Anatomia do mito: Che Guevara

Anatomia do mito: Che Guevara
Grafite de Che Guevara em Cuba (Carol M. Highsmith)

 

Che Guevara é o único emblema da esquerda que resistiu intocado ao fim da utopia socialista, ao colapso da Cuba que ele criou com Fidel Castro, ao declínio do comunismo soviético e à conversão da China maoista ao livre mercado.

Por isso, os trinta anos de sua morte, em 9 de outubro de 1967, na Bolívia, estão sendo lembrados com uma avalanche de publicações: Che Guevara, uma biografia, do jornalista norte-americano Jon Lee Anderson, Che Guevara: a vida em vermelho, do cientista político mexicano Jorge Castañeda, Ernesto Guevara, também conhecido como Che, do também mexicano Paco Ignácio Taibo, Che na lembrança de Fidel (Casa Jorge Editorial), com depoimentos do presidente cubano sobre o companheiro de guerrilha, e Che Ernesto Guevara, une légende du siècle, de Pierre Kalfon (editado na França pela Seuil). Além disso, a editora Record prepara para este semestre uma edição do Diário do Che na Bolívia.

As obras biográficas, escritas com distanciamento histórico, oscilam entre a precisão jornalística (Anderson), a interpretação sociológica (Castañeda) e a simpatia ideológica (Taibo). São leituras empolgantes, comparáveis à fruição de um romance, relatos de uma vida que se encerrou aos 39 anos, mas que teve uma intensidade épica capaz de preencher volumes que podem chegar a mil páginas.

Não há nenhuma revelação bombástica nos livros, apesar do grande número de depoimentos e dos documentos inéditos consultados pelos biógrafos em arquivos da ex-União Soviética, de Cuba e dos EUA. Mas isso não é um defeito. A vida de Che é, como os livros clássicos e as histórias infantis, uma fábula que já conhecemos, mas que não nos cansamos de reler. Talvez seu fascínio esteja justamente aí, no fato de sabermos que esse guerrilheiro inverossímil transformou revolta juvenil e romantismo livresco em realidade histórica, desafiando o maior império militar do mundo e alimentando a utopia de libertários que compensam cada derrota com o sonho tornado possível do Che.

É para isto, aliás, que servem os sonhos, o imaginário, a literatura: corrigir a realidade no que ela tem de limitado e precário, abalar suas estruturas simbólicas e semear novas possibilidades empíricas a partir da aparente irrealidade da ficção e do mito. E se isso equivale a dizer que os mitos são mais subversivos e revolucionários do que os homens, ninguém melhor do que Che Guevara encarnou essas duas faces: ele foi, ao mesmo tempo, o guerrilheiro que, uma vez no poder, teve que aprender a amarga lição da real politik, e a efígie estampada em pôsteres e camisetas como um gesto eternizado de rebeldia e inconformismo.

Seus biógrafos procuram justamente flagrar essa ambivalência, descrever as ilusões, manias e fraquezas do argentino Ernesto Guevara de la Serna tendo como pano de fundo o grande afresco que retrata, em quadros sucessivos, a conversão, o sacrifício e a canonização do Che como um apóstolo da revolução perpétua. Jorge Castañeda, por exemplo, tira o máximo efeito dramático da imagem do Che morto na Bolívia, seu corpo exangue como o de um Cristo após a deposição da cruz.

Na anatomia do mito, enfim, é quase impossível separar os acontecimentos de uma vida ordinária dos passos que conduzem ao cadafalso e à beatificação. Quem escreve sobre o jovem Ernesto Guevara guarda na mente o destino final do Che, fazendo de cada pensamento e de cada pequeno ato de excentricidade adolescente um anúncio premonitório de seu martirológio.

Mas o fato é que – como mostra Anderson – o próprio Ernesto Guevara tinha de si mesmo a imagem de um predestinado. Filho de uma decadente família da alta burguesia de Buenos Aires, ele nasceu na cidade de Rosário em 14 de maio de 1928 (seu registro de nascimento assinala, porém, o dia 14 de junho –pequena manipulação de datas feita para encobrir o fato de que sua mãe se casara no terceiro mês de gravidez).

Introspectivo e insubordinado, amante do xadrez e do rugby, mal vestido e sedutor, leitor de Júlio Verne e Alexandre Dumas na infância, de Baudelaire, Verlaine, Mallarmé, Zola, Faulkner e Steinbeck na adolescência, Ernesto passou a juventude às voltas com crises de asma. A doença acabaria determinando sua decisão de ser médico e suas pesquisas com alergistas argentinos para descobrir uma vacina contra a asma.

Ainda como universitário, o inquieto Guevara faz viagens rocambolescas em cima de uma bicicleta com motor pelo interior da Argentina e de regiões paupérrimas de Chile, Peru, Bolívia, Colômbia e Venezuela. Passa por médico formado em alguns leprosários que encontra pelo caminho e leva na bagagem várias páginas de um diário que denota seu progressivo interesse pela literatura social e por autores como Freud, Bertrand Russell, Huxley, Kafka, Camus, Sartre, Lorca e, sobretudo, o poeta Pablo Neruda.

Nas correspondências com Celia, sua mãe, Ernesto já esboça dois traços de personalidade que antecipam sua austeridade de guerrilheiro: a obstinação em enfrentar e até mesmo provocar a adversidade (para tornar maior o mérito da superação) e a crença na própria invulnerabilidade.

De volta a Buenos Aires para concluir seu curso na Faculdade de Medicina, deixa novamente a Argentina logo depois de fazer os últimos exames. Dessa vez, seu itinerário aponta para a América Central – e é nessa viagem que começa a ser gestado o guerrilheiro Ernesto “Che” Guevara.

Numa região em que paira onipresente a sombra da United Fruit Company, empresa que representa os interesses do “imperialismo norte-americano”, Ernesto Guevara testemunha na Nicarágua, em El Salvador, em Honduras e no Panamá a sinistra associação entre oligarquias locais e ditaduras submissas aos EUA.

As únicas exceções são os governos democráticos de Costa Rica e Guatemala, e é aí que Guevara presencia o debate entre esquerdistas “reformistas” e “radicais”. Sua opção será determinada em 1954, quando o presidente guatemalteco Jacobo Arbenz é deposto com ostensivo apoio do governo Eisenhower. A essa altura, Guevara está envolvido até o pescoço com militantes políticos e, em 1955, é obrigado a fugir para o México com sua primeira mulher, Hilda Gadea, peruana exilada que conhecera na Guatemala.

No México, os grupos esquerdistas esperavam ansiosamente a chegada de um jovem que havia sido preso após liderar o assalto frustrado a um quartel na cidade de Santiago, em Cuba, e cuja libertação estava sendo negociada com o ditador Fulgencio Batista: Fidel Castro.

Com Fidel no México, iniciam-se os treinamentos do grupo guerrilheiro que irá mudar a história da América da Guerra Fria. E o “Che”, por sua vez, demonstra-se um comandante militar implacável, o companheiro ideal de Fidel na alta esfera do comando revolucionário.

O relato da campanha apenas reforça a imagem de invulnerabilidade que Ernesto Guevara tinha de si mesmo. O desembarque em Cuba é um fracasso: dos 82 homens que compõem a força guerrilheira, apenas 15 se reagrupam (os outros morrem, são presos ou desertam) e é um verdadeiro milagre que esse pequeno contingente tenha conseguido sobreviver e organizar o movimento que tomou Havana no dia 1º de janeiro de 1959.

Nesse sentido, não resta dúvida de que, se o comando estratégico coube a Fidel, o sucesso no campo de batalha se deveu ao Che. Como exemplo, basta dizer que o grande confronto que selou a sorte da Revolução Cubana foi o assalto à cidade de Santa Clara, comandado por ele.

Líder implacável e às vezes impiedoso, que executava friamente inimigos e desertores, Che Guevara correu o risco de se tornar, a partir da fuga de Fulgencio Batista e do estabelecimento do governo de Fidel Castro, um burocrata do terror, uma versão latina de Stalin – e os fuzilamentos dos rivais políticos, nos primeiros dias da vitória, sugerem isso de maneira constrangedora.

A força do mito, porém, parece ter sido maior do que o compromisso histórico (sempre ambíguo, como demonstra a trajetória do próprio Fidel). Depois do fracasso dos planos econômicos que idealizou e da discordância com Fidel em relação à União Soviética (que, para Che, fizera da ilha um joguete na Guerra Fria contra os EUA, especialmente no episódio da instalação dos mísseis nucleares em Cuba), ele renuncia à cidadania cubana, deixa Aleida March (sua segunda mulher, que conhecera durante os combates) e se lança em malfadadas aventuras guerrilheiras na Argentina, no Congo Belga e na Bolívia – onde é finalmente capturado e executado.

Esta trajetória ímpar, heroica, cuja morte ilumina o passado com uma aura de idealismo e justiça, acabou transformando Che no ícone de uma geração que cantava com Jim Morrison “we want the world, and we want it now”.

Entretanto, é difícil avaliar onde acaba a história e onde começa a hagiografia. Numa perspectiva estritamente política, o homem que um dia afirmou que “as execuções por pelotões de fuzilamento são não só uma necessidade para o povo de Cuba, como também uma imposição desse povo” lembra um Saint-Just marxista-leninista. O livro de Jorge Castañeda parece sugerir, aliás, que Che (que desejava a revolução permanente) está para Trotski como Fidel (o aliado da URSS) está para Stalin – o que não deixaria dúvida quanto a seu lugar cativo no panteão comunista e quanto à derrota final de seu legado.

Entretanto, é possível observar – a partir da leitura de Lee Anderson – que sua sensibilidade social nasceu muito antes do contato com a obra de Marx, já nos tempos em que era um easy rider que cortava as estradas da América Latina. Foi esse ímpeto juvenil e libertário que o impediu de se embrutecer nas vestes do dirigente de partido – e é este Che que os estudantes de Maio de 68 idolatravam.

Pouco antes de partir de Cuba para suas últimas batalhas, ele escrevia aos pais: “Uma vez mais sinto sob os calcanhares as costelas de Rocinante” e finalizava dizendo: “Lembrem- se de vez em quando deste pequeno condottiere do século 20”. A referência ao cavalo do Dom Quixote e aos aventureiros florentinos do século 16 não é gratuita. Como os heróis do Renascimento, ele também estava em busca do “homem novo”, que sepultasse de vez uma ordem social dilacerante. Ainda que, pelo caminho, tivesse que deixar um rastro de sangue.

 


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