Batalhas essenciais da democracia são linguísticas, afirma Gonçalo Tavares

Batalhas essenciais da democracia são linguísticas, afirma Gonçalo Tavares
O escritor Gonçalo M. Tavares (Foto Pauliana V. Pimentel / Divulgação)

 

“Tudo o que é sério tem dois lados divertidos”. A constatação, do último livro de Gonçalo M. Tavares publicado no Brasil, O torcicologologista, excelência (Dublinense, 2017), esboça uma das principais preocupações refletidas na obra do escritor português. As infinitas e ambíguas possibilidades linguísticas que são, cotidianamente, sufocadas pela razão técnica e utilitária.

Que os ingênuos não se iludam, adverte o autor nascido em Luanda, a objetividade está até mesmo relacionada aos regimes ditatoriais. Afinal, questões linguísticas ocupam o centro do debate democrático atualmente, como constata Tavares. É nesse campo que o autor de Uma viagem à Índia (2010) situa sua literatura. Na investigação esmiuçada de uma língua ambígua e incerta, carente do sentido totalizador e totalitário.

Para tais indagações o escritor português não encontrou limites estilísticos. Entre os 36 livros que já publicou ao longo de seus 46 anos anos há romance, poesia, teatro, epopeia, contos, histórias seriadas e até enciclopédias. O torcicologologista, o mais recente publicado no Brasil, é inteiramente composto de diálogos girando em torno dos mais variados temas, como o corpo, a coragem, a linguagem e a revolução. Apresentadas apenas como ‘Excelências’, as duas personagens conversam ao longo dos capítulos sem chegar a conclusão alguma. A confusão, já vislumbrada no título cacofônico da obra, é assim retomada ao longo dos diálogos, que intentam, discretamente, contra o sentido convencional das coisas.

Essas reflexões sobre linguagem e modernidade marcam, igualmente, todo o diálogo com Gonçalo Tavares, que conversou com a reportagem da CULT na última sexta (23) antes da palestra ‘Literatura, imaginação e realidade’, na Unibes Cultural. Na ocasião ele comentou seu último lançamento no Brasil, refletiu sobre o conjunto de sua obra e as contradições encontradas pela linguagem na era da técnica.

CULT – Em O torcicologologista, excelência, você usa muitos jogos de lógica e brinca com o sentido das palavras, levando as situações à beira do absurdo. Em que medida esse jogo com a linguagem e o absurdo relacionam-se a certa crítica ao contemporâneo?

Gonçalo M. Tavares – Eu penso muito que a criação crítica sobre o contemporâneo é uma criação crítica sobre a linguagem, porque nas democracias grande parte das batalhas essenciais são linguísticas. E nós percebemos que a linguagem é uma máquina que pode funcionar de diferentes maneiras: uma máquina por vezes irônica, por vezes de manipulação, por vezes uma máquina de cercar, muitas vezes uma máquina de tentar explicar a realidade. Portanto a linguagem está sempre no centro da democracia. Felizmente, de alguma maneira, a arma foi substituída pelo verbo. E o que me parece interessante é que as pessoas deveriam ter uma espécie de manual de defesa da linguagem e não têm, um pouco como aprender uma arte marcial, aprender a estrutura da linguagem, a forma como ela funciona. E no Torcicologologista, os diálogos partem muito dessa ideia de que as frases não dizem apenas uma coisa, elas têm vários sentidos, podem ir por um caminho, ou pelo caminho oposto; que a linguagem pode ser sabotada, que a linguagem pode aparentar que está a falar de uma realidade mas está a falar de outra. Percebemos que a linguagem depende de quem a diz, pois mais importante que perceber a frase de alguém é perceber o que essa pessoa quer. De alguma maneira os diálogos andam muito à volta dessas ideias, pois o diálogo é uma maneira da pessoa dizer coisas que não sabia que sabia. É o outro, através de suas questões, de suas frases, que faz que eu diga algo novo para mim, portanto o diálogo não é um somatório de monólogos, é mesmo uma possibilidade de descobrir coisas diferentes. E nesse aspecto esses diálogos são claros herdeiros dos diálogos clássicos, de Platão, e daquela ideia socrática das perguntas até como uma espécie de tortura. São questões que de alguma maneira não têm resposta prévia e, portanto, provocam uma investigação individual. Nesse sentido O torcicologologista é um herdeiro desse mundo.

Você levanta uma questão parecida em A mulher-sem-cabeça e o homem-do-mau-olhado (2017), em que cita Walter Benjamin para falar que há excessos de explicações na nossa sociedade. Em que medida podemos recuperar o inusitado e inexplicável no seio de nossa sociedade racionalista e científica?

Eu não sei bem… A ideia de que o espanto é qualquer coisa que produz o conhecimento parece-me importante. É nós ficarmos surpreendidos, é ai que nasce a curiosidade, a investigação, portanto a informação e o espanto muitas vezes são, não digo inimigos, mas são dois mundos diferentes. Uma pessoa pode querer ficar cada vez mais espantada, pode querer se surpreender cada vez mais, e outra pode ter cada vez mais informações. Eu diria que talvez o que seja interessante é que a informação gere espanto (em vez da informação tirar espanto, que ela pudesse gerar mais espanto). E os grandes comunicadores, os grandes professores, por exemplo, conseguem isso. Conseguem transmitir a informação e com isso aumentar o mundo extraordinário na cabeça dos alunos, e acho isso o principal. Agora eu diria que a escola é uma máquina de destruir a curiosidade, infelizmente, uma máquina muitas vezes de destruir o espanto, e isso não me parece ser um bom método nem um bom objetivo.

Em que medida esse racionalismo, esse excesso de explicações e informações sem encanto está relacionado às crises políticas, econômicas e sociais pelas quais o ocidente parece passar?

A linguagem ligada ao informativo é uma linguagem útil, a economia exige uma linguagem útil, quase como se fosse algo de compra e venda, uma linguagem clara. E eu julgo que uma das grandezas da linguagem é muitas vezes não ser clara, é poder dizer várias coisas ao mesmo tempo, às vezes várias coisas opostas. Uma das qualidades da linguagem é, por exemplo, ser ambígua, o que muitas vezes a matemática não é. E isso não deve ser visto como algo negativo, deve ser visto como algo extraordinário. Nós podemos dizer uma frase que pode significar uma coisa ou seu oposto, isso é extraordinário. A ironia, que é precisamente a pessoa dizer algo da maneira oposta a que pensa, e apenas através de um pequeno tom perceber que aquilo que estava dizendo quer dizer o oposto. Essas qualidades da linguagem, que são qualidades escondidas, são o contrário da informação, e o contrário da clareza, e portanto a ideia de transformar a linguagem em um mundo útil é anular, é destruir as grandes qualidades da linguagem. O mundo da poesia e da metáfora, por exemplo, é precisamente o mundo da não clareza. Talvez um mundo a buscar pela economia tenha retirado da linguagem essa possibilidade de sonhar, de fantasiar, ser ambígua.

Você atribuiria essa importância à literatura atualmente, recuperar essas nuances linguísticas?

Eu não diria que é tentar recuperar, mas a literatura é o espaço de resistência da linguagem, das infinitas maneiras da linguagem se expressar. Enquanto de alguma maneira a linguagem útil, a linguagem do dinheiro é muito pobre. E a poesia, a literatura, são realmente as reservas da grande linguagem. O que é um bocado triste é nós percebemos que mesmo às vezes nos próprios jornais esse mundo da linguagem obscura, ambígua, está a desaparecer por completo. E portanto, hoje, poucos se atrevem a ironizar, por exemplo, em um espaço público, poucos têm coragem, pois podem ser atacados, não ser compreendidos. E quase que a ironia está a desaparecer em alguns textos literários, principalmente pois há um certo receio de que o leitor não entenda. Mas se a literatura começar a recuar também a grandeza da linguagem humana, vai se perder, sem dúvida. Mas não acredito nisso.

E como você investiga essas questões e expressa tais preocupações na sua literatura?

Bem, O torcicologologista, excelência é um exemplo, uma espécie de investigação da linguagem. Mas por outro lado, em livros como Aprender a rezar na era da técnica (2007) percebe-se que uma linguagem objetiva, fria, é muitas vezes a linguagem utilizada pela violência. Aliás, a ideia da objetividade, de que há algo objetivo e que portanto não tem discussão, é uma ideia muito utilizada pelos regimes ditatoriais. Pelo contrário, a aceitação da subjetividade é qualquer coisa que esses regimes não aceitam. Isso é uma coisa que temos que pensar, que a objetividade é um meio, a ilusão da objetividade é quase sempre um meio utilizado pela política não democrática. Portanto quem elogia muito a objetividade de uma forma ingênua devia pensar mais sobre essa questão, nunca nenhum ditador defendeu a subjetividade. Isso deveria nos levar a sermos os primeiros defensores da subjetividade.

Mas, no geral, a objetividade ainda é mais valorizada na sociedade da reprodutibilidade técnica

Sim, até porque a ciência de alguma maneira teve um predomínio sobre as artes. A ciência teve um grande apogeu no século 20. E a ideia de uma linguagem muito clara e objetiva ganhou força a esse nível da linguagem científica. Mas o que a literatura e as artes têm mostrado é que a linguagem da ciência consegue chegar a pontos que a literatura e a arte não chegam, mas também a literatura e a arte conseguem chegar a pontos que a ciência não chega. Podem ser dois complementos de linguagem.

Em outra entrevista você disse que seus livros abrem buracos, que são tentativas de escavar. Onde você chegou com estas escavações? Acredita que algum dia vai concluir esta galeria de buracos abertos por suas histórias?

Abrir buracos no sentido de escavar. Nós podemos olhar para a superfície, e é muito bom o trabalho que olha para a superfície, anda por muitos metros quadrados a ver o que a superfície do terreno tem. Mas eu diria que o meu trabalho, pelo contrário, é definir um metro quadrado e começar a escavar aquele um metro quadrado. Ou seja, a atuar em profundida em vez de atuar em extensão. Tem a ver, por exemplo, comparando com um gesto, em vez de uma ação passar para outra ação, outra ação e outra ação, muitas vezes eu paro naquela ação e a personagem reflete sobre ela, o narrador reflete sobre aquela ação. É um processo de escavação, mas um processo de linguagem. É um processo de tornar mais lenta a nossa análise, e acho que isso é importante porque vivemos no mundo da aceleração das ações.

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