O adeus interminável
Desde Dante, Camões, Shakespeare e Milton até Joyce, Rilke, Borges e Genet, a literatura ocidental tem sido refém da teologia agostiniana e do desejo de transcender a condição humana
Waldecy Tenório
Por que ele se confessa, Agostinho, e se atormenta tanto e não nos deixa em paz? “Eis o meu coração, Senhor, eis o meu coração, que olhaste com misericórdia no fundo do abismo.” Por que ele se expõe assim, revelando suas “emoções dolorosas”? Quer mesmo saber? Ele se considera culpado e está pedindo perdão. E, para ser perdoado, escreve Confissões, essa obra luminosa, um dos mais belos livros da literatura ocidental.
Ele mesmo se pergunta por que o faz. “Então, para que escrevo isto?” É charme? Não importa, nós já sabemos a resposta: ele escreve para fugir do seu inferno. Só isso? Não. Ele escreve também porque há uma relação profunda entre narrativa e existência. Num dos seus sermões, ele diz essa frase deslumbrante: “Tu me criaste para viver e por isso eu te conto a minha história.” Mas Agostinho escreve ainda por uma terceira razão: porque a literatura é sempre um convite à mudança. Eis como ele mesmo o diz, numa carta: “Sou dos que escrevem progredindo e progridem escrevendo.” Como se estivesse dialogando com Octavio Paz : “Não se escreve para demonstrar, para transmitir o que se é, mas se escreve para ser, para criar-se por meio da escritura.”
Culpa, perdão, confissão, narrativa, vida, criação, mudança – ao aproximar todos esses temas, Agostinho acaba por aproximar também a teologia e a literatura. Tanto isso é verdade que Ernesto Sábato guarda uma suspeita: depois de Agostinho, a literatura deixa de pertencer às Belas Artes para ingressar na Metafísica. É o que suspeita também Merleau-Ponty quando afirma que a metafísica foi e será sempre uma passageira clandestina no universo literário.
Depois disso, podemos perguntar o que Agostinho traz para a literatura. Se fôssemos pensar em termos de disciplinas acadêmicas, digamos que ele nos traz a teologia, naturalmente, e depois a antropologia, a psicologia e os diversos temas que nelas se incluem. A interioridade, a subjetividade (a questão do eu), a angústia, o desespero, a indagação pelo ser, a reflexão sobre a linguagem, o problema do tempo, a culpa, a esperança do perdão e, naturalmente, a nostalgia de Deus… “Nosso coração vive inquieto enquanto não repousa em Vós.”
Não estou querendo dizer com isso que esses temas não fizessem parte, já, do patrimônio literário. Não estou desconhecendo, por exemplo, a contribuição da literatura hebraica clássica, incluindo aí a herança bíblica (o Cântico dos cânticos é o texto de um amor inesquecível) e nem tampouco a grandeza da tragédia grega. O que estou querendo dizer é que Agostinho reúne todos esses temas e os recobre com uma nova visão de mundo. Ou seja, ele no-los apresenta sub specie aeternitatis – e esse novo olhar invade o romance, contamina a poesia e se apossa do leitor.
Desde então, querendo ou não, concordando ou esperneando, somos todos, no Ocidente, em maior ou menor grau, reféns da teologia agostiniana. Felizmente, nas Confissões, ele mesmo nos adverte a ter cuidado: “Era seduzido e seduzia, era enganado e enganava.” Ou seja, ele não é nenhum santo, é a própria representação da literatura – o bem e o mal – e isso explica o fascínio que temos por ele e explica também porque os seus temas passaram a ser os nossos temas. O que se torna muito visível nos grandes… Dante, Camões, Cervantes, Shakespeare, Milton, Goethe, em cujas obras esses temas se confundem com os nossos como anéis entrelaçados.
Em Dante, como lembra Papini, se encontra tudo. A sabedoria oriental, o logos grego, a civilitas romana, o Antigo e Novo Testamentos, Aristóteles e, principalmente, Santo Tomás, a caritas cristã. A divina comédia seria a tradução poética da Suma teológica? Uma curiosidade: já se disse de Dante (e o que é que não se disse de Dante?) ter sido ele o maior adúltero espiritual da literatura. Beatriz, casada com outro, está presente em todos os seus versos, ao passo que sua esposa e seus filhos sequer são mencionados. É verdade. Mas, por favor, antes de condená-lo, é necessário compreender o que Beatriz representa no conjunto de sua obra.
É Beatriz quem dá os temas de Dante, temas que se resumem todos na visão final do percurso do poeta:
e súbito um relâmpago eclodiu,
que me aclarou, na lúcida voragem.
Da fantasia a força me fugiu:
e qual roda a girar, em voltas belas,
para outros rumos a alma me impeliu
o Amor que move o sol, como as estrelas
E não se pode esquecer que o encontro final com Deus começa verdadeiramente quando o poeta, ainda quando jovem, atende ao convite sempre presente em sua memória: incipit vita nova (começa uma nova vida). Ou, seja, em Dante, o encontro final com Deus supõe transformação, mudança, conversão, metanóia, como aliás está em Rilke, no poema “O torso arcaico de Apolo”: “É tempo de mudares a tua vida”. De onde vêm esses temas?
Quem ocupa o lugar de Dante na literatura portuguesa é Camões. Pois bem, já houve quem aproximasse Camões de Pascal. E por quê? Por causa da presença de alguns temas teológicos em sua obra, temas que se realizam, sobretudo, na associação entre a fé e a ciência, entre o milagre e a observação direta, entre a necessidade de crer e a vontade de saber. Mas deixemos Pascal ocupado com o seu divertissement e vamos surpreender Camões, no Canto IX de Os lusíadas, narrando o encontro entre o homem e o Absoluto:
Os deuses faz descer ao vil terreno
E os humanos subir ao céu sereno
E agora: Cervantes ou Dom Quixote? Dom Quixote, é claro. Cervantes, com suas desventuras, parece só ter vivido para acumular as experiências das quais a sua obra, como já se notou, é o resumo, o julgamento e a transfiguração. Fiquemos então com o nosso bravo cavaleiro. O que acontece a ele? Milan Kundera nos dá uma pista: quando Deus deixava lentamente o lugar de onde tinha dirigido o universo e sua ordem de valores, separado o bem e o mal e dado um sentido a cada coisa, Dom Quixote saiu de sua casa e não teve mais condições de reconhecer o mundo. A loucura de Dom Quixote, para usar uma expressão de Auerbach a propósito de Flaubert, parece resultar do mal-estar diante do “manque de base théologique” de sua época..
Ousarei falar de Shakespare? Ele é tão grande, tão enigmático, que preferiria mil vezes dar a palavra a Borges e reproduzir, pelo menos, o parágrafo final de Everything and nothing. O momento em que Deus diz: “Eu sonhei o mundo como tu sonhaste a tua obra, meu caro Shakespeare, e entre as formas do meu sonho estás tu, que como eu, és muitos e ninguém.” Mas não dá para disfarçar a incompetência com citações. Nesse caso, gostaria de retomar a grande questão proposta por ele no começo da modernidade – “Ser ou não ser?” – e perguntar: qual dos saberes tecno-científicos se apresenta para responder a Shakespeare?
É bom desconfiar sempre das afirmações pomposas, mas digamos que, depois de Shakespare, aquele que é considerado o maior poeta inglês é John Milton. E aí é teologia pura, O paraíso perdido, poema épico que muitos procuram aproximar da Ilíada de Homero, da Eneida de Virgílio, de A divina comédia de Dante. Não posso fazer esse julgamento, mas posso, para comprovar o que disse antes, lembrar os temas da obra: a criação, a expulsão do paraíso, a redenção final. Dizem que Milton queria deixar escrito para a posteridade algo que ninguém pudesse esquecer. Conseguiu. E, com o seu poema, a nostalgia do Paraíso está sempre recomeçando.
Enfim, Goethe. Esse, felizmente, desanca a teologia. Será? Eis o que nos diz Mefistófeles:
Na teologia há mil caminhos falsos
difíceis de evitar; há mil peçonhas
Qual é, entretanto, a resposta de Fausto?
És, foste, e hás de ser sempre um mentiroso
e um sofista de marca.
Mas esse debate entre Fausto e Mefistófeles não se encerra aí.
Sem preocupações de ordem cronológica ou de escolas e tendências literárias, e seguindo o método da desordem dos livros na estante, como se dão as relações entre literatura e teologia em escritores mais próximos do nosso tempo?
Se for para falar mal da teologia, ninguém melhor do que o católico Graham Greene. Em Ponto de fuga, ele se refere a uma de suas personagens como “uma vítima da teologia”. Em Uma sensação de realidade, ele é mais agressivo: “Se deseja crer de verdade, se é suficientemente tonto para querer encontrar a fé, então não lhe recomendo teologia.” Pura esquisitice. Toda a obra de Graham Greene tem um fundamento teológico, como, de resto, toda obra de arte autêntica, se aceitarmos o que diz Walter Benjamin.
Daí essa ligação visceral entre a literatura e a teologia. Sartre compreendeu isso, à sua maneira, quando declarou que escrever, para ele, foi o equivalente a uma religião. O que está em consonância com a percepção que tem John Updike da literatura: “Escrever – diz ele – não é um artesanato. Não é uma coisa em que pacientemente se acumulem personagens e truques. É uma experiência religiosa que exige total convicção da parte do criador.”
Daí que a presença de temas teológicos seja uma constante nas obras literárias. Até Paul Valery faz Monsieur Teste declarar que a teologia está um pouco por toda parte. Baudelaire é outro que nos surpreende, quando diz que a poesia é “uma exigência devastadora do Absoluto”. O que nos dirão, por exemplo, Saramago, Kafka, Camus, Rilke, Joyce, Borges, Octavio Paz, Cortázar, Milan Kudera?
Ora, Deus pode ser um péssimo princípio estilístico, mas romancistas e poetas não o deixam em paz. Ou será o contrário? De qualquer forma, a relação de Saramago com Deus não pode passar despercebida. Estaremos diante da nostalgia de que falava Horkheimer? Ou Saramago seria, como Kafka dizia ser (embora a frase seja por vezes posta em dúvida ) “um sério candidato à graça?” Desconfio que um sério candidato à graça seria Camus.
Entretanto é mais fácil falar sobre Rilke. Numa de suas cartas, ele abre o jogo: “Deus é aquele que há de chegar.” E pergunta : “Que sentido teriam as nossas dúvidas, as nossas interrogações, se aquele que procuramos pertencesse definitivamente ao passado?” E para se livrar da própria angústia, diz ao jovem poeta: “Quem sabe se, para poder entrar em si, Deus não tem necessidade de sua angústia perante a existência?”
Deus é a grande presença no Ulisses de Joyce: “Toda a história se move em direção a um grande alvo: a manifestação de Deus.” Por isso, José Paulo Paes pôde dizer que Joyce transpõe para a literatura o conceito teológico de epifania, uma súbita manifestação do sagrado.
É nessa linha que seguem Borges, quando vê a poesia como um dom do Espírito, e Octavio Paz, quando a define como a linguagem de todas as revelações. Cortázar se diverte e começa assim um dos seus contos : “Parece uma brincadeira, porém somos imortais.” Kundera não contém a ironia quando afirma, como se respondesse a Cortázar : “Agrada-me pensar que a arte do romance veio ao mundo como o eco do riso de Deus.”
Mas então é isso, Deus se diverte às nossas custas? Nesse caso, a literatura não passa de uma trapaça, como suspeita Barthes. Sim, mas como ele mesmo acrescenta, uma trapaça salutar. Isso porque a desculpa essencial da literatura é que o homem pode, no sentimento e no discurso, transcender a sua condição. É aqui que ela se encontra com a teologia.
Entretanto, quando se fala em literatura, não se pode esquecer a presença de Jean Genet e este, o que procura, senão o mal absoluto? Com Genet, então, a literatura deve se confessar culpada, como Agostinho. Por isso, a polêmica entre Mefistófeles e Fausto continua e o adeus entre a teologia e a literatura não acaba nunca. Parodiando Kolakowski, diria que ele é interminável como o bye bye na famosa seqüência do filme de Laurel e Hardy
Waldecy Tenório
doutor em Filosofia pela USP, é professor de literatura no Programa de Estudos Pós-graduados em Ciências da Religião da PUC-SP e autor de A bailadora andaluza: A explosão do sagrado na poesia de João Cabral (Ateliê Editorial)