Muito além de uma vida severina

Muito além de uma vida severina

 
“Não se trata apenas de vida narrativa, é antes de tudo vida primária que respira, respira, respira”.

Clarice Lispector, A hora da estrela.

Dirigida por Zé Henrique de Paula, a mais recente montagem do Núcleo Experimental – Ao pé do ouvido, em cartaz no auditório do Sesc Pinheiros até o dia 17 de outubro – constitui uma forma cênica bastante singular. Sentados em cadeiras dispostas diante da plateia, os sete atores da companhia, de posse de um fone de ouvido plugado a um aparelho celular, ouvem os depoimentos de migrantes nordestinos em São Paulo, que relatam suas histórias de vida. Enquanto escuta o áudio, ao qual o público não tem acesso, cada intérprete procura recontar fielmente o que está ouvindo, reproduzindo não somente as palavras, mas também a musicalidade, o sotaque e certos recursos expressivos típicos da oralidade, como suspiros, pausas e pigarros, que as acompanham. Os depoimentos – reais – foram colhidos de sete pessoas que saíram da Bahia, Pernambuco, Paraíba, Ceará, Rio Grande do Norte e Maranhão e vieram para São Paulo em busca de melhores condições de vida. As narrativas, apresentadas de forma entrecortada, formam um painel rico e variado disposto a retratar a diversidade das experiências socioculturais a que foram submetidos tais indivíduos, a saber: uma babá, um porteiro, um pedreiro, um pescador, uma costureira, um médico e uma atriz.

Usando uma variante da técnica do verbatim (mais conhecida em países europeus, sobretudo na Inglaterra) na qual a dramaturgia surge a partir do cruzamento de entrevistas gravadas, o espetáculo aposta no despojamento formal, embora em momento algum tal característica implique a ideia de simplicidade. O que os espectadores recebem do palco por parte de uma encenação, a bem da verdade, um tanto quanto estática, não soa nada simples: um jorro da mais bem-vinda autenticidade envolve a plateia, enredando-a em uma atmosfera habilmente construída que alia momentos ora cômicos, ora patéticos, ora dramáticos, ora puramente comoventes. Tal empreitada poderia desregular em arremedo e mistificação, não fossem a inteligência e a sensibilidade demonstradas tanto pelo diretor como pelo elenco no trato de material tão arenoso. Assim, a primeira grande qualidade do projeto reside na firme direção que Zé Henrique de Paula exerce frente a um elenco de inegável talento integrado por Bruna Thedy, Cy Teixeira, Herbert Bianchi, Hugo Picchi, Laerte Késsimos, Rita Batata e Rodrigo Caetano. (Fábio Redkowicz e Fernanda Maia são atores stand in). Por cerca de 80 minutos, eles ouvem e veiculam os depoimentos de Maria, Renata, Antônio, Francenildo, Francisco, Silvana e José, exercitando uma mediação entre estes e a plateia de inequívoco e agudo sentido político.
Como advérbio, a palavra latina “verbatim” significa “literalmente”, “exatamente nas mesmas palavras”. Já como adjetivo ela compreende a noção daquilo “que corresponde palavra por palavra à fonte ou texto original”, denotando também a ideia de “precisão ao pé da letra”. Assim, ao empregar a técnica do verbatim, o espetáculo solicita a adesão do espectador a um depoimento que ele não viu ser dado, tampouco ouve, ali no teatro, ser proferido em sua forma original, mas pressupõe ser verdadeiro, uma vez que é bastante verossímil. Cumpre notar que, embora não seja a confiabilidade dos depoimentos que esteja em jogo, é na forma “vazia” como eles se apresentam que está assentada a dimensão estética da proposta que embasa o espetáculo. O que chega dos testemunhos originais aos ouvidos do espectador é somente a voz do ator funcionando como uma espécie de segunda natureza, processo mimético que não pode levar o intérprete a querer se sobrepor ao discurso autêntico, embora o convide a contaminar este discurso com a materialidade vocal e corpórea que lhe é própria – o que já garante à empreitada a aura de uma teatralidade das mais instigantes. Um jogo testemunhal bastante sui generis, estabelece-se, então, entre plateia e atores no tocante à audição, sentido aqui que adquire um estatuto mais importante do que o da visão.

Sobre tal aspecto, vale lembrar a diferença que existe entre ver e ouvir no ambiente jurídico do mundo greco-latino, estudada por Émile Benveniste em O vocabulário das instituições indo-europeias. A palavra “testemunha” em grego corresponde à forma “ístor” e significa “o que vê”, desdobrada em “aquele que sabe por ter visto”. Desse modo, afirma o linguista francês, para os gregos “entre quem viu e quem ouviu, é sempre a quem viu que se deve dar fé. (…) É por isso que os deuses são tomados como testemunhas, pedindo-lhes que vejam; o testemunho da visão é irrefutável; ele é único”. Entretanto, no mundo romano, embora os juramentos também venham acompanhados do apelo aos deuses como testemunhas, a fórmula que o anuncia é diferente, adverte Benveniste: “Pede-se a Júpiter, ao pater patratus e ao povo de Alba que ouçam. Deve-se ‘ouvir’ para ser testemunha do juramento em Roma. Para o romano, que dedica tanto apreço ao enunciado das fórmulas solenes, ver é menos importante do que ouvir”.

Ao centrar toda sua tensão criativa no ato da escuta, Ao pé do ouvido transforma atores e plateia em testemunhas que “sabem por terem escutado”, embora dois níveis diferentes separem aqueles desta: os intérpretes ouvem em primeiro grau, ainda que de forma mecânica, os depoimentos reais; já os espectadores têm acesso a eles de modo indireto, pela estranha mediação estabelecida em cena. Que abre mão da clássica categoria artística de “personagem”, preferindo antes investigar as potencialidades expressivas da noção antropológica de “pessoa” – cujo único senso de realidade estranhamente para o espectador é uma voz ausente. Que se corporifica em um ator neutro, cuja presença remete ao Outro, com quem acabamos por conviver de modo muito íntimo.

A escolha desses sete indivíduos está orientada por um equilíbrio um tanto quanto esquemático, mas muito eloquente. Três deles transitam pela esfera daqueles nordestinos cujas atividades em São Paulo estão impregnadas de estereotipia: a babá, o pedreiro e o porteiro. Os relatos dos dois primeiros beiram a comoção, dados o abandono e a falta de perspectiva que os cercam, aos quais eles reagem com um otimismo um tanto quanto desolador. Impossível não pensar na Macabéa, de Clarice, ou no Fabiano, de Graciliano. Não por ascendência direta. Que os tempos são outros. Mas sim por herança presuntiva. Uma vez que as coisas não mudam tanto assim. Já o depoimento do terceiro indivíduo priva de uma característica diferente. Embora soe algumas vezes patético, há algo de astucioso e alegre no porteiro que nos desobriga a nos comovermos com ele.

Três dos outros indivíduos fogem do senso comum: a costureira, o médico e a atriz. Seja pela situação financeira mais bem equilibrada, seja pelo domínio de um discurso que revela autonomia e criticidade. Um quarto indivíduo poderia também figurar nesse grupo, mas a ele compete uma especificidade que todos os demais não têm: o pescador volta para o nordeste em busca de uma vida ideal que somente em sua terra natal lhe é possível viver. Ele continua viajando de lá para cá, mas seu discurso não dissimula o local a que de fato pertence.

A ideia de compor esse pequeno mosaico está comprometida com a recusa dos clichês e estereótipos que ainda hoje abastecem boa parte da indústria cultural no tocante ao tratamento dos nordestinos. E aqui novamente uma curiosa questão se impõe. Os atores procuram reproduzir com bastante fidelidade os sotaques que estão ouvindo, o que poderia também resvalar no precário recurso da falsa mimese – como aqueles tipicamente usados em novelas de TV (tema incorporado ironicamente ao discurso da atriz) –, não ficasse claro desde o começo tratar-se de uma reprodução verbatim, e não de uma imitação fantasiosa. A noção de uma realidade que é “evocada” pelo ato teatral – e não “simulada” por ele – evita o arremedo e confere ao projeto seu alcance político.

Muito cedo percebemos que as falas desses seres reais dirigidas a nós estão impregnadas de uma performatividade muito própria, que rapidamente desautoriza o clichê e o estereótipo (evidenciados nos risos fora de hora que vão diminuindo paulatinamente durante o espetáculo) para construir com muita potência a noção de alteridade. De repente, somos flagrados pela presença do Outro, com suas hesitações, seus fracassos, suas alegrias, seus anseios, seus dramas. Muito além de ser um “nordestino” – fadado a viver sua incontornável vida severina –, este Outro é tão brasileiro quanto eu. E o empenho da igualdade aqui não nasce da concessão de um altruísmo espúrio (que embase a empatia com o migrante somente porque ele é alvo do meu riso). Antes, ele surge da consciência de que este Outro tem os mesmos direitos que eu. Como seria um espetáculo em que atores nordestinos reproduzissem verbatim os discursos de indivíduos paulistanos, às voltas com suas próprias histórias de vida? Deixando de lado os nossos próprios estereótipos (uma prosódia que também pode virar caricatura, um discurso bem-pensante que confunde concordância e regência cultas com sinal de inteligência, o apego a valores conservadores travestidos de modernidade…), que a indústria cultural toma por naturais, o que sobraria dessas falas todas seria exatamente aquilo com o qual Ao pé do ouvido quer que entremos em contato: com a experiência radical da alteridade.

O Nordeste é uma invenção do Sudeste, precipitando-se rapidamente em uma espécie de epíteto no qual cabem muito bem qualificativos que vão do pitoresco ao inferior, adverte esse projeto do Núcleo Experimental. Parodiando Edward Said em seu colossal Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente, ao final do espetáculo, “não tenho um Nordeste ‘real’ a defender. Tenho, contudo, enorme consideração pela fortaleza das pessoas daquela parte do Brasil, bem como por seu esforço de continuar lutando por sua concepção do que são e do que desejam ser”.

A mesma oralidade performativa – sagaz, hábil e articulada (vazada em uma norma linguística diferente da nossa, que talvez seja reprovada nas provas de português de concursos públicos, mas que é absolutamente bem-vinda à tessitura cultural do país) – já foi retratada pelo cinema de Eduardo Coutinho e pela literatura de João Guimaraes Rosa. Nos quais se propõe um longo mergulho para se chegar ao conhecimento do Outro. Enquanto boa parte da criação artística que se debruça sobre este Outro somente como um fetiche acabe por flutuar sem molhar as penas, para ficar na ironia do registro rosiano.

Em tempos em que grassa nas mais variadas mídias uma oralidade esquizoide, paranoica e alucinada, que verbaliza o estrangeiro, o diferente sempre como risco e ameaça, Ao pé do ouvido constitui um belíssimo exercício formativo, sem abrir mão da ludicidade inerente ao mundo do teatro. Lúdico e teatral cabem no espetáculo perfeitamente. Embora não apaguem os contornos da complexidade que o envolve, matriz do misto de admiração e busca por alguma compreensão que orientou boa parte do presente texto. “Aquilo que se perde com os media, e assim necessariamente permanecerá, é a corporeidade, o peso, o volume real do corpo, do qual a voz é apenas expansão”, aponta Paul Zumthor em seu estudo sobre performance e oralidade. Em Ao pé do ouvido, o teatro cumpre uma vez mais seu papel transgressor, convidando os atores a transformarem a escuta de um áudio na emergência de uma energia vocal reprimida duramente pela vida social. E convidando também a plateia a entender a necessidade vital que a voz humana tem de “tomar de fato a palavra”, para que o dito não fique simplesmente, como sói acontecer no mundo tagarela de hoje, pelo não dito.

Ao pé do ouvido – Núcleo Experimental
Onde:
 Sesc Pinheiros – Auditório (Rua Paes Leme, 195 – Pinheiros)
Quando: Até 17 de outubro; quintas, sextas e sábados, às 20h30.
Quanto: De R$ 25,00 a R$ 7,50.
Info: (11) 3095-9400.

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