O altivo peito, tão pequeno

O altivo peito, tão pequeno

Julián Fuks

Gonçalo M. Tavares é um artista do ínfimo. Dirige seu ímpeto para o fato mínimo, relata com pormenor o que já é pequeno. Interessa-lhe o mundo das coisas ao alcance dos dedos, seu infinito mistério, sua verdade inacessível. De tanto olhar para baixo, e com sentidos apurados, tornou-se perito do comezinho, acomodando-o com abastado conforto nas formas breves. E tão vasto é seu fôlego curto que, ainda no meio do caminho de sua vida, ele criou um bairro inteiro de micronarrativas, um conjunto bibliográfico de casas onde respeitáveis senhores se entregam com avidez ao mesquinho: O Senhor Kraus, O Senhor Brecht, O Senhor Juarroz, O Senhor Calvino. Discípulo aplicado, Gonçalo M. Tavares bem valeria a retribuição da homenagem a este último mestre: com tão lépidas mãos exerce seu ofício que Italo Calvino poderia achar nele a encarnação de seu ideal de escritor para o novo milênio, o exemplo maior da leveza, da rapidez e da exatidão por ele prescritas.

Surpreende, então, ou deveria surpreender, a magnitude que esse escritor português resolveu buscar em seu mais recente empenho, a altivez de pescoço erguido a perscrutar o horizonte, certo anseio pelo absoluto que não pôde senão converter-se em epopeia. Não faltam ambições a Uma Viagem à Índia, seu longo e prosaico poema que agora chega ao Brasil pela editora LeYa. O argumento, a epígrafe, os dez cantos em que se organiza, as 1.102 estrofes de versos livres em vez de decassílabos, esses e vários outros elementos mais intangíveis evocam Os Lusíadas, de Camões, qualificando a obra de Tavares como atualização ou reescrita.

Caso restasse dúvida impossível, “Bloom” foi o nome escolhido para o viajante-protagonista (em referência óbvia ao Leopold Bloom de Ulisses, a recriação joyceana da Odisseia), proporcionando ao livro uma segunda leitura paralela, épica do homem comum deslocada em um século, do 20 ao 21. Mas também não se resumem a isso suas pretensões assumidas, e cito só mais uma fazendo às demais injustiça imerecida: Uma Viagem à Índia propõe-se também como poema-ensaio, um itinerário especulativo da melancolia contemporânea.

O que fez com que uma disposição primeira se transformasse em seu inverso talvez esteja explicado em uma passagem que não se deixa perder no intermédio, pensamentos de Bloom que lhe surgem quase sem contexto: “É interessante que um acontecimento tem sempre a possibilidade de não estar completo, de faltar algo, de existir um resto. Uma coisa minúscula ser incompleta, que estranho! É a prova de uma existência duplamente incompetente. Pelo menos ser grande, murmurou Bloom. (…) Que de entre a enorme lista de coisas que nos faltam não esteja a grandeza, ou o potente orgulho, ou a enorme coragem”. O risco que decorre dessa evidência, o risco de que Tavares não se salva apesar de sua consciência, será expresso com a sagácia habitual um canto mais tarde: “impossível associar leveza a grandes acontecimentos: toda a mudança é mudança súbita de peso. E, claro, ainda: incapacidade para o carregar”.

Lassidão constitutiva
Não que a grandeza seja em si um defeito congênito, pelo contrário. É  louvável que Tavares, como Bloom em seu camoniano périplo até a Índia, tente sondar o insondável, possuir o impossível, avançar para o outro lado do mundo, esquadrinhar um caminho desconhecido da maioria – carece muito a literatura recente desse olhar voltado ao sublime. O caso é que a obra tanto se mune de modelos e parâmetros externos que acaba por sofrer de uma incoesão interna, uma ausência de parâmetros próprios, uma lassidão constitutiva.

Habitante de um mundo em que “os deuses actuam como se não existissem, e assim não existem, com extrema eficácia”, refém de um “Destino, que por ser invenção antiga, já vai evidenciando cansaço e até incompetência”, o herói da nova epopeia ocupa um espaço, real ou textual, que nunca de fato se organiza. Em sua dispersiva trilha passeia por Londres, Paris e outras metrópoles de uma Europa febril, mas nunca chega a alçar-se à condição de viajante ou andarilho. Teoricamente é “levado por si próprio, a si próprio mandando e obedecendo”, mas a desnecessidade de seus atos e trajetos parece responder apenas a certo desmando narrativo.

Quem é este Bloom, pouco sabemos. Os caracteres que lhe vão sendo atribuídos são anteriores ao tempo, externos ao espaço corrente, sem nunca se cristalizar na materialidade da história e dos versos. “Por que razão não é a vida apenas uma ordem que respira, onde para cada momento existe uma única acção certa?” A pergunta é pertinente e exata, mas, como bem sabe Tavares, resulta frágil a literatura que quer imitar a vida e encampar a tal ponto seu sem sentido.

Enciclopédia de epígrafes

Bloom, em sua abstrata vivência, existe apenas para dar vazão a uma infinidade de máximas, aforismos, taxonomias poéticas, revelando-se a um só tempo conhecedor de tudo quanto é humano e expoente maior de sua impreterível melancolia. Aqui desfilam, ninguém se engane, toda a virtuose estilística do autor e sua admirável perspicácia analítica, o olhar mitológico que ele dirige ao mundo, suas divertidas parábolas incorrendo em sutis epifanias. Da passagem dos pequenos contos à epopeia, entretanto, já sabemos que o peso das palavras se altera, e o livro acaba padecendo de um ligeiro excedente de verdades. Não estamos no campo da ingenuidade, esteja claro, e Tavares define bem que “metade das grandes verdades são pequenas mentiras”. Mas leitores mais incrédulos poderão se perguntar o que fazer com a outra metade.

Se personagens e enredo mostram-se quase descartáveis, é esta segunda metade o legado principal do hercúleo empreendimento de Gonçalo M. Tavares. Sua narrativa não será emulada dentro de cinco séculos, Bloom não passará de pálido fantasma de seu homônimo. Mas basta que voltemos a baixar os olhos, a atentar à dimensão do ínfimo e seus pormenores, para descobrir na obra um sem-número de boas frases, sentenças felizes, ideias precisas, incontestes achados, uma bela enciclopédia de futuras epígrafes.

Julián Fuks é escritor e jornalista

Uma Viagem à Índia
Gonçalo Tavares
LeYa
480 págs. – R$ 44,90

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