Com base em Marx e Darwin, romance de Marcelo Rubens Paiva ‘é aula leve de filosofia’
O escritor Marcelo Rubens Paiva (Foto: Julia Moraes / Divulgação)
Um orangotango, enjaulado em um instituto científico, escapa à noite para ler na biblioteca. Ele começa lendo quadrinhos do Batman, mas logo passa aos filósofos gregos, a Hegel, a Darwin e, enfim, a Marx. Torna-se um orangotango darwinista-marxista que, de sua jaula, tece comentários e críticas aos humanos. Ao se ver transferido a um zoológico, depois de muito usado pela ciência, ele se revolta e começa a colocar seus conhecimentos em prática: passa a planejar a revolução dos bichos.
É este o enredo de O orangotango marxista, novo romance de Marcelo Rubens Paiva, recém-lançado pelo selo Alfaguara, da Companhia das Letras. Na fábula, em tom científico-satírico, o autor usa a voz do símio protagonista para, em suas palavras, “se distanciar dos seres humanos e, assim, criticar, comentar e satirizar o nosso modo de vida”, como um estrangeiro que observa de fora e toma notas – no estilo de Memórias póstumas de Brás Cubas (1880), de Machado de Assis.
“É uma releitura de Marx desde a origem, com um olhar diferente do que estamos acostumados. Mas, ao mesmo tempo, é uma aula leve de filosofia”, conta à CULT o autor, que escreve seu primeiro livro de ficção em algum tempo: os últimos, muito posteriores ao seu mais famoso, Feliz ano velho (1982), foram Meninos em fúria (2016), sobre o movimento punk brasileiro, e Ainda estou aqui (2015) – que, indicado ao Jabuti, aborda a luta de sua mãe contra a ditadura militar na busca pelo marido, o ex-deputado Rubens Paiva, desaparecido durante o regime.
“Os gêneros [literários] não se aproximam, mas acho que minha forma de olhar para a sociedade, seja na ficção ou na não ficção, continua sempre sendo a mesma”, diz o autor. À CULT, Paiva fala sobre as inspirações, leituras e referências para a criação do orangotango:
De onde veio a ideia de escrever essa “fábula”? Por que narrar a atualidade pelos olhos de um bicho?
Tenho ido muito ao zoológico e, ali, observado como os animais nos olham. É um olhar de quem assiste televisão ou a um espetáculo. Imaginei eles assistindo à transformação da humanidade: da espécie mais evoluída do planeta, temos nos tornado uma humanidade marcada pelo uso do celular, pelo sedentarismo, pela obesidade e pela despreocupação com o mundo ao redor. O mais preocupante é que esquecemos, aos poucos, a curiosidade científica e filosófica. Eu percebi que me identificava com essa visão dos animais, de certa forma.
Que tipos de crítica um olhar animal pode fazer à nossa sociedade que falha ao narrador humano?
Bem, é um afastamento que permite que você faça sua análise de uma forma menos amarrada. Eu quis olhar o homem do ponto de vista da filosofia, mas com uma distância segura para olhar de fora; me distanciar dos seres humanos e, assim, criticar, comentar e satirizar o nosso modo de vida. Aí, pensei que um animal seria ideal. Mas não precisa necessariamente ser um bicho para fazer esse tipo de crítica. Em Memórias póstumas de Brás Cubas, Machado de Assis faz isso com um narrador cadáver – desumaniza para criticar. A mesma coisa em O enclausurado (2016), de Ian McEwan, uma obra sobre um feto que percebe, no útero da mãe, uma trama que estava rolando entre a mãe, o pai e o cunhado. Eu achei genial. O Kafka também faz isso ao transformar um homem em um inseto monstruoso, em A metamorfose (1915). Então, veja, não inventei isso, eu apenas usei um recurso literário.
No livro, o orangotango acaba não tendo tempo de ler os existencialistas. Por que essa escolha?
Isso é engraçado, porque o que eu mais estudei foram os existencialistas e o pensamento que se produziu em Maio de 1968, Sartre e companhia. Mas acho que o existencialismo é uma filosofia que não se propõe a pensar uma solução para as questões humanas. Ela, de certa forma, é uma aceitação do nada, do vazio. Quando é aprisionado no zoológico, o orangotango chega a dizer que teve sorte de não ter se aprofundado mais no existencialismo, que era o próximo assunto em sua lista de leituras. Ele fica sendo, então, um sonhador, que sonha com a própria liberdade e o fim da opressão animal, sempre fazendo paralelos com a opressão proletária. Eu queria algo que desse uma esperança, ou pelo menos um caminho, e daí escolhi o marxismo. A visão de utopia ali é muito bonita.
Logo antes de O orangotango marxista, você escreveu livros de não-ficção e históricos, como Ainda Estou Aqui. Os dois gêneros se aproximam de alguma forma?
Os gêneros não se aproximam, mas acho que minha forma de olhar para a sociedade, seja na ficção ou na não ficção, continua sendo a mesma. Como cronista e escritor, eu escrevi ficções, como Blacaute (1986) e E aí, comeu? (2012), mas a ironia está presente em muitas das coisas que eu faço. Sou muito apegado à história brasileira, aos direitos humanos, mas também gosto de satirizar tudo isso, o que permite que, entre piadas, se faça críticas mais agudas. Acho que faz parte da minha personalidade, esse uso da ironia como uma arma. E aí, comeu?, por exemplo, é uma crítica ao ambiente machista. O humor é um instrumento para provocar.
E como os leitores têm recebido esse humor provocativo do livro?
O orangotango marxista é uma provocação porque é uma releitura de Marx desde a origem, com um olhar diferente do que estamos acostumados. Mas, ao mesmo tempo, é uma aula leve de filosofia, dada com humor e de um jeito irônico, então as pessoas estão gostando bastante. Acho que é uma forma de chamá-las de volta para a filosofia, para o pensamento. Eu mesmo não sabia que Marx faria 200 anos em 2018. Hoje, ele está sendo resgatado pelas pessoas em geral, e está sendo resgatado no meu livro também. Acho que o brasileiro poderia ler um pouco mais sobre isso, e de preferência sem preconceito, porque o que Marx dizia, simplesmente, é que é possível vivermos em harmonia.
O que o orangotango diria sobre o estado atual da política brasileira?
Ele diria que Marx acertou tudo.