O ABANDONO NOSSO DE CADA DIA – Sobre o novo livro de Evandro Affonso Ferreira
RESENHA SOBRE O MENDIGO QUE SABIA DE COR OS ADÁGIOS DE ERASMO DE ROTTERDAM de Evandro Affonso Ferreira (ed. Record, 2012. 127p.)
O título já pode produzir inquietação. Afinal que aquilo que supomos saber de um mendigo jamais incluiria que fosse culto, que soubesse quem foi Erasmo e muito menos que tivesse lido seus adágios sobre os quais, aliás, poucos sabem. O personagem criado por Evandro Affonso Ferreira inverte essa lógica nos dando o que pensar no instante em que a erudição de um homem se mede com seu próprio abandono e o abandono generalizado do mundo ao seu redor. O que sabemos, por meio desse homem com profundas cicatrizes interiores é que a miséria das ruas pertence a todos: “somos todos – cada um à sua maneira – fedentinosos e desvalidos e patéticos e constrangedores.” Que no fundo, de certo modo, todos pertencemos a este “grupo dos suicidas graduais vivendo à margem das estatísticas”.
O mendigo narra a história a um senhor debaixo de uma marquise como um Riobaldo que perdera seu sertão e tem agora o cenário da catástrofe urbana a sua frente. Entre a mulher-molusco, arremedo confuso de maternidade e o menino-borboleta, arremedo de filho, nosso mendigo erasmiano, como o narrador do Grande Sertão: Veredas, observa o desfecho da vida dos despossuídos como ele. Enquanto isso, sendo daquela estirpe de poetas românticos que idealizam uma musa, impressionantemente culta como ele e da qual só lhe restaram as lembranças, ele tenta manter-se inteiro entre a razão e a sensibilidade prestes à devoração pela loucura.
Não é à toa que Erasmo, o autor de Elogio da Loucura, seja o alter ego desse homem perdido nas ruas, que olha para a desnudez da condição humana e pede passagem à poesia sustentada a despeito da miséria. O texto é o mantra do nonsense, ritmo diário que escutamos sem ouvir, do qual este livro é o grito sutil. Por isso é que Evandro marca certas frases e as repete fazendo de sua literatura uma lembrança da oralidade.
Mais longe, descobrimos que é a erudição como emblema do conhecimento inútil, que está sendo questionada como escape, como resto que se tem às mãos em um mundo que só valoriza bens materiais, poder e vida fácil, e que reduz a corpo, à mera vida sobrevivente, todo aquele que por motivos vários, não suportou a luta de vida e morte em que sempre vence a ordem aviltante das coisas. No fundo, há o sistema sustentado em miséria e dor, um sistema em que toda a cultura é tratada como lixo e em que o lixo tem muito mais chance de se tornar “cultura”.
SOBRE O AMOR
O drama do personagem, cujo desfecho diz o quanto a literatura de Evandro Affonso Ferreira não está para acordos fáceis, mostra o conflito e a dor presentes no encontro entre realidade e fantasia, idealização e concretude, esperança e ameaça de esquecimento. Podemos dizer que este é um romance sobre a fragilidade da memória. E mais ainda que se trata do amor enquanto ele é uma forma de desespero.
A musa, o objeto da idealização desesperada desse sentimento sob ameaça de extinção, é uma médica oncologista, ou é Billy Holliday, não importa. Seu nome verdadeiro é apenas uma letra grafada pelas ruas, em todos os espaços vazios da cidade, como emblema do amor, da memória e da esperança. N de nada, é a logomarca do amor perdido que, grafitada pela cidade, tem a chance de criar a antinarrativa da vida. Essa vida em N feito esquina, esse ziguezague das ruas, essa “insígnia esperançosa” com que todos estamos marcados.
Nosso mendigo pichador nos faz ver também que é o poeta e o escritor que estão em extinção em um mundo de barbárie cada vez mais descarada. Um mundo em que não há memória, porque não há história já que os narradores foram extintos. Ser escritor é ser o anti-herói, esse mendigo em um mundo analfabeto, no qual a literatura se vende ao jornalismo, à publicidade e à Medusa petrificante da indústria cultural. Resta uma letra como esperança final, e também ela pode ser devorada pelos ratos que sinalizam o “destrambelho in totum” ao qual todos que ainda sonham com um mundo melhor, um mundo com amor, estão condenados.
Para os que não tem medo do pensamento e do estilo de Evandro Affonso Ferreira, o efeito é o aprendizado da coragem com que ele erigiu essas páginas fazendo ver que, para além da esperança, ainda há a chance da literatura.
Obrigada Evandro Affonso Ferreira por ter escrito esse livro. Acho que todos os que amam a literatura brasileira agradecem.