Homofobia: sobre o papel do xingamento em um delírio compensatório

Homofobia: sobre o papel do xingamento em um delírio compensatório
'Dois homens cuidando de uma criança', de Raphael Perez (Reprodução)

 

 

Enquanto esperamos que os encaminhamentos obscuros do golpe de 2016 se realizem, enquanto tememos o desfecho infeliz das bem tramadas eleições indiretas, mais uma dessas traições à democracia e à cidadania brasileira que se postula na humilhação do povo, não podemos esquecer, dentre os tantos fatos políticos desagradáveis dos quais somos testemunhas hoje, de que o Brasil é um país contaminado por preconceitos e, entre eles, a homofobia.

Há dias assisti ao documentário Entre os homens de bem de Caio Cavechini e Carlos Juliano Barros. O documentário emoldura a imagem de Jean Wyllys em sua travessia pela câmara entre deputados homofóbicos. À primeira vista é como a travessia da dignidade em um mar de indignidade preconceituosa. Quem assiste fica necessariamente perplexo com a coragem e a força do personagem principal dessa travessia.

Quem suportaria tanta violência? Apenas alguém muito corajoso, um verdadeiro guerreiro, muitos dirão acertadamente. Mas ao mesmo tempo, espanta a forma como os deputados homofóbicos se expressam diante do personagem Jean Wyllys que, abstraído do contexto, seria o mais comum dos cidadãos, caso estivesse ao lado de outros cidadãos comuns.

Penso agora onde está a diferença real representada por Jean Wyllys, seria a sua sexualidade ou seria a sua honestidade?

A diferença é sempre algo que se revela na relação com a norma, ou o que se estabelece como “normal”, com um padrão dominante. No cenário da câmara, o discurso homofóbico esforça-se por se tornar norma colocando-nos diante de casos gravíssimos de atentado à dignidade humana que devem ser analisados em uma dupla via. Tanto aquela que afeta o outro transformando-o em vítima, quanto aquela que põe em cena o algoz como um tipo psicopolítico que se posiciona como autoridade em termos de preconceito.

O deputado federal Jean Wyllys (Divulgação)

O filme em questão nos apresenta aqueles deputados autoritários autoposicionados como donos da verdade relativa à sexualidade humana. Lembremos que um dos tópicos fundamentais da personalidade fascista no estudo intitulado “A personalidade autoritária” de Theodor Adorno é o interesse mórbido pelo sexo alheio, a necessidade de julgar a sexualidade do outro. Ora, a autoridade fascista que cresce e aparece na cultura política nacional, e se manifesta por meio dos cargos que ocupa, manifesta-se e impõe sua visão de mundo preconceituosa e plena de ódio como se sua postura fosse algo absolutamente normal e aceitável. Essa aceitabilidade é preocupante enquanto torna-se tendência que pode vir a ser dominar massas inteiras.

O filme Entre os homens de bem nos mostra a desproporção entre a vítima do preconceito e seus algozes.

É importante que pensemos um pouco sobre essa desproporcionalidade. Trata-se, a meu ver, de uma espécie de vão, uma clivagem, uma fratura na ordem política, de uma dimensão abissal sobre a qual seria impossível lançar uma ponte. Quando escrevi Como conversar com um fascista eu pensava em colocar em cena a necessidade dessa ponte, tendo em vista que o espectro subjetivo da personalidade autoritária é vasto. Há autoritarismo psíquico e político em gradações diversas, o que significa dizer que há muitas dimensões de abertura para o outro e potencialidades variáveis de conversação. No entanto, é impossível entrar em contato com aqueles que vivem em estado paranoico, totalmente fechados para o outro. Abertura e fechamento para o outro constituem a estrutura da nossa relação.

Desde aquele que se mantém distante por falta de afinidade até quem despreza alguém em procedimentos de invisibilização, encontramos muitas variáveis para definir a relação que se tem com os outros. No fundo da maior parte das relações reside aquilo que, em termos psicanalíticos, foi chamado de “temor de contato”. Podemos defini-lo como um medo inicial, de algum modo primitivo, que temos dos outros.

No entanto, uma “inversão do temor de contato” acontece, segundo Elias Canetti, quando, por exemplo, se está em meio às massas. Nesse momento, as  pessoas perdem o medo de encontrar com o outro por se sentirem totalmente e, de algum modo estranhamente, inseridas nesse “outro”.

Há, nesse momento, algo de perda da consciência do perigo. Há uma sensação de paradoxal aconchego, de inóspita segurança, de confusa liberdade nas massas. Nessa inversão sentimos-nos estranhamente inteiros quando somos, na verdade, apenas um pequeno grão em meio ao todo.

Digo isso para ponderar que, em meio à massa, somos capazes de perder a razão, talvez por isso, ocorram tantos fenômenos entre a violência e a paixão. Todos esses fenômenos situam-se entre algo de ritual e algo de perda da realidade, o que caracterizaria o caráter de delírio de certos eventos.

Nada disso é gratuito, como não é gratuito nada que possa se dar em temos psíquicos. A economia psíquica é um fator tão importante à política quando a política econômica.

Faço todo esse comentário para pensar na utilidade psíquica da homofobia. Conhecemos a homofobia na forma de práticas e de discursos de ódio. As práticas sempre são violentas e devem ser enfrentadas abertamente, pois uma cultura que oculta essas práticas acaba, se pensarmos em termos de economia psíquica, apesar das vantagens que se tem com qualquer conivência, produzindo sua própria autodestruição. Os discursos, no entanto, também devem ser levados a sério, pois todos os discursos tem função prática, seja no contexto da atuação simbólica, seja no que concerne ao imaginário.

A prazerosa inversão do temor de contato pode se realizar nas massas, quando todos os corpos estão próximos e se confundem, mas também de um modo deturpado quando alguém espanca outrem. Espancar é linguístico e prático ao mesmo tempo. É um ato de linguagem, além de ser um ato corporal. Do mesmo modo o discurso, ele é um ato corporal, além de ser um ato de linguagem. A voz é física, é parte do corpo, do mesmo modo que a escrita. Mas a voz é física em um nível erótico. A voz penetra na dimensão corporal e espiritual, por assim dizer, de cada um de nós. Cada vez que nos fazemos ouvir invadimos o corpo do outro. assim como somos invadidos por quem ouvimos. Acolhemos ou não aquilo que ouvimos, do mesmo modo como podemos não ser acolhidos. Um corpo fechado, como é o corpo autoritário, não escuta, ele se acostumou a gritar, a fazer ouvir na intenção de submeter o corpo do outro. O xingamento que vemos pelas redes tem essa função. E essa função, não é um exagero dizer, é eminentemente sexual, no sentido do gozo, da completude que se busca nas mais diversas situações. O termo erótico, bem mais amplo, serve de sinônimo, pelo menos em princípio. No entanto, é certo que estamos diante de uma inversão, de uma perversão, de uma deturpação.

E o delírio, qual a função do delírio na economia psíquica? Onde entra o delírio nisso tudo?

Me parece que o delírio se tornou um elemento. Um clima geral da economia psíquica geral. O fascismo tem essa força e se expressa nas redes sociais na forma de um contágio linguístico, um metabolismo viral.

O prazer de exorcizar um desejo, podemos argumentar, confirma a função do delírio na economia psíquica. Mas é bem mais provável que o delírio nos permita viver um prazer proibido. O delírio é a experiência de um desejo deturpado no fundo do qual jaz a inveja da felicidade do outro. Já que não pode ser realidade, que a realidade seja realizada fantasmaticamente e o outro, prova da realidade, seja destruído, nem que seja simbolicamente por meio de discursos.

Por isso, os homofóbicos gritam delirantemente sua homofobia. No fundo, compensam o que escondem ou o que desejam com xingamentos.

É também um jeito de se faze ver, é um jeito de existir para o olhar do outro. Aquele olhar que se deseja e que, na impossibilidade de tê-lo, passa-se a odiar por pura inveja.

O discurso da homofobia, nesse sentido, é o recibo que se passa como uma prova daquilo mesmo que se quer esconder. A inveja do prazer alheio que, se pode aproveitar pelas migalhas de contato que se tem pelo xingamento.

(3) Comentários

  1. O homofóbico esconde e compensa seu desejo mais secreto no xingamento, no discurso violento que pratica contra o outro, outro que, no mais recôndito de sua personalidade, acalenta, inveja e sobretudo deseja.

  2. O preconceito significa a intolerância diante do outro, é o não aceitar aquela pessoa na sociedade, então usa formas para praticar violência. Em um contexto geral, o xingamento é umas das formas de ferir a integridade de outra pessoa, sem ao menos conhecer, constituem um crime e os responsáveis deveriam ser punidos. A liberdade individual deve ser respeitada, mas o que vemos no cotidiano são pessoas serem violentadas por meio de palavras ou até mesmo violência corporal, hoje existem leis de proteção, mas não é o suficiente. O que nos faz refletir sobre os motivos que levaram a esse tipo de comportamento, tudo é explicado pelo o fato da cultura imposta durante gerações, onde o preconceito cresceu diante da sociedade.

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