Privado: Masoquismo hoje

Privado: Masoquismo hoje

O livro Sacher-Masoch, de Gilles Deleuze, faz pensar no esquecimento de um grande escritor e nos clichês da nossa cultura

Marcia Tiburi

A expressão “sadomasoquismo” é uma das tantas que migram do ambiente especializado das ciências humanas ou sociais para o senso comum cotidiano. Composta de dois conceitos opostos, no campo das ciências mentais e psicológicas a construção do termo sadismo-masoquismo nasce com Freud, mas depende das primeiras formulações de Krafft-Ebing e Havelock Ellis que ainda separavam os termos sadismo e masoquismo, ainda que tenham percebido ser possível relacioná-los. Ao referir-se ao sadismo e ao masoquismo, Freud é praticamente dialético: o sádico é um masoquista, o masoquista é um sádico. Ainda que prevaleça um ou outro dos caracteres na expressão pessoal de cada indivíduo, são estruturas mais do que complementares. São íntimas.

Assim, no âmbito do senso comum que adapta informações conforme as possa usar, temos a expressão sádico para falar de alguém que sente prazer em provocar dor em outrem, e masoquista para expressar a existência de um prazer em sentir a dor. A simplificação é forte, mas não deixa de guardar o cerne da questão.

Além do sadomasoquismo
No entanto, a pobreza desse pensamento não atingiu jamais o x da questão e, por isso, surgiram opositores à convenção psiquiátrica, tanto quanto ao senso comum que a traz ao rés do chão. É fato que não é possível hoje falar em sadismo ou masoquismo fora do debate criado nesse campo; no entanto, não podemos deixar de lado que essas questões, ainda que psiquiátricas e/ou psicanalíticas, são, antes de mais nada, questões literárias. Se a questão do campo “psi” orbita em torno do comportamento de indivíduos, de sua normalidade ou patologia, ou mesmo da condição ontológica do psiquismo – se pensarmos em termos mais filosóficos que podem orientar o campo psi –, a pergunta que devemos tentar responder precisa ser refinada filosoficamente: por que a literatura se torna tão importante para a psicanálise a ponto de que nela se fundem alguns de seus conceitos mais essenciais? Podemos responder: porque ela é a reinvenção moderna dos mitos; porque, por meio da narrativa literária, feita de imagens e conceitos, é que podemos ter uma imagem clara do humano de um determinado tempo e espaço; porque a narrativa captura o caráter histórico da experiência humana e a põe em palavras.

Por fim, diremos que a psicanálise parte de um conhecimento não científico, a saber, que o personagem literário (e sua circunstância) é fruto de um ato fotográfico como aquele que Walter Benjamin concebeu na formulação do inconsciente óptico: a fotografia revela algo invisível. Se toda arte é fotografia, logo, a arte é esta revelação de algo não sabido e que, no entanto, estava ali. A literatura é capaz de revelar algo invisível para a psicanálise, como uma espécie de lente de aumento. É isso que permite dizer que a psicanálise também é uma leitura do ser humano que a literatura desenha em caracteres mais ou menos cifrados. O dito de que “para um bom leitor meia palavra basta” vale aqui para as duas esferas. Problema tanto da psicanálise quanto da literatura é que bons leitores são raros.

O que revela a literatura de Sacher-Masoch?
Há pouco temos no Brasil a tradução de Sacher-Masoch – o Frio e o Cruel, de Gilles Deleuze (Jorge Zahar, 2009, 133 págs.), que pretende cancelar o que o filósofo considera uma má compreensão psicanalítica da obra de Sacher-Masoch, mostrando a incompatibilidade formal entre sadismo e masoquismo. O livro de Deleuze aponta diferenças, mas não consegue sustentar a incompatibilidade dialética entre os dois fios que conduzem a relação entre desejo e poder. O sadomasoquismo é uma formulação que, embora faça injustiça ao grande e esquecido escritor Sacher-Masoch, não deixa de ter sentido nas esferas ontogenéticas da cultura. Lembremos de Theodor Adorno usando o conceito para entender uma forma de educação “pela disciplina através da dureza” em seu Educação após Auschwitz. Pensemos na “integração sadomasoquista” dos trotes universitários sobre a qual escreve Antonio Zuin.

Talvez o livro de Deleuze seja confuso para os desacostumados à experiência de pensamento deleuziana; já os mais afeitos à psicanálise gostarão da abordagem pela oportunidade do debate, até mais do que aqueles ambientados com a obra de Masoch.

O grande mérito da abordagem de Deleuze define-se mesmo na boa intenção de alertar para a releitura do grande escritor pouco conhecido. Mas é em um pequeno texto chamado “Representação de Masoch”, em Crítica e Clínica, que Deleuze consegue atingir com mais precisão o que importa para a obra de Sacher-Masoch: a arte do romance. O que está em jogo ali é uma espécie de romance de formação, porém, formação posta como “adestramento” de um ser humano que só pode ser visto em sua condição animal. É essa visão da animalidade e da crueldade que fará dos romances masoquianos peças ligadas à literatura de minorias e, nesse sentido, romances micropolíticos.

Nessa linha, em uma nota de rodapé é que Deleuze apontará para a relação de Kafka com Sacher-Masoch. O nome Gregor, apelido de Severin de A Vênus das Peles – o romance mais famoso de Sacher-Masoch –, e até mesmo o anagramático Samsa têm relação com a obra do escritor austro-húngaro. Os temas masoquistas de Kafka: animais, monstruosidades talvez secretamente fetichistas, lutas por poder, esvaziamento do ser dos personagens pelo frio e pela vida no gelo. Kafka, como Sacher-Masoch, expressa o problema das minorias no contexto social em que viviam.

Deleuze faz pensar que a obra de Sacher-Masoch não se reduz ao “masoquismo” do uso clínico. Sacher-Masoch tornou-se um problema que a crítica literária pouco aborda, até porque ela mesma está em extinção. Muito maior é o problema da língua e de seu uso complexo em Sacher-Masoch do que o erotismo perverso dos personagens. Esse erotismo também é um modo de experimentar a língua e, se pensarmos no elemento autorreferente que toda a literatura começa a experimentar com ênfase desde Flaubert, um modo de expor uma alegoria da própria literatura como atividade “masoquista”. Uma atividade pedagógica da humilhação diante da inexistência de uma cultura capaz de experimentá-la. O que resta à linguagem literária? Estremecer sobre si mesma, experimentar-se a si mesma como um prazer perverso. Dirá Deleuze que, como Kafka, Sacher-Masoch enfrenta a linguagem como algo “muito puro” e que, no entanto, faz com que, nela, algo caia em tremor: “como se a língua se tornasse animal”, dirá o filósofo. Algo que deve acontecer no trânsito entre o “silêncio dos corpos” e o “balbucio da língua”. A língua que sempre foi humana e nos lançou na aventura para além da natureza, agora nos faz voltar a ela, mas sob a forma de uma dor.

A novidade do masoquismo é, de qualquer modo, bem desenhada por Deleuze: se o sadismo é uma relação de dominação, o masoquismo não pode sê-lo, ele depende de um contrato que é construído entre a vítima e o algoz, em geral uma mulher que será educada pedagogicamente por sua futura vítima para realizar seu desejo de submissão e humilhação. Diferentemente de Sade, no qual o que está em jogo é a instituição da lei que não convence, mas ordena, em Sacher-Masoch o que está em jogo é a persuasão e o acordo. Assim é que os romances de Sacher-Masoch, ao construírem a mulher má, cedem a toda uma tradição em que o sofrimento é o cerne, mas sem definir se a legitimação desse sofrimento é cristã ou libertina, um elogio da fraqueza ou da força que invadem relações erótico-políticas. Literariamente, o romance masoquiano pode ser classificado como literatura erótica, mas pensar que o erótico não é político no caso de Sacher-Masoch seria o mesmo que esquecer a subversão sadiana com a qual tanto nos acostumamos. O sofrimento em Sacher-Masoch não pode, portanto, ser reduzido ao que aproveitou dele a psiquiatria.

O erotismo e a pornografia de nosso tempo já não são políticos, já não servem a nenhuma subversão da ordem, na medida em que são indústria libidinal. Mas talvez isso não seja problema do erotismo e sim da destruição da política, que se autodestrói pelo abandono de suas armas, dentre elas as potências da literatura.

(11) Comentários

  1. Para quem sabe e gosta de ler, uma vírgula, e para quem não sabe ou quem não gosta, ponto final; a excelência deste texto.
    “Indústria Libidinal”; conceito composto, sadomasoquismo. Apenas Indústria; sadismo. Apenas libido; masoquismo (“também morre quem atira” Rappa.
    Atravez da abordagem literária, essencialmente subjetiva, tememos por todos os termos, conceitos*, que se compõem ao termo, conceito, Indústria. Temor talvez justificado ao tempo atual, onde as formas de arte(voltada a sensibilidade do “espírito”) vão perdendo espaço e “importância”.
    Atravez da abordagem psicanalítica, fundada ao subjetivo, inseparável da literatura, embora guarde forte modelo didático, o termo sadomasoquismo vem frisar a diferença humana ao resto das espécies animais; a capacidade de estudar a si mesmo e criar símiles aos instintos.
    Finalmente, pela abordagem psiquiátrica, necessariamente objetiva, os termos sadismo e masoquismo praticamente não se compõem, mas é indispensável ao tratamento em casos extremos de sadomasoquismo.

    * Por exemplos, Indústria do, futebol, teatro, cinema, música…..

  2. Incrível mesmo é como uma “classe média-méida” passa a vida toda fazendo média com temáticas como essa! E o país no lugar de sempre: na média!!1

  3. “Novas formas de perversão”.E a capa traz, como sempre, a figura de uma mulher!!!Coincidência mais uma vez?

  4. Eu observaria da seguinte maneira o assunto em questão: Masoquismo faz parte da vida tradicional brasileira, sobretudo em casamentos que perduram o tempo maior que deveriam e a mesmice do torturador incute na vida a dois o sentimento de dependencia.
    Há que se observar que casamentos que duram mais de 60 anos deve com certeza ter o aspecto masoquista e manipulador de um dos dois.
    Vejo nitidamente isso no casamento de meus pais e cito-os como exemplo da minha tese: Ele é um torturador emocional, terrorista mesmo, daqueles que prospera e se acha o tal, lá fora vende aquela imagem de homem santo, dentro de casa um general. Ela minha mãe submete-se anulando-se frente às investidas masoquistas dele… Aff ninguém merece algo assim. Ai o que digo é que há casos em que ser masoquista é condição de vida ou sobrevivência por medo de arriscar, ousar e fugir.

  5. A tecnologia como a da psiquiatria não dá conta das questões culturais e políticas se não leva-las em conta. E esta é a “síntese” que se faz atualmente. O que vc acha disso?

  6. É um equívoco afirmar que que o masoquista para Deleuze não se relaciona de modo a dominar. O masoquista domina sim e de modo até mais eficaz que o Sádico, dado que trata-se de um controle sobre o outro exercido lentamente, na indução do sádico a pertencer e agir conforme um contrato estabelecido pelo masoquista (limites entre aquilo que poderia ou não o dominador fazer). O masoquista ensina o sádico a agir conforme lhe convém. E o ser que é educado pode ser mulher, homem…não há limites para o desejo. Por que não um animal?
    Sem a existência desse contrato, ou quando este é rompido, não pode haver prazer para o masoquista. Trata-se de um traço de caráter antes de mais nada, metódico, beirando a obsessão em suas tentativas de obter prazer.

  7. Alguém se lembra de como se chama um romance do século XVIII em que um senhor inicia um relacionamento sádico com uma mulher? (mencionado pela Márcia em um dos seus últimos programas…?)

  8. Muito interessante. Acho que a pornografia realmente é massa falida hoje, mas não por falta de representação do político e sim por estar se incorporando a algo que ainda está em construção, da ordem do “normal”. Mas a questão da perversão nunca esteve tão evidente depois da nomenclatura de uma sociedade narcísica. A perversão cresce como raízes, desenfreada, a vista. Uma questão interessante são as transformações corporais extremas, talvez a subversão do nosso tempo. Vale ressaltar, que esse tipo de prática, é mais intensificada no homem no que na mulher (castração, amputação peniana, escarnificação, perfurações, etc. O desejo, sempre, em qualque época, é político. Precisa ter olho para ver…

  9. Terrível o que as idéias incorporadas ao substantivo homem podem criar, quando assim se acha o mais mais da espécie. Voltei aqui atraves de ‘pesquisa Google’, insidiram o comentário da Rose em meu nome; vai vendo quanto há de perversão na sombra do mandante.
    Estes e outros muitos sinais-gugle (grobo, soca cola,…, monopólios discretos) abrem espaços sinuosos para jogar uns contra os outros, e vici e versa; “política, precisa ter olhos para ver.”

  10. A perversão é algo gritante na porta dos brasileiros. Falar em política ou falta dela relacionando-a a um acordo, seja ele sexual ou não, é apenas reafirmar uma verdade que sempre esteve estampada nas páginas da história – o masoquismo do ser humano que se deixa submeter ou ser submetido. Parece que nossa sociedade não se sustenta senão pela afirmação de uns e o detrimento de outros.

  11. Há uma conformidade generalizada. E há muito conforto na cadeira onde se senta o sadista pra dar as suas “chicotadas” e um chão muito macio onde o masoquista se deita. A indústria cria continuamente os “brinquedinhos” que temperam ainda mais essa relação duradoura e feliz. Onde um não vive/existe sem o outro.

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