Não poder errar
Lula e Mano Brown na inauguração do campo de futebol Dr. Sócrates Brasileiro, na Escola Nacional Florestan Fernandes (Foto: Ricardo Stuckert)
Lula errou feio numa “live” e, claro, virou o centro das atenções. Soltou um “ainda bem” para falar sobre a forma como o coronavírus abriu os olhos de muitos para a importância do SUS e do Estado, o que, na visão dele e de muitos outros políticos e estudiosos do assunto, influenciará o debate daqui em diante, não apenas no Brasil.
Mas não foi esse o aspecto que se ressaltou e já era possível saber que qualquer possibilidade de debate sério sobre o núcleo dessa afirmação seria soterrada pelo “ainda bem” de Lula. Foi parar instantaneamente nas manchetes dos jornais, na boca e na ponta dos dedos de todos aqueles que ouvem tudo que Lula diz esperando justamente que ele se exponha às críticas e, claro, a comparações com outros políticos. De outro lado, todos que apoiam Lula, tanto quanto se apoiam nele, tiveram que achar mais um pouco de energia para defendê-lo e acusar o oportunismo daqueles que destacaram o “ainda bem” de Lula para reacender o clima de 2018 no coração da pandemia. E, contra isso, não adiantou muito Lula correr para pedir desculpas pelo erro, explicar melhor o que estava dizendo etc. Fez o que devia fazer depois de fazer o que não devia ter feito: errar.
Lula bem sabe: palavras voam e as suas voam mais alto e por mais tempo do que as dos demais brasileiros. Ele se fez assim, fazendo as palavras voarem, e assim continua: nos bons e nos maus momentos. Nosso imaginário político dos últimos cinquenta anos é muito marcado por frases (e atos e gestos) de Lula – ele sabe disso. Ou seja, vamos ter que aguentar a lembrança dessa frase por muito tempo. No meu caso, prefiro aguentar calado ou, quase calado, falando apenas para quem está disposto a entendê-lo – não o erro, mas o uso inimigo do erro – ou debater a questão de fundo na afirmação de Lula, porque já faz tempo que me convenci da perda de tempo que é entrar na arena dos antilulistas de todos os graus. Você não sai com nada de bom dali. E estamos precisando de coisas boas.
Mas… hoje cedo visitei o perfil do Mano Brown – outro cara que não pode errar – no Instagram para reler a postagem que ele fez ontem, no dia do aniversário de sua filha, com uma imagem de luto. Brown, em resumo, transmitia solidariedade num momento tão doloroso, mas escreveu: “não posso negar a raiva que eu tenho desse presidente que faz piada em cima das mais de 1100 mortes do dia de ontem. […] pior que ele é quem votou e não se arrepende”. Pronto. Entre os mais de 10 mil comentários que a postagem recebeu (até hoje cedo), vi várias, logo de cara, usando o “ainda bem” de Lula para atacar Brown, Lula e tudo que eles, cada um no seu campo, representam.
Todo mundo lembra que Lula, logo depois de eleito em 2002, disse várias vezes que não podia errar. Os fãs dos Racionais sabem que Brown já cantava isso antes: “Eu sou o Mano, homem duro do gueto/ Brown, aquele louco que não pode errar”, no clássico “Negro Drama” (do disco colossal “Nada como um dia após o outro dia”, também de 2002), uma das coisas mais incríveis que algum artista brasileiro já fez em qualquer área, em qualquer tempo. E isso – de quem se torna figura de destaque em lutas sociais não poder errar – vem de muito antes: vem de Jesus, se quiserem, e passa por Gandhi, por Malcolm-X, por Martin Luther King Jr., por todos que se tornaram a principal vitrine a ser apedrejada por aqueles que perderiam seus privilégios se as lutas por justiça e igualdade fossem bem sucedidas. A estratégia é a mesma: atinja o líder e faça o grupo debandar.
Certamente, é nesses nomes históricos que Brown pensava ao escrever seus versos e espelhava o papel que assumiu ao pegar o microfone e virar o centro das atenções da luta dos negros deste país por justiça, contra o racismo, a violência policial e muito mais. Não duvido que a frase de Lula também venha daí, mas é fácil lembrar como isso remete à própria formação do PT, com um discurso de retidão ética em oposição à política como conhecemos. Sabemos bem o que vem daí em diante e o uso que é feito dessa imagem ainda hoje no discurso dos que se dizem “traídos” pelo PT.
Mas não é disso que quero falar agora. Quero apenas apontar o preço político – popular – daquele “ainda bem”. Quando Lula erra, vejam, até Mano Brown tem que pagar – e não se trata, claro, de suas pessoas singulares, mas de tudo que representam e do alcance de seus discursos. Gostem ou não de Lula, sua identificação com o que se chama de “esquerda” no Brasil, se é aproveitada por ele mesmo e seu partido, tem sido muito mais aproveitada por todos que lutam contra essa figuração da “esquerda”. E essas aspas em “esquerda” significam algo importante: não se trata de luta contra um projeto político anticapitalista: no caso brasileiro, já é hora de perceber que nossa direita, radicalizada no atual governo, não luta contra adversários do capitalismo, mas sim contra os mecanismos de justiça social inscritos na Constituição Federal desde 1988.
Que Lula e o PT tenham encampado como sua plataforma política muito do discurso que está no texto da Constituição só aumenta a confusão e cria uma linha direta que complica muito as coisas por aqui, levando à ideia de que “defender a Constituição é coisa de comunista”. Estamos nesse ponto. Por isso, o “ainda bem” de Lula custa tão caro: não apenas atinge sua figura política (que costuma sobreviver a tudo), mas se espalha contra tudo aquilo que os inimigos conseguiram colar nessa figura, como a defesa de uma sociedade (capitalista) mais justa e igualitária. É aí que perdemos ainda mais, é aí que ficamos ainda mais vulneráveis, é aí que nossos argumentos ficam mais frágeis: e “nós”, aqui, somos todos aqueles e aquelas que precisam e lutam por um país mais justo.
Não errar é mais do que difícil: é impossível, ainda mais em palanques e “lives”. Assim como Lula, por seus erros, é cobrado tanto pelos inimigos de sempre quanto por aqueles que fazem parte do campo político em que ele se destaca, é fácil perceber que boa parte dos ataques que Brown sofre (não apenas neste caso, mas pelos novos caminhos que decide seguir com sua arte) também vêm de seu próprio campo, de fãs antigos dos Racionais e de gente da sua quebrada e de todas as quebradas do Brasil. Por isso, é uma questão importante para nós – não para responder aos adversários – o uso político do erro das lideranças para abalar a resistência de nossas causas e de cada um de nós.
Sonhamos e lutamos para construir um momento em que as causas falem por si só e o papel das lideranças perca sua centralidade, mas ainda vivemos numa realidade em que essas lideranças concentram a imagem das causas em que se envolvem. E, assim, fica muito fácil, para a grande mídia e mesmo para os robôs, destacá-las para tentar cortar, com sua cabeça, todas as cabeças que a ela se ligam. E isso acontece até mesmo – e talvez até de modo mais eficiente – quando essas “lideranças” não lideram de fato, quero dizer, não têm o poder que aparentam ter sobre os grupos que serão atingidos por seu erro.
Ocupam o poder no Brasil, neste momento trágico, figuras políticas que se ergueram justamente com a demonização da “esquerda” e, por isso, fazem questão de manter o fantasma do “comunismo” no ar para justificarem seus mandatos. Eles se alimentam disso – de nossos erros. E sabem muito bem. Hoje eles estão com a barriga cheia. Apenas reunidos em torno de pautas populares, que se tornem mais evidentes e fortes do que nossas lideranças, conseguiremos avançar contra o domínio inimigo. Entre essas pautas, sem dúvida, deve estar uma reflexão sobre o papel que o Estado, o SUS, as universidades públicas e uma lógica antimercadoria devem exercer não apenas agora, no meio da pandemia, mas no país que devemos (re)construir daqui em diante. Sem erro.
Tarso de Melo (1976) é poeta, advogado e professor, doutor em Filosofia do Direito pela USP. Entre diversos livros, é autor de Rastros (martelo casa editorial, 2019).