No reino da “Falavra”
“Ainda sei da fala e sei da lavra/e sei das pedras nas palavras áspedras./E sei que o leito da linguagem leixa/pedregulhos na letra./É como o logro/da poeira na louça ou como o lixo/nos baldios do livro./Ainda sei da língua e sei da linha/do luxo e suas luvas, amaciando/os calos e os dedais./E sei da fala/e do ato de lavrá-la na falavra”.
Gilberto Mendonça Teles
No ensaio de acentuado tom memorialístico “A escrita e os excluídos”, que integra o volume Literatura e resistência, o professor de literatura brasileira da Universidade de São Paulo Alfredo Bosi se pergunta: “Como o excluído entra no circuito de uma cultura cuja forma privilegiada é a letra de fôrma?”, procurando responder ao menos parcialmente tão complexa questão por meio da narração de uma experiência que ele viveu ao longo dos anos 1970 como educador popular na cidade de Osasco, localizada na periferia de São Paulo.
Enquanto para o grupo de adolescentes que se reunia na casa paroquial de Vila Yolanda, um dos maiores intelectuais brasileiros ainda em atividade propôs a leitura de Vidas secas, constatando que “… os nossos jovens de Osasco descobriram, lendo Graciliano, a força da letra viva pela qual sopra o vento da crítica e se transmite um sentimento de perplexidade em face de um mundo iníquo, opaco, difícil de compreender”, para o grupo de operários que se reunia nas manhãs de domingo em um salão no fundo da igreja-matriz da cidade, o crítico e ensaísta mediou uma série de debates sobre temas que lhe pareciam essenciais discutir com a comunidade, o que o levou a registrar: “Aquelas conversas, em que íamos e vínhamos do particular ao geral, da história vivida à história pensada, eram momentos de entrada dos operários em uma linguagem da qual os privava o nosso indigente sistema escolar: a linguagem do pensamento casado com a palavra. O ambiente era informal, mas o tom das falas assumia às vezes a gravidade dos que não falam por falar, mas para compreender. Compreender o que está, na realidade, acontecendo (operação sempre custosa e demorada); e compreender para mudar, pois o que nos aproximava ali era o sentimento de que o possível era tão real quanto aquela mesquinha realidade que o conformismo da maioria decretara como a única possível”.
Reflexões muito próximas a essas desenvolvidas pelo autor da Dialética da colonização, a transitar agudamente entre as esferas da cultura e da política, de certo acometerão o espectador de Ledores no breu, uma bela e pungente experiência cênica conduzida pelo ator Dinho Lima Flor, da Cia. do Tijolo, com direção de Rodrigo Mercadante, que estreia nesta sexta-feira, dia 13 de março, na sede da Cia. do Feijão, no centro de São Paulo, depois de ter cumprido dois meses de temporada no Sesc Ipiranga como parte integrante da série Teatro Mínimo, cujo mote é a apresentação de espetáculos intimistas baseados essencialmente no trabalho de interpretação do ator.
Inspirada no texto Confissão de caboclo, do poeta Zé da Luz, e nas ideias do educador Paulo Freire, a peça trata das “relações entre o homem sem leitura e sem escrita com o mundo ao seu redor”, propondo uma pergunta bastante incômoda, sobretudo, em tempos de festiva e propalada inclusão digital: “o que faz com que a cultura não somente seja a porta-voz de um desejo de emancipação, mas também sirva, paradoxalmente, de mecanismo de exclusão”?
A primeira qualidade do trabalho reside na seleção das canções e dos textos (a cargo de Dinho Lima Flor), articulados em um sintagma lírico-narrativo dos mais envolventes. Assim, causos, episódios e anedotas contados por Frei Betto, Zé da Luz, Luís Fernando Veríssimo, Paulo Freire, Patativa do Assaré, Ledo Ivo e o próprio ator misturam-se a canções de Gonzaguinha, Cartola, Mano Chao, Ana Maria Carvalho, Jackson do Pandeiro, Chico Cesar e Francesca Della Monica, reproduzidas mecanicamente ou cantadas mesmo pelo intérprete.
De repente, o espectador se dá conta de estar diante de um vasto e rico repertório de imagens poéticas, dramáticas, épicas, todas contundentes em sua fantasia ou criticidade, cada vez mais raras de serem veiculadas pela indústria cultural nos dias de hoje – que só se interesse pelos que vivem à margem quando a marginalidade deles se converte em violência imediata e só se atrai pelo popular quando ele se despe de toda potência criativa para se reduzir à fraseologia-padrão e ao pitoresco. As variantes da língua portuguesa estranhas aos falares esclarecidos e bem-pensantes do ainda tão vaidoso de si mesmo “Sul Maravilha” encontram-se soterradas pelo misto de desfaçatez e cosmopolitismo barato com que lhes trata a mídia. Impossível não pensar no belo poema de Antonio Vieira declamado por Maria Bethânia no cd Pirata: “Os livros que vieram para cá/O Lunário e a Missão Abreviada/A donzela Teodora e a fábula/Obrigaram o sertão a estudar/De repente começaram a rimar/A criar um sistema todo novo/O diabo deixou de ser um estorvo/E o boi ocupou outros lugares/Os nomes dos poetas populares/Deveriam estar na boca do povo”.
A segunda qualidade deste recital, organicamente articulada à primeira, diz respeito à natureza do trabalho de interpretação do ator Dinho Lima Flor. Pernambucano de Tacaimbó, dado às coisas da poesia, integrante por mais de dez anos do grupo Ventoforte – liderado por um mestre do teatro de formas populares no país, o argentino naturalizado brasileiro Ilo Krugli –, Dinho se deixa impregnar por uma emoção visceral, rascante, incontida – consciente da artificialidade da arte, mas desejosa de atingir, pela via do risco, a originalidade da vida.
A direção de Rodrigo Mercadante se empenha especialmente em criar uma atmosfera de lírica introspecção nascida da presença pulsante do corpo do intérprete em cena (o trabalho corporal e a direção de ator estão a cargo de Joana Levi), realçada pela beleza plástica advinda da iluminação (de responsabilidade de Milton Morales e da Cia. do Tijolo), do cenário e do figurino (concebidos pelo próprio Dinho) e ampliada, por sua vez, pela música especialmente composta por Jonathan Silva. Em tempos de atuações maneiristas ou excessivamente cerebrais, o estilo de interpretação de Dinho Lima Flor pode soar anacrônico – o que, paradoxalmente, se constitui em marca de uma bem-vinda inventividade. A Cia. do Tijolo, aliás, tem se dedicado a isso: a investigar uma teatralidade culta sem deixar de ser popular; moderna, sem abdicar de sua tradição armorial – matéria tão bem explorada, por exemplo, na encenação de Cantata para um bastidor de utopias, que o grupo encenou entre 2013 e 2014.
Ledores no breu pode ajudar a refrear a entusiasmada crença no poder avassalador exercido pela cultura tecnológica contemporânea, que tanto nos seduz quanto amordaça. O professor norte-americano de arte moderna e teoria Jonathan Crary lembra que subjaz ao pressuposto da coesão unificadora obtida pela Era Digital “o truísmo popular de que os adolescentes e as crianças de hoje habitam harmoniosamente a inteligibilidade inclusiva e sem arestas de seus universos tecnológicos” – o que nos leva a pensar na condição colonial particular da experiência civilizadora brasileira. Em um país como o Brasil, em que boa parte da população, desassistida socialmente, vive à margem do letramento, embora produzindo uma oralidade das mais criativas, como esses excluídos adentrarão o circuito de uma cultura cuja forma privilegiada é a tecla de um dispositivo eletrônico? Por ora – não se nega a propor o espetáculo – é preferível viver à sombra de Jackson do Pandeiro e de Patativa do Assaré a se deixar ofuscar pela ilusão esclarecedora que salta diariamente das telas de cristal líquido em direção a, ou contra, nós. Arremedando o inspiradíssimo letrista de Paratodos (ele mesmo constantemente vítima do ativismo imbecilizante que costuma se refugiar nas dobras do mundo digital), Ledores no breu parece também nos lembrar que “contra a solidão tecnológica, Ledo Ivo é tiro certo e Cartola, inconteste”.
Ledores no breu
Onde: Sede da Cia. Do Feijão (Rua Teodoro Baima, 68, República, São Paulo).
Quando: de 13 a 29 de março (sextas e sábados: 21h; domingos: 19h).
Ingressos: R$ 20, inteira; R$ 10, meia.
Info: (11) 3259-9086.