Notas sobre o conceito de família, novas parentalidades e LGBTs

Notas sobre o conceito de família, novas parentalidades e LGBTs

 

O período pandêmico que tragicamente atravessamos parece ter acentuado o processo de esfacelamento das ilusões acerca da “família tradicional”. O aumento da violência doméstica contra mulheres e LGBTs em geral revela que esse modelo familiar nascido no final do século 19, além de fictício, é disfuncional frente à proximidade obrigatória. A família que muitos insistem em pensar como modelar tem sua eficiência organizada em torno de formas de distanciamento: o pai trabalhando, os filhos na escola, a convivência noturna reduzida, os períodos de lazer destinados ao descanso. Não existem tecnologias de convivencialidade capazes de garantir o funcionamento da família nuclear em casos de convivência obrigatória.

Os laços familiares ideais desse modelo nuclear são mediados por obrigações que se apresentam como naturais e generificadas. Em relação ao pai – mérito da masculinidade aliado à condição moral de pai de família –, ser homem está vinculado ao cumprimento de obrigações, ainda que isso envolva a contrariedade dos próprios desejos e uma infinidade de frustrações do homem provedor, cuja responsabilidade e sentido existencial se encerram na capacidade de manter a família.

A tarefa da mãe (essa ficção ocidental), igualmente generificada, está vinculada a sua dignidade como ser humano. Uma mãe que não se apresente como exemplar no trato com os filhos será sempre descrita como um monstro, uma puta, uma degenerada. O exercício exemplar da maternidade apresentar-se-á como índice moral e aparato de regulação do status social e dignidade femininas. Além disso, caberá a essa mãe garantir que seus filhos se enquadrem adequadamente no mundo. Os erros dos filhos serão sempre, segundo tal modelo, erros maternos.

Obviamente os aspectos apresentados acima são idealidades acerca da “família tradicional” ou mesmo da noção de família, uma vez que, em geral, o uso do vocábulo “família” sem adjetivação diz respeito à família nuclear, tradicional e burguesa. A idealização da “família” opera na produção de uma falta fundante nos lares em nossa sociedade. A família é algo por vir, um ideal regulatório que jamais será atingido, mas que será, incessantemente, buscado.

É importante observar a forma como os discursos correntes sobre a “família” enfocam a necessidade de sua existência nesses moldes ideais. Cabe acrescentar que, através da consanguinidade ou do casamento/convívio regular fundado em relação amorosa e potencialmente reprodutiva, é que se organizam esses laços. Dizem sempre que a família é a unidade mínima da sociedade e que é preciso protegê-la como forma de proteger toda a sociedade, seja lá o que isso signifique.

Um ideal regulatório, cabe explicar, é o modelo que demandará um conjunto de adequações para concretizar seu “caminho”, durante o qual modos de vida, de subjetividades e de corporalidades são adequados, corrigidos, docilizados, produzidos. Contudo, por tratar-se de um ideal, inatingível na concretude da vida, sua busca é sempre frustrante. A família ideal será sempre uma falta produtiva, algo a ser construído.

Diferentemente dos ideais familiares, as famílias concretas costumam atravessar alguns papéis de gênero, construir arranjos transnucleares (tios, tias, avós…). É comum, sobretudo na classe trabalhadora, que mães-solo sejam as principais provedoras familiares. Contudo, cabe aqui lembrar, esse desdobramento materno, no acúmulo de funções familiares, frequentemente está acompanhado do discurso “eu faço o melhor que posso, para que meus filhos tenham uma vida diferente da minha”. Uma vida diferente costuma significar constituir uma família e poder provê-la sem grandes esforços.

Obviamente, trata-se de uma simplificação. Vivemos uma franca derrocada dos modelos nucleares e coloniais de família, seja porque eles jamais se concretizaram no seio da sociedade brasileira, seja porque, no caldo formativo do Brasil, outros modelos familiares – nagôs, yorubás, ameríndios – organizados por categorias como antiguidade e língua, por exemplo, influem nas dinâmicas sociais do país.

Quero, aqui, chamar a atenção para alguns aspectos do período pandêmico que, creio, deveríamos observar porque parecem apontar para a dissolução da capacidade regulatória do ideal moderno de família. As intensas reações em defesa desse modelo podem, inclusive, ser indícios de sua crise.

Além do aumento da violência doméstica e dos conflitos insolúveis ocorridos durante a pandemia, cabe observar as formas de solidariedade comunais que emergem, os deslocamentos para o cuidado com idosos, a entrada de agregados no ambiente nuclear e a demanda incessante por retorno ao trabalho. Parece que os laços ancestrais que insistem sob a idealidade regulatória moderna emergem como uma alternativa de convivência, imposta pela necessidade de sobreviver à crise.

Há ainda as formas de parentalidade que parecem nascer da convivência entre amigos e pessoas, obrigadas a morar juntas por múltiplas e conjunturais razões. Outras formas de família estão emergindo. Temos, nesse momento, o desafio de pôr em xeque os discursos e saberes sobre família e parentalidades.

Há muitas formas de manutenção da família heterossexual. A heterossexualidade familiar produz perpetuação, deslocando frequentemente os sujeitos viventes de suas condições presentes para a projeção da bonança futura, garantida, entre outras coisas, pela reprodução.

Neste momento em que o futuro se torna um desafio, posto parecer obscuro, devemos interrogar nossas relações não consanguíneas e perguntar se há uma velhice possível (para os que não se tornarão purpurina) na convivência com os amigos. Não será preciso inventar parentalidades LGBTs como uma forma de seguirmos vivos?

Helena Vieira é escritora e transfeminista.


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