O aborto e a bondade das pessoas de bem
Algumas vezes escrevi sobre a questão do aborto. Outras tantas entrei em debates. Alguns foram os mais estranhos, com homens que não escondiam o autoritarismo de suas convicções relativamente ao que pensavam sobre o tema. De um modo geral, os homens defendem as perspectivas biopolíticas clássicas que implicam as mulheres no papel reprodutivo da espécie humana, como se elas não tivessem mais o que fazer, ou defendem o argumento bastante tosco e facilmente descartável relativo à “vida” do embrião.
No primeiro caso, as mulheres devem ser convencidas (e o foram historicamente) de que a maternidade é o que lhes importa na vida. Que todo o sentido que possam ter em suas vidas virá da maternidade. No segundo caso, o argumento da “vida” do embrião escamoteia a desvalorização da vida das mulheres – em todos os sentidos que se possa dar à palavra vida, seja como categoria biológica, seja como categoria política. Nestes argumentos, que são altamente falaciosos, a vida dos filhos e do embrião é sempre mais importante do que a da mulher que o sustenta. O discurso típico da dominação masculinista é biopolítico em qualquer esfera.
E o tema do aborto é usado estrategicamente como uma espécie de eixo do dispositivo de poder biopolítico contra as mulheres. Quando as próprias mulheres que deveriam ser tratadas por todos – e por elas mesmas – como sujeitos de direito, caem nesse tipo de discurso, ajudando a reproduzi-lo, então temos o que se chama de “ideologia espontânea”.
As mulheres deixam de ser sujeitos de direito, deixam de ser cidadãs e se tornam objeto dócil da dominação patriarcal que as escraviza. Tornam-se dóceis escravas voluntárias no momento em que abdicam de pensar, refletir e agir, bem como de responsabilizar-se pelo que querem e fazem. Não quero com isso colocar a culpa sobre o estado da questão nas mulheres. Ao contrário, quero dizer que o processo de dominação e controle foi tão profundo em relação a esse tema da soberania corporal (na qual se inclui a questão da maternidade) que as mulheres são culpabilizadas sem chance de defesa. Elas introjetam a culpa. A sociedade que não legaliza o aborto afirma e mantém a culpa das mulheres. Mantém as mulheres no âmbito da velha “menoridade” com que historicamente elas foram tratadas no campo do direito e da filosofia.
Essa sociedade não é democrática, pois não confere ao sujeito “mulher” nem a liberdade, nem a responsabilidade sobre sua liberdade. Para que haja liberdade é preciso que haja responsabilidade e vice-versa. Ora, a sociedade da culpabilização é a sociedade que mata as mulheres pela culpa e pela ausência de direitos sem que elas tenham o direito de optar por sua liberdade. Ao mesmo tempo, coloca a questão do aborto como se fosse um problema que não concerne a elas. A questão da liberdade das mulheres, seja como autonomia, seja como soberania está fora de questão em uma sociedade de dominação masculina. Nessa sociedade os homens decidem. Ou a moral e a epistemologia masculinista dão as regras do jogo contra o direito das mulheres de decidir sobre sua vida e seu corpo.
A postura à favor da ilegalidade
Em um desses debates, cheguei a ver uma médica, que se vangloriava de atender uma mulher – evidentemente pobre – que iria parir o seu nono filho antes dos 35 anos de idade, falando contra o aborto. Ora, bom saber que quem é contra o aborto legal incorre inevitavelmente na defesa da ilegalidade e da criminalização do aborto. Quem defende a legalização do aborto, todavia não incorre na defesa do aborto em si (na falácia do aborto como medida contraceptiva, por exemplo). O aborto em si, aliás, não é uma questão sobre a qual se possa falar sem muito cuidado na medida em que o aborto nunca é uma questão em si. Existem critérios médicos que devem ser respeitados para evitar riscos para a mulher grávida.
O fato é que a médica, que não parecia ter muita noção do que falava, e que falava em nome de uma paciente sem que pudéssemos ouvir a versão da própria paciente, era uma pessoa mal intencionada. Obviamente não uma pessoa “malignamente” intencionada, no sentido de querer destruir por destruir a vida de outras mulheres. Ao contrário, ela até defendia o que entendia ser a felicidade de sua paciente. A mulher pobre, negra, desempregada e moradora de periferia, era vista pela médica – branca, de uma classe social favorecida – como uma figura que alcançava a felicidade por meio de sua realização como mãe. Mãe não de uma criança apenas, mas de uma vasta prole. Fiquei pensando na quantidade de filhos que aquela mulher deveria ter. Mas não achei que fosse oportuno perguntar naquele momento. Fiquei com medo de cometer uma falácia “ad hominem”, que é aquela pela qual atacamos o sujeito que profere uma opinião e não a opinião mesma.
A defesa da ideologia da maternidade feita pela médica era realmente ingênua e até dava a impressão de que ela era uma pessoa boa. E não duvido que de fato fosse, mas era impossível não ter em vista que ela praticava um tipo bem perverso de bondade. Aquela bondade que, na verdade, acoberta uma maldade sem igual. A bondade entre aspas, que causa efeitos maléficos e que não se responsabiliza pelo que faz. Efeitos em cujo fundo se pode perguntar se não reside algo de muito maligno na forma de uma ideia ou princípio que é pregado contra o outro mascarando-se de ser a seu favor.
Ouvindo aquela médica, lembrei dos pregos nas mãos de Cristo e de um documentário de Carla Gallo, O aborto dos outros, no qual uma mulher – evidentemente pobre – aparecia algemada por ter feito um aborto. No caso da defesa da ilegalidade do aborto que muita gente, homens brancos e ricos, e suas mulheres brancas e ricas, fazem, não era a banalidade do mal o que a médica praticava, mas a “malignidade do bem” (ouvi esse conceito de Rubens Casara um dia desses, é preciso meditar sobre).
A ilegalidade do aborto é defendida por pessoas de bem. Os menos cuidadosos do ponto de vista da reflexão que deveria levar em conta a alteridade, podem pensar que quem defende a legalização do aborto é gente má, imoral, sem ética. Falta de um raciocínio mais cuidadoso sobre os efeitos performativos das “bondades” dos homens e das mulheres de bem. Nós que defendemos os direitos fundamentais das mulheres não cansaremos de falar para defender a legalização do aborto sem julgar os motivos pelos quais uma mulher toma essa decisão. Esses motivos concernem apenas a ela e a quem ela quiser partilhar esse direito.
A legalização é urgente, o resto é mistificação e acobertamento ideológico promovido por cínicos para submeter, humilhar e assassinar mulheres pobres. As demais fazem o aborto que querem em clínicas bem pagas.