Privado: A moça, o cão e o nascedouro da pobreza espiritual

Privado: A moça, o cão e o nascedouro da pobreza espiritual
Ilustração: Rafa Camargo

Crônica publicada ontem no http://www.vidabreve.com/uncategorized/a-moca-o-cao-e-o-nascedouro-da-pobreza-de-espirito

Uma jovem de seus quinze anos andava pela Avenida Higienópolis no bairro de mesmo nome em São Paulo na data de 18 de janeiro de 2012. Dizem que não devemos colocar local e data nos textos se quisermos que eles se tornem universais no espaço e no tempo. Eu gostaria que este texto não revelasse qualquer verdade universal. Embora, como já disseram tantos, também acredite que Deus esteja nos detalhes e que entre particular e universal haja uma relação dialética.

Pois bem, a mocinha andava pela rua, cinco da tarde, sol quente antecedendo a chuva diária, transeuntes às dezenas davam certeza nenhuma quanto ao número de quem viu o que aconteceu. Não se preocupem, pois não é nenhuma das tragédias que estamos acostumados a ver na televisão. E sobre isso, devo dizer de antemão que tenho tanta vergonha de contar o que vi, quanto de morar no referido bairro onde o fato aconteceu, mas o motivo me parece válido como saberemos adiante.

Numa das mãos a garota levava o telefone celular, um iPhone, na outra o cãozinho, um Yorkshire seboso puxado pela corda. Ela, lépida, o cãozinho bem menos. Ela falando e falando, o cãozinho gemendo. Até que o cão parou, encolheu-se e defecou. A mocinha puxou o cão como se ele não devesse fazer o que precisava fazer. Como se não estivesse em seu cálculo que um cão, ao sair à rua, ora pois, defecaria…

Ela continuou andando e falando ao celular. Em seu pequeno universo burguês, em que o cão era um brinquedo como o celular, nada tinha mudado. As tantas pessoas que passavam viram ou não viram, nunca saberemos. Mas é certo que não fizeram nada. Eu vi e, porque também tenho uma filha de 15 anos e sobrinhas com quem me preocupo muito, e tenho muitos alunos de diversas idades com quem me preocupo igualmente, e também por um dever ético de educadora, e também por ter pena dos animais e o ridículo a que as pessoas os expõem, liberei-me do trato social tácito do não-se-meta-na-minha-vida-que-eu-não-me-meto-na-sua e falei:

— Moça, seu cachorro fez as “necessidades”, não vai limpar?

— Vou, vou. Disse displicentemente, sem poder fingir que não tinha visto e não tinha sido vista vendo o que seu cão fizera, e continuou falando no celular e puxando o cão. E foi andando a passos cada vez mais rápidos sem desligar o celular.

— Você jura que vai fugir deixando a merda do seu cachorro ali pra alguém pisar em cima?

— Para de gritar comigo.

— Não estou gritando e não desvie do assunto. Vá até ali limpar o cocô do seu cão. É errado deixar na rua.

— Para de gritar comigo e não aponta o dedo pra mim.

— Não estou gritando, quem está gritando é você. Aproveita e fala para a sua mãe aí no telefone o que você está fazendo com seu cão. Vai, fala pra sua amiga, pro seu pai. Fala para quem tiver coragem. Seja decente e assuma.

— Você não tem educação?

— Estou dando toda ela para você agora.

E fui-me embora dizendo que iria escrever uma crônica sobre ela como faço agora.

Era só uma tarde qualquer de um dia de férias, uma tarde calorenta e modorrenta, em que nada que se faça tem muita importância. Se eu estivesse em Curitiba e fosse o Luís Pellanda, certamente escreveria sobre isso com mais poesia. Mas tenho muita dificuldade de ver beleza nessa miséria do cotidiano que se expressa como um cristal partido, como um olho vazado, como um pássaro colorido e morto.

Alguém deve pensar, como a garota, que eu não tenho nada a ver com a merda do cão da menina, nem com a merda que a menina estava fazendo com os que passam e, sendo cidadão desta cidade, usam esta rua. Mas como toda pessoa que preza o sentido da “civitas”, de onde vem, é bom lembrar, a palavra “civilização”, mas também a palavra “cidade”, me pergunto: não tenho mesmo nada a ver com isso? Me pergunto quanto à educação que os jovens têm recebido. Que direito à prepotência é esse da garotinha que falava em seu iPhone enquanto o cão defecava? Por que ela achava que a cidade deveria receber o descuido que ela não queria assumir? Saberá ela o que é uma cidade? O que é uma rua? Terá noção de que outros cidadãos partilham o mesmo espaço e têm também direitos?

Detesto encontrar dejetos de animais pela rua. Verdade que isso quer dizer muito pouco, afinal, com menos idealismo, sabemos que as ruas de cidades grandes se transformaram em lugares de injustiça, tristeza e maldade. Um cocô de cachorro não é nada perto do abandono vivido pelas pessoas, pela violência generalizada, física e simbólica. Mas se eu pensar assim é porque aceitei que já que não existe Deus, tudo é permitido como nos Irmãos Karamázov de Dostoiévski, livro que essa menina talvez um dia leia só para parecer uma moça culta.

Verdade que a responsabilidade pelo estado das ruas é de quem tem o poder. Mas o que é o poder? O poder é uma escala. Assim como o presidente, o prefeito, os vereadores, etc. esta menina de quinze anos também tem o seu poder, o poder de limpar a merda do seu pobre cãozinho que não tem culpa de ter a dona que tem. Pais e professores têm o poder de educar esta garota que é uma estudante, provavelmente de uma das boas e poderosas escolas da região, e pertence à também poderosa classe social dos habitantes do bairro. Nessas horas, é válido usar o velho termo burguesia como referência a essa classe de pessoas que não respeita nada nem ninguém, que é cheia de poder em escalas variadas e adora fazer merda deixando o problema na mão dos outros, ou no pé de quem pisar sobre o que eles fizeram.

Escrevo isso não apenas para que o que chamo aqui de “burguesia” crie vergonha na cara — o que creio impossível — e tente superar seus limites culturais de classe, mas também para lembrar que há um ano e meio atrás moradores da classe burguesa local falaram à imprensa que não desejavam um metrô por aqui para não atrair “pessoas diferenciadas” ao bairro. Nunca entendi bem o que o termo pedante poderia significar, mas é certo que os burgueses que disseram isso se referiam a trabalhadores, mendigos, pobres em geral. Não sabem dizer outra coisa, pois entre cãezinhos de pedigree, celulares caros, carros caros e roupas de marca que podem comprar no shopping, só o que realmente possuem é sua pobreza de espírito. Daí que a menina e seu cão e a merda do cão que é a merda da menina devam ser o que almeja a burguesia para os seus idênticos. A miséria espiritual é o que sobra na rua. Aquela mesma de quem sabe o preço de tudo, mas não sabe o valor de nada, como dizia Oscar Wilde há mais de cem anos e que talvez um dia a mocinha e seus pais leiam apenas para parecerem cultos.

Espero que a garota pelo menos tenha sentido vergonha. Se ela sentir um pouco da vergonha que eu sinto ao escrever esta crônica então terei esperança. Penso que a verdade está nessa vergonha e só ela pode começar a me livrar da pobreza espiritual sem a qual não haverá uma sociedade melhor.

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