Metamorfoses de uma narradora

Metamorfoses de uma narradora

Bela, astuta, sensual; o que promete a Shahrazad dos manuscritos árabes à diferença do que se sabe dela de costume?

 

Desde que Jean Antoine Galland publicou em Paris a primeira tradução do Livro das mil e uma noites, os europeus – russos e dinamarqueses inclusos –, e logo os americanos e os próprios árabes, têm-se deliciado com as histórias contadas por Shahrazad ao esposo e rei Shahriyar. A trama, com alguma variação, é bem conhecida: tendo sido traído por todas as mulheres do palácio – esposa e concubinas –, o rei Shahriyar mata as traidoras, decidindo tomar, daí por diante, uma esposa por noite e executá-la logo ao amanhecer, tarefa de verdugo, essa incumbida ao grão-vizir. Lida e instruída nos mais variados assuntos, Shahrazad – justamente a filha do vizir – voluntaria-se em casar-se com o rei, arriscando a própria vida para livrar as demais mulheres da morte a que estavam fadadas. Ela possuía um plano: depois de se entregar ao esposo, durante a noite, passaria a lhe contar histórias fantásticas recheadas de traições e mortes, mas também de paixões e loucuras, homens estúpidos e astutos, reis, sábios, comer-ciantes, vagabundos, gênios, seres zoomórficos, maravilhas de toda sorte que revelam sabedoria e conhecimento em história, filosofia, justiça e comportamento… Aos primeiros sinais da aurora, ela se calaria, sem mais, interrompendo a narrativa. Curioso por saber o final, o rei adiaria a execução de Shahrazad até a manhã do outro dia, após ter concluído a história interrompida na noite anterior. E nisso passariam (e de fato se passaram) muitas e muitas noites.

Esta é, basicamente, a história de Shahrazad, figura que, há anos, recebe as mais variadas atribuições do imaginário dos leitores. Para alguns, Shahrazad representa a astúcia feminina, em tudo invencível; para outros, herda a sabedoria ancestral da mulher, de um tempo em que a fêmea, espécie de deusa ou sacerdotisa, regeu o destino político dos homens e os orientou moral e espiritualmente; para outros, ainda, Shahrazad é o paradigma da sensualidade feminina, envolta às malhas do mistério oriental, com suas cem possibilidades de cores, sabores e formas, todas elas acenando para o que cada um desejaria que fosse real para si.

Dito de outra maneira, na imaginação do leitor, Shahrazad ocupa o lugar do sonho, porque a cena é propícia no Livro das mil e uma noites: a noite, a cama, a insônia e a palavra que desencadeia os sucessivos episódios encaixados uns nos outros, como o sonho inserido em outro sonho, que por sua vez abre-se a outro sonho, e o sonho todo inserido no sono. Um sono invadido, porém. É precisamente durante a noite que Shahrazad descreve e multicolore o dia aos olhos insones do rei Shahriyar. É como se ela, enquanto narra suas histórias – para o rei e para o leitor –, estivesse a concretizar um perfil perene e universal da mulher, a despeito das épocas e dos espaços distintos compreendidos pelas narrativas e por seus narradores.

É possível, porém, condicionar a existência de Shahrazad a algum fator um pouco mais concreto. Num poema de Jorge Luis Borges, o sonho aparece como uma das quatro metáforas que sustentam as Mil e uma noites. E as metáforas, como insistem os retóricos, requerem bases sólidas. É por isso que Shahrazad e o sonho “mileumanoiteano” estão intimamente ligados à história da gestação, gênese e dispersão do livro medieval.

Estamos falando num período de onze séculos. Nesse tempo, revezaram-se contadores de histórias, escritores, copistas, editores e tradutores, às vezes em participação conjunta. Galland, por exemplo, quando traduziu o livro para o francês, valeu-se de um manuscrito árabe que havia comprado em Istambul e… de um sírio chamado Hanna, perito contador de histórias do século 18. Hanna deu a Galland uma penca de contos, como as histórias de Aladim, Ali Babá, a fada Pari Banu, o Príncipe Ahmad, dentre outras, que as recensões medievais não incluíram. Um pouco atrás na linha do tempo, nos finais do século 15, um egípcio, judeu islamizado, ao copiar um antigo manuscrito que circulava por aquelas bandas, acrescentou de sua parte um bom número de histórias, especificamente aquelas que têm o Egito como ambiente.

É sobretudo nos manuscritos tardios do país do Nilo, dos séculos 18 e 19, que se dão os maiores desvios com relação ao que teria sido um códice matriz no século 13, escrito nas terras da Síria e do Egito. A evolução nos manuscritos egípcios deveu-se basicamente a duas peculiaridades. Uma, a imaginação muito fértil dos contadores de história, prolíficos nessas terras, imaginação reforçada aliás pela própria natureza do conto, oralizado e sempre atento às exigências do público. A outra, uma certa urgência comercial… A tradução de Galland no século 18 apresentou as Noites “árabes” como uma criação, na verdade, integralmente hindustani, mas posteriormente adaptada pelos demais povos, que se viram irresistivelmente seduzidos por ela. Essa sedução teria corrido o mundo, desde o Oriente Extremo, passando pelo Oriente Médio, até chegar agora ao Ocidente, nesta ordem: Índia, Pérsia, Arábia, França.

Tudo na época de Galland atiçava o sonho. Um mundo diferente abria-se aos olhos da Europa: costumes e lugares exóticos, temas excitantes envolvidos de graça e ingenuidade, detalhes fantásticos e maravilhosos, aventuras galantes ou históricas. As 50 histórias escolhidas por Galland, e distribuídas em 281 noites, tiveram tanto sucesso que logo foram vertidas para outras línguas européias. Movidos pelo frenesi de saber o final da história, os turistas europeus acorriam ao Egito na esperança de obter as histórias que supostamente preencheriam o restante das noites: seriam mesmo 1001? A procura por manuscritos complementares forjou “novos” e engenhosos escritos, dos quais algum egípcio da época não descuidaria. Anos mais tarde, aparecem as edições árabes mais famosas, as duas de Calcutá, na Índia, a de Bulac, no Egito, e a de Breslau, na Europa. Essas edições quase sempre nortearam as traduções que se fizeram no século 19 até meados do passado, como as de Mardrus para o francês, de Pane, Lane e Burton para o inglês, de Littman, Henning e Weil para o alemão e a de Cansinos-Asséns para o espanhol.

Interessa saber que a tradução de Galland e posteriormente as edições árabes e as traduções delas derivadas, quando comparadas aos manuscritos árabes mais antigos, apontam para reorientações da narrativa, conformes, bem se vê, às expectativas específicas de seus leitores. Já se falou da homogeneidade e do sincretismo histórico nas Mil e uma noites, mas não ainda das diferenças de estilo nas várias partes da narrativa, a matização da linguagem nos vários sucessos do enredo. Em algumas traduções, por exemplo, saem de cena as descrições enxutas e diretas do árabe medieval para dar lugar a uma expressão mais detalhada, o que corresponde automaticamente aos anseios estéticos do então emergente movimento romântico da Europa e suas repercussões sentidas no Egito e na Síria – fato perfeitamente explicável pela ação cultural colonialista da França e da Inglaterra nessa região.

Grande mudança foi a divisão das histórias em 1001 noites, no sentido material do algarismo. Foi o que mais marcou a história – porque a empobreceu. Em nome da interpretação literal do título, cometeu-se o absurdo de reduzirem-se certas noites a menos de dez linhas, enquanto outras ocupavam dezenas de páginas. Na verdade, antes de ser escrito no Egito e na Síria, nos meados do século 13, o livro teve uma longa vida oral, ainda que restrita a poucas histórias. Desde antes do século 9 até a sua materialização escrita, acredita-se que essas histórias fossem contadas, sucessivamente, em hindustani, persa e árabe, segundo iam ganhando prestígio a cultura islâmica e a língua árabe. Há uma referência antiga na recensão de Maçûdi (séc. 10) a um livro persa chamado Hizar ifasáni, que bem pode ser uma versão das primeiras histórias. É possível, nessa perspectiva, que inicialmente esse título tenha passado ao árabe no seu sentido literal Alf khurâfa  “mil histórias fantásticas”, ou seja, “muitas” delas. Como os árabes preferem contar histórias durante a noite, o nome passou para “mil noites” e, depois, como quer Borges, talvez por superstição aos números pares, passou para “mil e uma noites”, o que quereria dizer muitas e muitas noites, a interpretação de consenso.

Variando ainda segundo a edição, na milésima primeira noite, o rei isenta Shahrazad da morte, porque a acha engenhosa ou porque ela vai lhe dar um filho, ou porque já lhe deu um, ou mesmo um par de gêmeos, ou três filhos – todos sempre do sexo masculino. Desfecho tornado clássico, o indulto e a maternidade de Shahrazad têm sido tradicionalmente aceitos como uma maneira mais cabal de terminar as narrativas. O primeiro indício data do século 9. No livro-inventário Alfihrist, Ibn-Alnadim (séc. 9), citando a obra persa Mil histórias fantásticas, menciona tanto o perdão do rei como um filho. A tradução de Galland não fala em filhos, mas fala em perdão, e as outras traduções, como vimos, variam.

Mas o que efetivamente Shahrazad dos manuscritos antigos promete à diferença do que se sabe dela de costume?

Dizíamos que a Shahrazad clássica é astuta e sensual. Para formar tal quadro, costumamos apelar à idéia que aprendemos a fazer de Shahrazad a partir das vias indiretas, daquilo que se diz dela. Esquecemos de mencionar suas representações no cinema, nas ilustrações de livros e revistas? Poderíamos desde já trazê-las à cena: qualquer mulher à oriental nos dá isso; todas prenunciam a passagem de Shahrazad no cenário dos desejos. Falávamos também de um fim ao dilema de Shahrazad. Deu-se a ela filhos, desejou-se que vivesse feliz para sempre, ao lado de um esposo justo, que por fim recuperava a razão e a sensatez, compreendia e aceitava o caráter das mulheres e, seguro, guardava-lhe confiança absoluta e dela aguardava os filhos, que, invariavelmente, seriam varões.

Com o passar do tempo, Shahrazad e Shahriyar alcançaram a plenitude na união dos complementos. As metades da esfera partida de Platão, que Ibn-Hazm de Córdoba lembrou no Colar da pomba, voltaram a se encontrar nas histórias das Mil e uma noites. A beleza objetiva do filósofo, popularizada em Alandalus, e logo em todo o Islã medieval, encontra aí sua plenitude. É doce Shahrazad? É delicada na linha do corpo? Tem as formas harmônicas? É formosa na expressão? É bela intimamente para aquele que a contempla? Tem a graça que culmina a expressão da beleza? O que sabemos de Shahrazad senão aquilo que imaginamos que ela possa ser? E o que dela se fez em nome do desejo? Quem é afinal e o que promete a Shahrazad dos tempos originais? Nada, e tudo.

Há uma passagem nas primeiras páginas do livro em que se descreve a mulher aprisionada por um gigantesco e terrível gênio, que logo seria traído por ela. Escondidos na copa de uma árvore, por temor ao gigante, o rei Shahriyar e seu irmão Shahzaman referem-se àquela mulher como “imrâatan tâmmat alqâm, sabiyya malîhat alqawâm, hîlwat alibtisâm, biwijh kaánnu badr attamâm”, isto é, “uma mulher perfeita no talhe, uma jovem graciosa no corpo, bela no sorriso, com um rosto como se fosse a lua cheia”. O termo “mulher” serve simplesmente para indicar o sexo do ser “jovem” que, por sua vez, funciona como um “sinal verde” para a contemplação do olho masculino. Quanto ao termo “graciosa”, é usado como um adjetivo, mas com uma função adverbial que confere completude ao enunciado. Talvez se deva traduzir sabiyya malîhat alqawâm como “jovem graciosamente dona de um corpo cheio de graça” – o que, claro, ficaria um tanto pedante em português. A palavra árabe malîhat al- quer dizer também “a que é maliha em tal e tal coisa”. Malîha é o feminino de malîh, termo com o qual se nomeia o homem elegante, nobre, elevado e cortês; é o termo que se usa para designar os amados na poesia de orientação literária cortesã. Malih é o paralelo árabe de “amado”, “amigo” e “senhor” da poesia galego-portuguesa e da “midons” provençal. De resto, o rosto como a lua cheia só é tópico da plenitude.

Essa é a descrição típica da mulher em quase toda a literatura árabe desde os seus primórdios. A perfeição, a graça e a beleza do sorriso obedecem aos graus da Beleza, conforme descritos por Ibn-Hazm, que mencionei há pouco. Este, no século 11, e Ibn-Dâwûd, no século 9, propalaram o ideal de beleza feminina quando reviram e arabizaram a teoria platônica do amor. E é essa a beleza e a qualidade maior da mulher nas Mil e uma noites. O imaginário árabe masculino tem dispensado as qualidades mais sutis e subjetivas da alma da mulher, não por somenos, mas porque a Beleza – e a Graça, o mais alto degrau na escala de Ibn-Hazm – pressupõe as qualidades que os europeus e ocidentais vão explorar, a partir do Renascimento, como a materialização ou a secularização dos ideais cristãos. No quase-renascentista Dante, por exemplo, Beatriz está associada ao paraíso e ao complexo de luzes que dele irradia. Para quem não tem acesso ao universo cultural do árabe, Beatriz pode tornar-se um bom referencial para a representação pictórica da mulher na literatura árabe. Então, dizer que Shahrazad (e toda mulher) nas Mil e uma noites é sensual é deduzir que ela assim o seja. Ela é sensual para o leitor árabe, porque ele automaticamente assim lhe dá acesso na mente, dentro do complexo de seu desejo. Quando o gênio admira a sua mulher por alguns instantes, e quando o narrador a descreve segundo os olhos de Shahriyar e Shahzaman, está-se a lançar o código de tal desejo. O leitor, ou o ouvinte, tem aí a chave. Shahrazad é o seu ventríloquo.

Michel Sleiman
professor doutor do Departamento de Letras Orientais da Universidade de São Paulo – USP

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