O autoritário de esquerda e as suas violências do bem

O autoritário de esquerda e as suas violências do bem
Por que há tanta vigilância sobre o posicionamento político de celebridades e influenciadores? (Foto: Reprodução/Instagram)

 

Quem acha que o bolsonarismo tem o monopólio do autoritarismo, não está prestando atenção em todos os participantes do jogo político no Brasil. Sim, é claro que em geral é possível identificar um adepto do bolsonarismo por um certo tipo de personalidade, quer dizer, de padrões autoritários característicos de pensamentos, atitudes e comportamentos que se manifestam particularmente no modo como se relacionam com a divergência política. O autoritário é o sujeito que, ante a pluralidade de interesses e o contraste de ideias e concepções políticas, tende a desconsiderar toda ideia e posição de que discorda e a impor, sem concessões ou negociações, a sua vontade e a sua convicção sobre os demais. 

Autoritário que é autoritário não admite que possa haver verdade ou direito no que os outros pensam, dizem ou desejam, se isso for distinto do seu próprio pensamento ou vontade. Quem dele diverge só pode estar, moral e intelectualmente, errado. E como ao erro nada se concede, o autoritário passa por cima, munido de direitos e certezas autoconcedidos que anulam e superam os dos outros.  

O autoritário costuma ser, além disso, dogmático. Suas próprias convicções não podem ser examinadas e contestadas, a fonte da certeza de que se mune se coloca fora do alcance do argumento e do escrutínio racional. Ou provém da divindade, que ninguém ousará desafiar, ou advém da inconteste autoridade de quem não tem que dar explicações, uma vez que isso o colocaria em um inaceitável pé de igualdade com os demais. 

Pois bem, embora estejamos acostumados a encontrar esses tipos na extrema-direita, há um monte dessas figuras espalhadas pelas esquerdas. E uma das formas mais curiosas em que se manifesta o autoritarismo de esquerda neste momento está no modo como se lida com celebridades e influenciadores que não vêm do campo da esquerda, mas que estão em franco distanciamento do bolsonarismo, com declarações de divergência e desaprovação, e tudo mais. Basta esta pessoa ter um dia criticado ou PT ou ter sido antipetista no passado ou, até mesmo, não ter votado em Haddad no segundo turno de 2018, que qualquer dessas coisas será razão suficiente para autorizar as descomposturas e excomunhões, as demandas de penitência e expiação, as reiterações da inferioridade moral e humana do sujeito que só agora se atreve a dizer que é contra Bolsonaro e tudo o que ele representa. O autoritário se autoriza a punir e assume como função pedagógica a excomunhão. 

Podemos examinar a atitude autoritária da esquerda com os “novos divergentes” do bolsonarismo em dois níveis. O primeiro deles, é o nível tático ou estratégico. A regra de ouro, nesse caso, seria “quanto mais gente tiver contra Bolsonaro, melhor será”. A valorização da amplitude da frente significa que todas as posições dentro do arco-íris republicano são bem-vindas, uma vez que o adversário é o obscurantismo autoritário e populista que está destruindo o país, e apenas este. Taticamente, dá um tiro no pé quem trabalha com excomunhões ou estabelece requisitos altíssimos de coesão ideológica e passado ilibado segundo a ortodoxia da esquerda para sair distribuindo descomposturas e insultando.

Antes de tudo, não há racionalidade na atitude, se a meta do militante-assediador digital for mudar a situação política do país e pôr um fim às trevas do bolsonarismo. Não é possível acreditar que uma pessoa pense de verdade que está de algum modo ajudando a mudar o resultado da próxima eleição simplesmente importunando, enchendo a paciência de ou gritando “fascista” para cada um dos 60 milhões de eleitores que votaram em Bolsonaro ou em branco em 2018. O que pretende, então, quem faz isso? Mostrar o quão moralmente superior ela e a as pessoas como ela são, em comparação com os “novos críticos” de Bolsonaro. Afinal, quem são Luciano Huck, Felipe Neto ou Juliana Paes na fila do pão do distanciamento de Bolsonaro diante de nós?  Nada. 

Por outro lado, se você explicar o quão contraproducente é este comportamento, receberá como a resposta que “se alguém precisa ser afagado para não votar em fascista de novo é porque é intrinsecamente fascista”, logo, irrecuperável. Numa conta simples, porém, 100 milhões de pessoas com título eleitoral não votaram em Haddad em 2018. Colocar uma placa de fascista em todos eles e mandar que votem em Bolsonaro pois “a gente não se mistura com gentalha” é uma demonstração de extrema estupidez, de quem prefere cuidar das necessidades do próprio ego do que ganhar eleições. O autoritário não faz contas, o autoritário apenas quer se impor, não importa o resto. 

 

Além disso, por que há tanta
vigilância sobre o posicionamento
político de celebridades e
influenciadores, e por que se
gasta tanta energia em expedições
de assédio e punição simbólica?

 

 

A hipótese mais provável é que a celebridade influencia outras pessoas, principalmente pessoas com pouca informação política, em que a identificação emocional e cognitiva com o influenciador são tão ou mais importante para a decisão de voto do que a decisão baseada em ponderação de prós e contras. Nesse caso, não seria ainda mais razoável fazer de tudo para que essas pessoas, Huck ou Juliana Paes, estejam do lado de cá ou, na impossibilidade de isso acontecer, não fiquem do lado do adversário? 

Parece-me que sim, mas o autoritário não se move calculando ganhos e perdas, mas a partir do desejo de autoafirmação. O importante é usar o influenciador como exemplo de quem erra e puni-lo severamente por isso, nem que a punição seja simbólica. Como na história do escorpião que enterra a sua pinça no sapo que lhe está ajudando a atravessar o rio, mesmo sabendo que isso causará a sua própria morte, o autoritário simplesmente não consegue evitar o que é da sua mais intrínseca natureza. Sobreviver não é preciso, o que é preciso é se impor. 

Neste sentido, o autoritário sequer reconhece a possibilidade de compor, quanto mais a de engolir sapos. Quando se lhe pede que simplesmente pare de procurar tretas e sabotar alianças táticas, ele diz que todos os outros são um caso perdido e não será com “afeto e acolhimento” que essas almas se converterão, como se na verdade se tratasse de uma campanha romântica da fraternidade e não do exercício adulto da tolerância, motivada por razões estratégicas, e da busca racional por pontos em comum, por razões táticas.

A outra forma de lidar com as diferenças tem a ver com valores da democracia liberal. A personalidade autoritária é um tipo com enorme predisposição à intolerância. O respeito à alteridade política, a consideração pelas diferenças, a admissão do fato do pluralismo como algo positivo para a democracia não faz parte dos valores que ele está pronto a admitir.

O autoritário, na verdade, não se move por valores, mas por vontade de poder, pelo desejo de se impor, de forma que tolerância não é uma opção, pois todas as posições, fora a sua, estão erradas. E não há como compactuar com o erro, apenas denunciá-lo. Por isso a exposição pública, a provocação do vexame, o ataque sistemático, a humilhação, o assédio, são vistos como uma estratégia pedagógica. O errado, creem, se conserta é na porrada, de um jeito ou de outro.

Qualquer argumento para demonstrar que se trata de violência e autoritarismo, porém, é inútil. O autoritário estará sempre ponto a dizer, como ato automático de defesa, que na verdade está sendo vítima de uma falsa simetria, de um paralelismo retoricamente forçado. Mas quando se pergunta por que a analogia não se garantiria, o autoritário de esquerda falará de quão sublimes são os seus valores e propósitos e de como isso não pode ser comparado com a motivação degenerada e perversa do autoritário de direita. Os fins ungem e conferem uma imunidade perpétua ao meu autoritarismo, ao que parece, de forma que as atitudes não devem ser julgadas em si mesmas, mas em função das intenções que elas querem realizar. Um maquiavelismo tosco será a única explicação possível. 

O outro argumento padrão para refutar as críticas será o da impotência dos bons, da sua incapacidade de fazer o mal. “Como eu, pobre lobo, posso fazer mal ao elefante?”, dirão, para fazer ignorar tanto a força da matilha, quanto o estrago das mordidas que inflige. Uma mulher branca rica, cancelada, não perde nada, gritam. Um homem rico e poderoso nem se abala com a perseguição, insistem. De modo que, quando os tubarões mordem, isso, sim, é condenável, mas uma humildade piranha arrancando uns nacos, parece até um ato de justiça. 

Assim, de metáfora em metáfora, acumulam-se cotas imensas de autoindulgência e, no final do dia, o autoritário de esquerda já estará transformado de algoz em vítima. “Depois de tudo o que nos fazem, agora querem nos culpar até de fazer mal aos gigantes?”, choramingam em busca da empatia da esquerda, que nunca haverá de faltar. E assim, imunizados por tanta autocomplacência, os autoritários de esquerda estarão autorizados a reiniciar o seu ciclo diário de importunação, constrangimento e humilhação.

Quando de direita, os portadores da certeza dogmática podem pôr em movimento um método que se chama “fascismo”, e que sempre começa como uma pedagogia do constrangimento e termina na violência física. Na esquerda, esse método não tem nome específico, mas é exatamente o mesmo autoritarismo intolerante. Por enquanto, ele consiste na pedagogia do assédio, da importunação pública e do cancelamento, apenas porque nas atuais circunstâncias a esquerda é impotente para fazer mais que isso. Pode até parecer que não, mas o autoritário de esquerda está mais próximo dos fascistas que da democracia.

Wilson Gomes é doutor em Filosofia, professor titular da Faculdade de Comunicação da UFBA e autor de A democracia no mundo digital: história, problemas e temas (Edições Sesc SP)


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