Ficção vitoriana teve mais atuação feminina do que a moderna, diz estudo
Emily Dickinson, Emily Brontë, Jane Austen, George Eliot, Mary Shelley (Arte Revista CULT)
Como autoras ou personagens, mulheres estiveram mais presentes no romance em língua inglesa no século 19 do que na ficção publicada até meados do século 20. A conclusão é da pesquisa The Transformation of Gender in English-Language Fiction (a transformação do gênero na ficção em língua inglesa), que analisou 104 mil títulos publicados entre 1780 e 2007 com base no banco de dados das bibliotecas digitais HathiTrust e Chicago Text Lab.
Por meio de um algoritmo, pesquisadores das universidades de Illinois e Berkeley, nos Estados Unidos, descobriram que, em um século, a proporção de autoras caiu pela metade – dado que, a princípio, acreditaram estar incorreto, já que esperavam encontrar na literatura algum tipo de efeito da primeira onda do feminismo.
Se em 1850 romances escritos por mulheres representavam 50% das publicações do gênero, em 1950 eles mal chegavam a 25%. Antes de 1840, pelo menos metade dos romancistas era do sexo feminino, mas já em 1917 a maior parte dos romancistas considerados de “alta cultura” era homem.
“Aparentemente, acadêmicos de cada período estão dispostos a ver a queda da autoria feminina em seus respectivos períodos, mas ninguém está propenso a avançar na sombria sugestão de que toda a história, de 1800 até 1960, foi uma história de declínio [para elas]”, escrevem Ted Underwood, David Bamman and Sabrina Lee no estudo.
Uma das hipóteses oferecidas pelos estudiosos para explicar o encolhimento do número de autoras é o que chamam de “gentrificação da literatura”. No início do século 19, a escrita era uma atividade desvalorizada, tida como uma carreira de pouco status, o que teria conferido às mulheres certo espaço no mercado editorial – até por serem, elas mesmas, público-alvo dos primeiros romances femininos.
Mais tarde, porém, com o surgimento da crítica literária (majoritariamente feita homens) e com a popularização da leitura, a ficção ganhou importância social e, consequentemente, atraiu mais homens, deixando de ser uma atividade “de mulheres”. “Histórias de gentrificação como esta são comuns. Homens passaram a dominar as áreas da alta costura e da decoração de interiores, que antes eram femininas – até que se tornaram prestigiosas demais para serem delegadas às mulheres”, afirmam.
A escritora Kate Mosse, criadora do Women’s Prize For Fiction, afirmou ao The Guardian que as mulheres eram mais livres na época de Jane Austen ou Mary Shelley, uma vez que os valores vitorianos não estavam tão arraigados. “E quando a crítica (uma atividade masculina) começa a se tornar importante, as contribuições das mulheres são subestimadas.”
Outra explicação dada pelos autores seria a entrada das mulheres em outras áreas do mercado de trabalho, algo que também poderia tê-las empurrado para longe da escrita ficcional. De fato, o estudo aponta que, a partir dos anos 1940, as autoras passaram a dedicar-se a gêneros não-ficcionais, como livros-reportagem, biografias e registros históricos, o que indica que elas se embrenharam em áreas como a pesquisa acadêmica ou o jornalismo.
“A queda do número de autoras em um mundo que se tornava mais igualitário pode não ser um paradoxo se pensarmos que elas simplesmente abandonaram o gênero literário no qual estiveram, por algum tempo, segregadas”, diz o estudo. “Não é difícil, portanto, entender como novas oportunidades podem ter atraído as escritoras para longe do romance”.
Com menos escritoras, as personagens do sexo feminino também minguaram, já que os homens, segundo a própria pesquisa, “permaneceram – em média, como um grupo – marcadamente resistentes a dar às mulheres mais de um quarto do espaço dedicado a personagens homens em suas histórias”. Comparativamente, na escrita das mulheres, ambos os sexos “ocupavam o mesmo espaço narrativo” nos romances.
O cenário – que só voltou a melhorar nos anos 1970 – causou espanto aos próprios pesquisadores. “Fomos confrontados com padrões paradoxais. Enquanto os papéis de gênero se tornavam mais flexíveis, o espaço para mulheres (autoras e personagens) nas prateleiras das bibliotecas se contraiu de forma aguda.”