Sobre o novo romance de Ana Paula Maia
Capa do novo romance de Ana Paula Maia (Divulgação)
Os personagens de Assim na terra como embaixo da terra – tão direto quanto um conto – nos confrontam e já não podemos fechar as páginas do espaço em que habitam
Que mundo é esse criado na prosa de Ana Paula Maia, exímia artífice desses cenários cheios de intensidade cruenta e livre da tentação moralista que sempre julga antes de discernir? Que homens são esses, personagens de vidas mal feitas, de histórias canceladas, senhores e servos dos enredos mais brutais, das leis e poderes mais absolutos? Que chance têm essas vidas tão próximas da natureza, de tal modo entregues à sorte que não se pode dizer delas que conheçam a noção de desejo? Que gente é essa que experimenta a violência em sua forma mais direta, como se ela fosse a lógica cujo nome se evita dizer?
Homens que sobrevivem em tempos impossíveis, que morrem como matam. Entregues à severidade institucional, à precariedade da condição humana depois que se perdeu a política, eles são um milagre da espécie. O que tantos chamam de desumanização não seria senão o fracasso da política, a confirmação da guerra de todos contra todos com vantagens para poucos?
O livro de Ana Paula Maia reconhece Na colônia penal de Kafka em um tempo brasileiro, solar, em seco. Talvez se inspire nele para organizar a crueza com a qual se ergue no horizonte da literatura contemporânea. É com a experiência árdua, livre de todo sentimento mais fino, que teremos de viver em qualquer campo onde formos concentrados como são os seus personagens aprisionados. Como sujeitos e como objetos, como caçadores e caças, como conceito e metáfora, os personagens deste romance – tão direto quanto um conto – nos confrontam e já não podemos fechar as páginas do espaço em que habitam.
Temos nas próximas páginas uma alegoria perfeita do estado de exceção. Seremos cativos de Assim na terra como embaixo da terra – lançado neste mês pela Record – não do mesmo modo como seus personagens, presos no absurdo que lhes coube em vida. A abjeta vida concreta submetida às instituições, nos tempos do encarceramento em massa, do cancelamento do valor da dignidade humana, não seria de algum modo nosso espelho?
Há escritos que fazem da leitura um momento de urgência. É como se, parado à nossa frente, alguém, com toda a força física ou mental, nos proibisse de ir adiante. Excessivamente viva, entre a reflexão e a vertigem, a obra que segue será lembrada como um instante de alta voltagem literária que desloca seu leitor de algum lugar confortável.