A memória que brilha por reflexo

A memória que brilha por reflexo
Fotos: Guto Muniz

“O tempo brinca e ri. É o garoto brincalhão de Heráclito que detém o poder supremo no universo (‘à criança pertence a supremacia’). A ênfase é sempre colocada sobre o futuro, cuja face utópica se reencontra constantemente nos ritos e imagens do riso popular que acompanha a festa”.

Mikhail Bakhtin.
A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais.

De tempo somos: um sarau do Grupo Galpão – em cartaz até o dia 12 de julho no teatro do Sesc Santana, em São Paulo – constitui uma prazerosa experiência cênico-musical feita de percepção e memória, delicadeza e despretensão. A partir da evocação da própria trajetória do grupo, o roteiro dramatúrgico convida os nove intérpretes reunidos em cena a darem voz e alma a vinte e cinco canções que fizeram parte da trilha sonora de espetáculos ou de workshops internos realizados pelo Galpão (em ordem cronológica, o primeiro trabalho cuja canção é rememorada é A comédia da esposa muda, de 1988; os últimos são Eclipse e Tio Vânia: aos que vierem depois de nós, ambos de 2011), transformando a encenação em uma espécie de concerto popular muito envolvente, nascido de uma situação concreta que a companhia viveu em uma turnê pelo Vale do Jequitinhonha, quando seus integrantes promoveram uma “cantoria de atores à beira-rio, em noite de lua cheia”, conforme indica o texto publicado no programa da peça.

Longe de configurar uma forma conservadora, de acentuado tom passadista ou meramente retrospectivo, a iniciativa do Galpão goza de um frescor e de uma originalidade vibrantes, promovendo, tal como cabeça de Jano, uma bem-vinda fusão entre as lembranças que a companhia – em seus mais de trinta anos de existência – já acumulou até agora e o exercício de uma linguagem teatral absolutamente contemporânea, prenhe, inclusive, de inúmeras possibilidades de futuro. Sediado em Belo Horizonte, o grupo sempre primou pela experimentação, seja promovendo uma interlocução muito inventiva com o teatro de rua, seja bebendo na fonte de escritores e dramaturgos os mais potentes, seja ainda convidando variados homens de teatro a assumirem a direção de seus espetáculos. Tamanha liberdade criativa somente poderia resultar em uma experiência como essa, que o público paulistano disposto a renunciar às distrações inócuas da cultura de massa ora é convidado a assistir.

 

(Foto: Geraldo Cruz)

As rememorações a que o Galpão dá luz em De tempo somos são pura poesia inquieta, constituindo aquela espécie de matéria paradoxal, gravada no “presente imóvel da memória”, de acordo com a perspicaz definição de Maurice Blanchot. “Quem se interessaria por uma fala nova, não transmitida?”, pergunta o romancista e crítico francês, arrematando logo em seguida: “O que importa não é dizer, é redizer e, nesse redizer, dizer a cada vez ainda uma primeira vez. Ouvir, no sentido augusto, é sempre já ter ouvido; tomar o seu lugar na assembleia dos ouvintes anteriores, permitir-lhes que estejam novamente presentes à audição perseverante”.

Assim, as duas dezenas e meia de canções que os atores tão bem defendem em cena nada mais são do que as peças de um jogo espelhado de saberes de cor e de recordações. (Ainda que apelar para tal etimologia pareça um recurso um tanto quanto gasto, nunca é demais lembrar a estreita ligação que existe entre o verbo “recordar” e o substantivo “coração”, posto que o nobre órgão humano, além de sede dos sentimentos, já foi tomado como morada da inteligência, do saber – configurando-se, então, a partir daí, em um organismo vital a serviço, dentre outros senhores, da deusa Mnemosine). Primeiramente, recordam-se melodias e letras que integram o repertório artístico e vivencial de um grupo de teatro bastante longevo. Mas, além disso, recordam-se algumas velhas canções que fazem parte do imaginário não somente da cultura brasileira como de outras culturas também. A grande qualidade de um sarau como esse é a de resgatar muitas dessas obras do esquecimento a que elas estão relegadas, seja pela antiguidade própria que as define, seja pela pouca circulação de que gozam nos meios usuais da indústria cultural.

Entretanto, o grupo – sempre contemporâneo de si mesmo – não atribui a tal operação de resgate qualquer pecha de saudosismo indignado, ferido em seu orgulho de pertencer ao passado. “O esquecimento é a própria vigilância da memória, a força tutelar graças à qual se preserva o oculto das coisas”, parecem defender em cena os atores do Galpão, fazendo ecoar, uma vez mais, as palavras de Blanchot. Desse modo, o resgate se precipita em custódia, cabendo aos espectadores se comprazerem com a beleza e a qualidade das canções que lhes são apresentadas sob a proteção de um grupo de teatro que faz da força da imaginação musical um elemento cênico dos mais consistentes. “Mas com tanto esquecimento como fazer uma rosa”, questiona Jules Supervielle (1884-1960), o poeta da memória esquecida. Refletindo o que se esquece e extraindo luz dessas reflexões, ao transformar cada canção em uma “flor, linda flor” – talvez possa responder o Galpão ao bardo francês.

Às músicas apresentadas misturam-se pequenos fragmentos de textos (pesquisados por Eduardo Moreira – em cena, sempre um ator-trovador tangido por genuína emoção) de Eduardo Galeano, Charles Baudelaire, Jack Kerouac, Nelson Rodrigues, Anton Tchékhov e sua mulher – a atriz Olga Knipper, José Saramago, Paulo Leminski e Calderón de La Barca. Como em todo sarau literário e musical que se preze, o clima geral é de festa e celebração. A direção exercida por Lydia Del Picchia e Simone Ordones valoriza tal atmosfera pelo viés da espontaneidade, investindo na simplicidade dos recursos utilizados e na naturalidade com que os atores se deslocam em cena, embora em certos instantes algumas coreografias e formações corais sejam apresentadas de modo ritualizado, produzindo uma aura de eloquente expressividade. O bom humor que perpassa todo o espetáculo é explorado em doses muito bem calibradas. Ao trio de intérpretes femininas – à presença das duas diretoras em cena vem somar-se a de Fernanda Vianna – não faltam momentos de comicidade brejeira, temperados por outros de arrematado humorismo. O mesmo se dá com o elenco masculino, que investe no burlesco e no risível por meio da sutileza e da economia de recursos. Vale destacar que a cena da “carteira encontrada” – a cargo de Antônio Edson, Paulo André e Luiz Rocha (responsável também pela direção musical, arranjos e trilha sonora) – é um verdadeiro achado cômico, tamanho o despojamento com que é apresentada. Beto Franco e Júlio Maciel, seja pela destreza musical, seja pela presença cênica, completam a nomeação de uma trupe cujo equilíbrio nas performances individuais é digno de registro.

(Foto: Guto Muniz)

Ao lado da comicidade, o lirismo é o outro pilar que sustenta o recital, indo se encontrar com ela justamente pela via da alegria, de que também é constituído. Se tomarmos como exemplo a belíssima definição de Gaston Bachelard de que “a poesia é uma alegria do sopro, a evidente felicidade de respirar”, podemos entender o sarau do Galpão como uma bem-vinda reunião de sopros poéticos produzidos pela voz humana, seja no ato de declamar textos, seja no de entoar canções, seja ainda no de embocar instrumentos musicais. (Voz que cede aos dedos a primazia da imaginação, quando estes dedilham instrumentos que extraem das correntes de ar o mais musical dos estados de exaltação poética, como os acordeões que tão bem caracterizam o estilo da companhia). “… se déssemos mais atenção à exuberância poética, a todas as formas da felicidade de falar, suave, rapidamente, gritando, murmurando, salmodiando… descobriríamos uma incrível pluralidade de sopros poéticos. Tanto na força como na doçura, tanto na cólera poética como na ternura poética, veríamos em ação uma economia dirigida aos sopros, uma administração feliz do ar falante. Tais são pelo menos as poesias que respiram bem, tais são pelo menos os poemas que constituem belos esquemas dinâmicos de respiração”, defende Bachelard justamente em O ar e os sonhos: ensaio sobre a imaginação do movimento.

Sob tal perspectiva, De tempo somos é um inspirado exercício de alegria e de lirismo insuflado por um tipo de imaginação aérea que somente a voz humana é capaz de estimular. As palavras sopro e alma se confundem desde sempre. Por meio deste exercício respiratório incomum, os nove atores-cantores do Grupo Galpão (escudados pela variada gama de profissionais muito competentes que, fora de cena, ampara seu trabalho) reveem no palco do Sesc Santana alguns princípios vitais para a própria existência da companhia. Exalam-se aqui muitas ânimas. A alma do teatro popular – ingênuo, espontâneo e de fácil comunicação. A alma dos acontecimentos poéticos e memorialísticos – que parte do presente rumo à presença recordada das coisas que já se foram. A alma das Minas Gerais de onde vem esse bando de atores-menestréis – “mineral, musical, pastorela”, como bem definiu o poeta maior de lá. A alma de um Brasil, enfim, que vai ficando para trás – desconhecido das novas gerações, mas que, de repente, volta a nos rodear dos lados, como o sertão de Guimarães Rosa (o maior prosador daqueles Campos Gerais). Alegria, festa, recordação e poesia também são quando menos se espera – parece querer nos ensinar o Galpão nesse sarau tão despretensioso quanto indispensável na atual temporada de espetáculos que ocorrem na cidade de São Paulo.

De tempo somos: um sarau do Grupo Galpão
Quando:
Até 12 de julho ( sextas e sábados, às 21h; domingos, às 18h)
Quanto: de R$ 30 a R$ 9
Onde: Sesc Santana – Teatro  (Avenida Luiz Dumont Villares, 579 – Santana)
Info: (11) 2971-8700.

Deixe o seu comentário

TV Cult