolescência inventada para se contrapor ao ideal “a vida como ela é” tornou-se a norma e assim perdeu seu poder revolucionário.

A adolescência foi neutralizada. O ideal que se fez como imagem contracultural foi reduzido à norma conservadora plena dos efeitos práticos que vão do consumismo à depressão epidêmica – também ela derivada da indústria cultural da doença – nestes tempos que, sem medo, posso chamar de sombrios. Assim a adolescência é uma narrativa e um mito destes tempos. Qual seria a base profunda da adolescência que, aflorada, nos faria ver além do mito?

O cheiro do espírito adolescente

Confesso que também eu, nascida no tempo do que alguns analistas mal-humorados chamaram de geração X, tempo de desespero/descaso/ausência de sonho, que não cabe questionar aqui, também eu escuto “Smells like teen spirit” de Kurt Cobain e lastimo seu suicídio. Não é possível deixar de ver que também ele se tornou – foi transformado? – o Jesus Cristo de uma geração. Vítima do ideal contracultural que resultou na ideologia da conservação de que não há saída para os descontentes além do suicídio. Kurt Cobain é também ele a invenção, mito tornado imagem que podemos imitar todos os dias. Mito que autoriza à depressão como uma saída existencial tornada romântica, irônica, disfarçando o mal-estar da cultura em estética musical. O paradigma publicitário do espetáculo não poupa nem um pobre jovem que morreu deprimido. Também ele se torna um ícone da religião oficial da sacrossanta mercadoria. Salva-se enquanto se condena ao nos dar as costas. Que a imagem de melancolia e dor possa fazer parte do espetáculo faz com que aqueles identificados com o paradigma grunge que não tenham sucumbido à própria dor pensem que estão melhores do que ele.

A adolescência se tornou um paradigma e como tal a verdade do nosso tempo. Verdade a ser imitada. Ela foi naturalizada como acontece com toda invenção cultural que passa de uma primeira natureza a uma segunda natureza por esforço do discurso e da ação dele decorrentes. Todo discurso precisa de sacerdotes, e encontra seus ventríloquos. À força de um discurso repetitivo sobre a existência do que a psicologia chamou de “puberdade” criou-se uma narrativa mítica que teve seu panteão na história do rock e do cinema. Podemos dizer que não há adolescência sem o tempo da suspensão: sem os heróis funâmbulos na corda bamba que lida com a infância e a nunca alcançada idade adulta. Heróis são mortos ilustres e servem para ser imitados. Não é possível dizer sem dor que também Kurt Cobain vendeu-nos a adolescência, o mito da eterna juventude, assim como antes dele Dean, Joplin, Hendrix. Os heróis adolescentes não podem ficar velhos, devem morrer para garantir o ideal da marca que representam. A marca é o mito da eterna juventude. O que importava nas imagens de mortos dos mitos, mesmo quando já não eram púberes, sempre foi a inexistência de relação com a “vida real”, aquela que envolve algo como a responsabilidade e que pode para muitos ser mais que desagradável. Melhor a morte. Para os vivos a vida fora da imagem aparece como uma sobra da morte. Nada mais que a sobra. E a adolescência o fantástico ideal inventado pelos adultos para exorcizarem de si mesmos os seus fantasmas de morte e aniquilação projetados na eterna juventude autocontente, marginal, ou melancólica, mas sempre fantasiada.

O adulto simula a adolescência para poder exorcizá-la deixando que outros vivam o ideal do qual ele está salvo, ou para imitá-la em sua aparência como código de uma esperança que não pode ser vivida senão pela emulação. Espectros de adolescentes, espantalhos sobreviventes perambulam em shoppings e ruas. Por trás de seus rostos plastificados, leitores atentos da história podem ver a caveira – a alegoria de Walter Benjamin – pronta a virar pó. A caveira finge ser um belo jovem, cuja canção melancólica podemos ouvir em CDs bem produzidos; cujas roupas surradas podem ser compradas a preços altos em lojas de grife.

Éramos jovens

A adolescência é um sistema. Com seus códigos e padrões, ela compreende também uma estética (a roupa do adolescente é paramento e uniformização) que tem sua moral (o comportamento é um teatro) e, em sua base, um fundamento. O fundamento da adolescência não se sustenta sem o tempo histérico da juventude à mostra que pode, apenas por isso, por poder ser imitada, ser também vivida.

Não podemos esquecer que a adolescência é construída por um discurso. A palavra “jovem” foi abandonada tanto no senso comum como nas pesquisas científicas, antropológicas ou médicas. Isto porque a palavra “adolescência” pretende determinar uma compreensão moderna – pós-moderna? – do fenômeno da juventude sem que a juventude permaneça em cena, assim também não precisamos pensar em nossa “velhice”. Aqueles que falam “jovem” ficam com cara de “velho”, enquanto aqueles que dizem adolescente pretendem ter chegado ao cerne da questão: não são jovens nem velhos, camuflam-se sob o direito linguístico de pertencer ao padrão, enquanto dele se esquivam discursando como se fossem o outro, o que está a salvo daquilo que critica. A pronúncia substitui o saber em uma sociedade de rituais vazios.

A crença na adolescência se dá pelo discurso e, como tal, envolve efeitos práticos. Todos participam dele. Até crianças pequenas são capazes de se autorreconhecerem como pré-adolescentes. São capazes de esperar pelo tempo da “adolescência”. Moças afirmam que homens são eternos adolescentes. Homens esperam que mulheres mantenham o visual adolescente. Contardo Calligaris escreveu um belo livrinho chamado A adolescência (Publifolha, 2000) no qual faz um uso adequadíssimo da expressão “moratória” primeiramente usada por Erik Erikson no final dos anos 1960 para designar o “tempo” da adolescência como vivência de uma crise. Moratória é um termo rico para pensar a qualidade de uma sociedade que evita a todo custo a angústia da morte, em termos mais amenos, da finitude, de nossa temporalidade restringida pela morte da qual o tempo da velhice é sinal. O peso da adolescência como estética e moral em nossa cultura define a vida inteira vivida como moratória. Adolescer sempre foi sinônimo de esperança, sempre foi desejar um outro tempo. No entanto, a covardia adulta que inventa a adolescência, bane o jovem para exorcizar o velho, mantendo a suspensão na linguagem, constrói um espaço de exceção, uma espécie de estado de sítio infinito no tempo. Vivemos sem sentido, em crise econômica, ecológica e política, presos em um limbo entre o que fomos e um devir sempre temido. A adolescência como ideal é o que nos ajuda a fingir que “a vida é como ela é”.

marcia.tiburi@terra.com.br

(2) Comentários

  1. Maravilhosamente adolescente com causa!!!

    Lembro-me da minha juventude, tão política/luxuriante conturbada, nas tardes de domingo na praça do por do sol, vila madalena, pensando em quem falta um olhar atento na história. Certa vez, uma roda enorme, uma homenagem embaçada à paz de espírito, esta ali também um adolescente com causa, e eu podia perceber que isto faria uma diferença na história. Era o até então ainda desconhecido Arnaldo Antunes.
    O mimetismo natural, mecanismo justo do predador e da presa, costuma ser vexatório nas comunidades intelectuais, talvez porque é muito difícil encontrar um intelectual que não camufla seus preconceitos contra as ações instintivas da juventude.
    Infelizmente, quando os instintos se tornou tão bom ou melhor do que a razão, enquanto opera uma verdadeira batalha de vida ou morte entre liberdade e determinismos, precisa praticamente anular-se para dar vez à alteridade. Não adianta ao adolescente provar sua alteridade no trato consigo mesmo e com o mundo.
    Fora dos palcos de música, nos corredores de shoppings, o adolescente não é risível, embora jamais lamentável.

    A “invenção” não é bem recebida no senso comum porque por detrás do conceito, e sua nomenclatura no meio científico, é como ‘a galinha dos ovos de ouro’ que, rss, jamais seria comum.

    “A adolescência foi neutralizada. O ideal que se fez como imagem contracultural foi reduzido à norma conservadora plena dos efeitos práticos que vão do consumismo à depressão epidêmica – também ela derivada da indústria cultural da doença – nestes tempos que, sem medo, posso chamar de sombrios. Assim a adolescência é uma narrativa e um mito destes tempos. Qual seria a base profunda da adolescência que, aflorada, nos faria ver além do mito?”

    A resposta voce mesmo poderia nos fornecer, Marcia, tipo um suposto texto cujo título seria Contracultura ou Contradicção.

    Interagindo heroicamente, Senhora.

  2. Nossa me fez refletir …seus textos são incriveis.Ainda não tenho um conceito , nem conhecimento suficiente para comenta-lo .Estou comentando com a finalidade de lhe dar os parabéns e lhe dizer que ganhou uma nova fã.

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