Javier Milei: o poder e a prisão do cringe
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Cringe talvez seja um dos termos mais adequados para descrever o sentimento de quem assiste às performances do vencedor das primárias argentinas Javier Milei. É impossível não contorcer em total constrangimento ao ver o candidato com maiores chances de virar presidente da Argentina comportando-se de maneira tão desavergonhadamente ridícula.
Como se não bastasse exibir com orgulho um penteado mais caótico do que qualquer moda adolescente dos anos 2000, Milei também ostenta fantasias cosplay de Deus Imperador Ancap e se gaba de ser frequentador assíduo de orgias assim como instrutor de sexo tântrico. Isso sem falar de seus óculos propositalmente tortos e sua pose oficial, cujo olhar é tão intenso que cria uma mistura bizarra de pseudo-serial killer com esoterismo à la Shanti Ananda de Ligue Djá.
Tudo na estética de Milei aponta para o cringe, o ordinário e o grotesco. Todavia, ao contrário do que pensaríamos, é justamente no cringe que se encontra a maior parte de seu poder, de seu apelo e de sua popularidade.
Para os que não estão a par da expressão, cringe é a palavra da moda para descrever o profundo desconforto que sentimos quando vemos alguém se constranger ou se ridicularizar em público. Geralmente o sentimento é ainda mais intenso quando a situação de embaraço envolve uma tentativa objetivamente falha de projetar poder ou carisma.
Para dar um exemplo, é um pouco daquilo que sentimos quando víamos os vídeos do então à época candidato Bolsonaro, fazendo flexões fajutas e desengonçadas em público. Para que o cringe emerja corretamente, todavia, é preciso que o espectador não se identifique com o protagonista da cena. Caso haja qualquer tipo de reconhecimento subjetivo, o sentimento de constrangimento é substituído por afetos de empatia, simpatia e admiração. Um pouco do que aconteceu quando muitos brasileiros se enxergaram na participante Juliette durante a edição do BBB de 2021: quanto mais Juliette era subjugada pelos outros participantes, mais sucesso ela fazia com o público.
Ou seja, há um cálculo muito sensível e complicado no balanceamento entre identificação e desidentificação. Dominar essa matemática, porém, se tornou uma das formas mais eficazes de acelerar o próprio carro na corrida pela popularidade nacional. E não há dúvida de que nessa maratona, os políticos de extrema direita vêm alcançando velocidades nunca antes vistas.
Javier Milei, como sabemos, não é um produto exclusivo argentino, ele é mais um político que adentra o clã das paródias populistas de extrema direita. É preciso compreender também como grande parte do sucesso desses populistas está diretamente relacionado ao fato de que vivemos num contexto social cuja tolerância por hierarquias sociais vem diminuindo exponencialmente.
Há uma tendência generalizada pela valorização da horizontalidade, da desierarquização e da democratização da participação e do poder. Sustentar o peso do lugar de autoridade simbólica nunca foi tão custoso. E isso faz com que se apresentar como uma pessoa digna de ocupar o lugar da presidência seja uma tarefa praticamente impossível. Enxovalhar os diversos locus de poder, incluindo a presidência, aparece então como um atalho mais curto. Avacalhar a seriedade dos ritos, dos elementos simbólicos e de tudo que reveste a política de uma aura transcendental tornou-se uma resposta mais barata para o problema da tensão contemporânea entre sociedade, indivíduos e autoridades.
Dessa maneira, quando Milei dança ao som de “Bomba tântrica”, assim como quando realiza qualquer de suas outras palhaçadas, ele performa uma subversão do status quo que não se dá através de um uso do poder simbólico, mas de sua desconcatenação pela via da estética do ridículo. O mau gosto se torna tanto uma arma a ser usada contra as elites e contra seus adversários políticos, quanto um escudo para se proteger da percepção pública de que o próprio Milei faz parte da elite.
Ao permitir que seus eleitores riam com e dele, o candidato faz com que seus seguidores acessem um lugar de poder que só existe através da ridicularização do próprio. O prazer de debochar das autoridades, das elites das hierarquias, é o que sobra em uma sociedade na qual a mobilidade social e a melhoria material da qualidade de vida parecem simplesmente impossíveis.
O perigo de populistas como Milei não está, assim, apenas em suas políticas econômicas desastrosas, em seu desmonte do Estado e em seus ataques às conquistas de direitos sociais. A ameaça está presente também na difusão de uma fantasia predadora que afirma que hoje em dia só é possível rir da política, sendo considerada ingênua e alienada qualquer atitude que visa tentar levá-la a sério. Ridiculariza-se aquilo que, acredita-se, seja impossível de transformar. É certo que o riso, principalmente aquele advindo da paródia, serviu como ferramenta de emancipação política para muitos grupos historicamente oprimidos e marginalizados; o mais claro exemplo disso é a comunidade queer. Todavia é importante compreender que o prazer derivado do poder que emana do riso da paródia também pode funcionar como um poderosíssimo anestésico.
Um povo que ri de seu aprisionamento pode se tornar demasiadamente afeiçoado à sua condição de subjugamento, correndo o risco de lutar para defender sua própria submissão. Não argumento pela posição de que não deveríamos rir de políticos como Milei. É de suma importância que sejamos capazes de ridicularizá-lo. O importante aqui é compreender que é necessário levar a sério uma certa desidentificação social com a figura do underdog e do perdedor. Para vislumbrar um horizonte no qual o povo não é submisso a figuras abjetas. É preciso voltar a imaginar e principalmente sonhar com a vitória.
Renato Duarte Caetano é doutorando em Ciência Política pela Universidade Federal de Minas Gerais.