O baú de Pedro Nava

O baú de Pedro Nava

Sergio Amaral Silva

O domingo, 13 de maio de 1984, já tinha quase acabado. Era aquela hora em que a maioria das pessoas tem certeza de que não vai acontecer mais nada e se prepara para dormir, ante a expectativa de uma nova semana. Pouco antes das dez da noite, o telefone tinha tocado no apartamento do 7º andar da Rua da Glória, 190. Dona Anto­nieta atendeu. Do outro lado da linha, uma voz de homem pediu para chamar Pedro Nava.

Ao desligar, minutos depois, parecendo transtornado, Nava teria dito à esposa, companheira de quarenta anos, algo como: “um trote de mau gosto” ou, segundo outra versão, “nunca ouvi nada tão aviltante (ou obsceno) pelo telefone”.

A pesquisadora francesa Mo­nique le Moing, na biografia A solidão povoada (Nova Fronteira, 1996), levantou a hipótese de que a eventual ameaça ou tentativa de chantagem estivesse ligada à homossexualidade. Para is­so, apoi­ou-se num argumento discutível: a “evidência literária” das páginas finais do último livro de Nava, que termina quando o personagem Conselheiro faria uma revelação bombástica sobre o te­ma. O desenlace, supostamente, ocorreria no volume seguinte, o sé­timo, que ficou inacabado.

Levando consigo o segredo, Nava saiu pouco depois, sem se despedir da mulher, levando no bolso o revólver Taurus 32 cano longo, que havia comprado quatro anos antes, e que ela não conhecia, além de vários documentos, que ele não tinha o hábito de carregar.

Atravessou a rua, andou menos de duzentos metros e chegou a ser visto sentado num banco de jardim da vizinhança, com uma “atitude desolada”. Por volta das onze e meia da noite, parou junto a uma árvore e disparou contra a têmpora direita. Dizem que alguém acendeu um toco de vela ao lado do cadáver, que, coberto por um jornal, só foi liberado depois das duas da manhã. O corpo foi embalsamado por dois amigos médicos, que ele próprio escolhera numa carta escrita em 1975, na qual dava instruções sobre seu sepultamento.

O gesto extremo causou enorme surpresa. Primeiro, porque suicídios de escritores não são comuns. Dentre as exceções estão Er­nest Hemingway e, no Brasil, Her­mes Fontes e Stefan Zweig. Segundo, porque, em sua obra, Nava procurava reconstruir o passado, fazê-lo durável, o que não combina com a decisão de pôr fim à própria vida. Além disso, os amigos o descreviam como extrovertido, falante e bem-humorado, sem os traços da depressão que alguns procuraram diagnosticar depois do episódio final. Tudo a reforçar a tese de que o impulso suicida foi mesmo momentâneo, provocado pelo misterioso telefonema.

O cineasta Joaquim Pedro de Andrade, na ocasião, foi direto: “Há um assassino solto, alguém que tornou a vida insuportável pa­ra Nava. Ele foi morto por um telefonema.” Já a escritora Nélida Piñon disse: “Sua obra pertence a nós, mas o mistério de sua morte pertence a ele. De agora em diante, sua obra vai ter que ser vista sob a ótica do mistério de sua partida.”

Na véspera da tragédia, como fazia há mais de vinte anos, Nava foi à casa do bibliófilo Plínio Doyle, onde todos os sábados se reunia um seleto grupo de intelectuais que incluía Drummond, Afonso Ari­nos e Américo Jacobina La­combe: eram os famosos saba­doyles. Nesse dia, os amigos não identificaram qualquer diferença em Nava, “alegre e cheio de vida, com a verve de sempre”, como disse Alphonsus de Guimarães Filho.

O dia seguinte foi dedicado à elaboração do discurso de agradecimento pelo título de Cidadão Fluminense, que receberia na Assembléia Legislativa dentro de alguns dias. O discurso, que seria a última página escrita por Nava, é uma espécie de balanço sentimental dos 51 anos vividos na cidade do Rio de Janeiro. Na derradeira frase, o escritor promete guardar os nomes dos deputados que o homenageiam “na coluna positiva do deve-e-haver do meu cansado coração”.

Pedro Nava não pretendia se matar: tinha planos, como celebrar os 81 anos, dentro de três semanas; bem como concluir o sétimo volume de memórias (Cera das almas, interrompido na página 36) e em seguida escrever um livro sobre os médicos brasileiros.

Numa entrevista, declarou: “Eu gosto da vida, apesar de não ser feliz. Gostaria de prolongar a vida um pouco mais, mesmo sabendo que muita coisa vai diminuindo com a idade.”

Pedro da Silva Nava nasceu há um século, em 5 de junho de 1903, na cidade mineira de Juiz de Fora, o antigo Caminho Novo das Minas dos Matos Gerais. No início dos anos 1920, mudou-se para Belo Horizonte. Ali, por volta de 1925, em companhia de jovens modernistas “dados às letras”, como Drummond ou Emílio Moura, colaborou, publicando poemas, com A Revista.

Poeta e desenhista, chegou a ter ilustrações suas numa edição de Ma­cunaíma, do amigo Mário de An­drade, de 1929. Mário, com quem se correspondeu durante muitos anos, identificava em seus versos uma “sun­tuosidade artística”. Estudou Medicina, formando-se em 1927 pela Universidade de Minas Gerais.

Antes de estabelecer seu consultório no Rio de Janeiro, onde também era professor universitário, o doutor Nava clinicou em Juiz de Fora, Belo Horizonte e Monte Aprazível. Ao longo de cinqüenta anos de exercício profissional, assumiu um lugar de destaque na medicina brasileira ao se tornar o pioneiro de uma especialidade que ele trouxe para Brasil depois de um estágio na Europa, nos anos 1940: a reumatologia, da qual foi considerado o melhor de seu tempo.

Escreveu dezenas de artigos, ensaios e livros sobre temas médicos, a partir de Território de Epi­dauro, de 1947. Tomando a decisão de se aposentar, fecha o consultório para se dedicar integralmente à paixão que o acompanhou desde a juventude: a literatura.

Em 1972, publica pela Editora Sabiá seu primeiro volume de memórias: Baú de ossos, em que narra a história de seus antepassados portugueses, italianos, cearenses e mineiros. Muito mais que isso, o livro não se limita a descrever episódios vividos pelo autor: revela o ambiente social, político e cultural do Brasil na primeira metade do século, levando o leitor a compreender, mais do que o homem, a época em que viveu. Para ele, como em Proust, a busca do tempo perdido, através de fatos e personagens, é antes de tudo um modo de chegar ao conhecimento de si mesmo.

Antes de 1972, Pedro Nava era conhecido como médico e amigo de escritores, embora um poema seu tenha sido incluído por Manuel Bandeira numa Antologia de poetas bissextos. Sua estréia como memorialista, aos 69 anos, foi saudada pela crítica, que viu no livro a reinauguração, renovada, de um gênero pouco exercitado na literatura brasileira. Baú de ossos foi também um sucesso de público, esgotando seis edições até 1980.

Seguiram-se quatro livros lançados pela José Olympio, a editora do velho amigo e vizinho: Balão cativo (1973), relembrando a infância em Juiz de Fora e a vida no bairro carioca do Rio Comprido; Chão de ferro (1976), em que o escritor conta sua adolescência; Beira-Mar (1978), que termina no momento em que Nava revela a aspiração de dedicar-se à medicina; e Galo-das-trevas (1981), que fala sobre sua clínica em Belo Horizonte, Caeté, Juiz de Fora e a Revolução de 1930. O sexto volume, O círio perfeito, cobrindo o período de 1930 a 1940, saiu em 1983 pela Nova Fronteira. Com essa editora, que lançaria em dezembro o sétimo volume, o autor tinha um contrato que incluía, além dos próximos livros, a reedição daqueles lançados pela José Olympio, assim que esgotados. A Nova Fronteira já publicara, em 1981, a sétima edição de Baú de ossos.

A obra de Pedro Nava, que ficou praticamente esquecida durante quinze anos – a ponto de, nos anos 1990, ser quase impossível encontrar um de seus livros nas livrarias –, foi saudada à época de sua morte como das mais importantes que vinham sendo construídas no Brasil, “um verdadeiro monumento literário, desses raros monumentos que se levantam de cem em cem anos”, destacou o escritor Francisco de Assis Barbosa. Essa grandeza chegou a ser comparada por vários críticos à de outro mineiro, também médico e autêntico mestre no domínio das palavras: Guimarães Rosa.

Inconformado com o fato da No­va Fronteira ter publicado a biografia em que Monique le Moing abordava a suposta homossexualidade de Pedro Nava, seu sobrinho e herdeiro Paulo Penido decidiu não renovar o contrato, entregando os direitos sobre a obra do tio a duas editoras paulistanas: a Giordano e a Ateliê Editorial.

Os seis volumes voltaram a ser editados recentemente, ao lado de cadernos de anotações do autor; notas de viagem; do Correspondente contumaz, contendo as cartas trocadas com Mário de Andrade; dos textos e desenhos de O bicho Urucutum. Paralelamente, vêm proliferando teses universitárias sobre aspectos de sua obra.

Essa obra revela uma profunda paixão pela palavra, que é tratada sensual, sensorial, barrocamente, como objeto a serviço de um retrato que ele, também artista plástico, não se furtava a esboçar. Um exemplo? Este trecho de Baú de ossos, em que Nava discorre sobre a versatilidade do açúcar:

“Batida, no Ceará, é uma rapadura especial, feita com melado sovado e arejado a colher de pau, até o ponto de açucarar. Com que também perde o gosto de rapadura. Vira noutra coisa, devido à versatilidade do açúcar, que é um em cada consistência, e que é ainda um a quente e outro a frio. Que é ainda ostensivo ou discreto, acessório ou predominante, substantivo ou adjetivo segundo se combine ao duro, ao mole, ao líquido, ao pulveru­lento, ao pastoso, ao espumoso, ao sol e ao gel. Compor com açúcar é como compor com a nota musical ou a cor, pois uma e outra variam e se desfiguram, configuram ou transfiguram segundo os outros sons e os outros tons que se lhe aproximam ou avizinham. É por isso que tudo que se faz com açúcar ou se mistura ao açúcar pede deste a forma especial e adequada – que favoreça a síntese do gosto.”

Pedro Nava era descrito pelos amigos como modesto, acessível, generoso, falante e bem-humorado. Deixou uma obra grandiosa, interrompida pela morte trágica, cuja motivação provavelmente nunca será conhecida. Passados cem anos de seu nascimento e quase vinte daquele domingo de brumas, ainda aguarda o reconhecimento como um dos maiores escritores brasileiros, daqueles mestres que sempre têm uma nova lição a ensinar.

Sergio Amaral Silva é jornalista e escritor, ganhador em 2002 do Prêmio Jornalístico Vladimir Herzog de Anistia e Direitos Humanos na categoria “Literatura”.

(1) Comentário

  1. Estou lendo Baú de ossos, de Pedro Nava. Estou na página 30, gostando muito. Sou também memorialista, genealogista é poeta. Já publiquei 2 livros: Genealogia Moderna e Teias da minha Infância. Vai sair o meu terceiro livro. No Baú de ossos, estou conhecendo algumas palavras, que com certeza vai me ajudar na composição de poemas e outros.

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