Lula está falando para quem?

Lula está falando para quem?

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Desde que trouxe Alckmin para a sua chapa, para consternação de muitos militantes, do que mais você lembra da campanha de Lula a presidente? Eu lembro de pouca coisa. É mais comum saber de declarações aleatórias de Lula em que ele se enrosca em polêmicas desnecessárias e fornece insumos para a ávida máquina de comunicação da extrema-direita no seu trabalho cotidiano de propaganda antilulista.

Públicos homogêneos e simpáticos podem ser a perdição de oradores. Você olha as faces amigáveis, as cabeças se movendo em assentimento, vai se empolgando, subindo o tom, chegam os sorrisos, os aplausos explodem, quando se dá conta estão saindo espontaneamente tiradas espirituosas, frases de efeito e anedotas que em outra circunstância seriam cuidadosamente filtradas. Desta forma, é fácil esquecer que políticos vivem em mundos sem paredes e privacidade, graças a celulares conectados a plataformas digitais em fluxo incessante de upload. Ou esquecer que está diante de um “auditório bróder”, mas é só uma janela para uma infinidade de outros públicos neutros e hostis que vão julgar tudo que foi dito sem qualquer complacência. Possivelmente, com severidade e malícia.

Lula é um sujeito espontâneo, um mestre da comunicação oral e da retórica do corpo a corpo, mas o mundo mudou e os petistas deveriam prestar mais atenção. Primeiro, porque Lula sempre falou muito, é notório, mas em um universo em que todo mundo escarafuncha as falas absurdas de Bolsonaro para expor na grande vitrine pública dos meios de comunicação tradicionais e na conversação digital, é claro que ninguém vai aliviar para a retórica do ex-presidente.

Um candidato a presidente precisa falar, claro. Quem não fala, vira tela em branco onde os adversários projetarão o que quiserem. Além disso, quem não fala não é ouvido e nem lembrado. Assim, quando já se tem uma quota de visibilidade importante à disposição, é melhor que ele a ocupe falando do que deixar que a usem para falar mal dele. Portanto, a questão é “falar para quem?”. Até a pergunta “sobre o que falar?” é dependente da primeira.

Quando já se tem votos suficientes, fala-se para se manter o resultado, isto é, para os seus, para reforçar convicções, revigorar os vínculos. Quando se está ainda na batalha, é preciso falar para os neutros, os hesitantes, os que estão oscilando entre um lado e outro, e até para os que aderiram ao adversário, mas ainda podem ser demovidos.

Bolsonaro fala para os seus, é uma decisão que o bolsonarismo tomou há anos. O plano é manter a sua tropa compacta, diminuir ao máximo as perdas, e depois acrescentar outros eleitores simplesmente usando um recurso que se prova eficiente, eleição após eleição, desde 2016, isto é, o pânico moral ante a possibilidade da volta do PT. Calculam corretamente: 30% de bolsonarista mais 21% de horrorizados com o PT são o bastante para se ganhar uma eleição. De modo que os bolsonaristas só precisam fazer mais do mesmo, inclusive usando as falas de Lula para confirmar teses para os seus convertidos e assustar os demais.

Entretanto, Lula não pode fazer o mesmo. Durante a pandemia havia a possibilidade de viver da inércia do antibolsonarismo, mas a Covid-19 declina e é provável que o alívio pelo fim das restrições beneficie o atual presidente. Então, Lula vai ter que conquistar corações e mentes dos que não são lulistas nem sentem que lhe devem nada ou até dos que guardam contra Lula ou o PT uma certa animosidade, mas, dadas as circunstâncias, considerariam que tapar o nariz e votar no PT é um preço que se pode pagar para sairmos do pesadelo bolsonarista. Ou, no mínimo, evitar que uma parte dos que o detestem confirme seu voto em Bolsonaro na hora da decisão: é melhor votos nulos e brancos que contrários. Em suma, Lula precisa, falando, conquistar votos, não os perder, não fornecer frases de efeitos e anedotas para a propaganda bolsonarista alimentar o pânico moral e o antipetismo.

A retórica montada para auditórios fáceis e amistosos tem levado Lula a entregar o que tanto o lulista radical quanto o bolsonarista querem. Em cada lado de Lula há hoje alguns diabinhos tentadores. Do lado esquerdo, um diabinho da esquerda radical e o capetinha hiperidentitário sopram-lhe ao ouvido: “vai, Lula, diz aí umas verdades aos ricos e ao patriarcalismo, agora fala sobre o aborto, diz que a classe média não presta”. Do lado direito, um demônio reacionário é todo incentivos: “vai, Lula, fala mesmo, bota para fora, agora diz alguma coisa que assuste os evangélicos, fala do imperialismo americano na Ucrânia, elogia Cuba, manda assediar deputados, agora provoca o agronegócio”. Podia também ter um anjo para lhe dizer: “não vai que é roubada, não fala desse jeito, tem certeza de que você vai dizer isso? Pensa melhor”. Parece, contudo, que não há anjo que lhe fale ao ouvido.

Sabem o que mais parece que não tem? Uma campanha organizada, um plano de comunicação, uma estratégia persuasiva, em suma, um discurso, uma história para contar, umas falas coerentes e pensadas para conquistar os corações e não para fornecer palha aos espantalhos dos inimigos.

“Ora”, me disseram, “mas ainda não é o período eleitoral”. Mas tem isso? Bolsonaro está em campanha permanente desde o primeiro dia do seu governo. Doria fez exatamente o mesmo. Ciro Gomes tem marqueteiro, um plano de comunicação e um projeto há um ano, Lula faz propaganda de si mesmo desde o dia em que saiu da prisão e até Moro estava inteiramente dedicado à autopromoção até umas semanas atrás, quando perdeu o formidável apoio da máquina de propaganda do MBL, do qual não se recuperou até agora. E os outros candidatos, coitados, só não fazem o mesmo simplesmente porque não conseguem acesso constante aos espaços centrais de visibilidade do jornalismo nem têm uma infraestrutura importante para a comunicação em mídia digitais.

A pergunta que os petistas deveriam fazer é por que a campanha do PT dá a impressão de estar parada. Sim, as ferozes alcateias digitais petistas continuam fazendo estrago nos ambientes sociais das plataformas digitais, mas esse negócio de atacar a esmo e fazer inimigos a rodo, sem nenhuma estratégia produtiva de conseguir novos votos e novos aliados, é mais um obstáculo ao projeto de vencer eleições do que uma ajuda efetiva. O troll petista desgovernado é um poderoso repelente para neutros e oscilantes, categorias que ele, aliás, não reconhece nem respeita. Muito diferentemente do troll bolsonarista, coordenado, devidamente agendado, que cumpre fielmente as suas missões, mesmo que elas frequentemente envolvam assédio e destruições de alvos inimigos.

Por isso, a pergunta: a campanha de Lula é “só isso?”. O PT pretende ganhar essa eleição só no charme de Lula e com discursos aleatórios, um dia sobre isso, outro sobre aquilo? Lula pretende vencer o bolsonarismo: 1) Sem a pandemia para quebrar as pernas do adversário; 2) Com o presidente em exercício e seus coligados fazendo o diabo com o dinheiro público; 3) Com o gabinete do ódio dominando os meios digitais, agora com quase cincos anos de experiência a mais; 4) Com o antipetismo sempre à disposição e que pode ser remexido e ativado inclusive por meio das frases que Lula fornece?

E sobretudo, apenas com Gleisi Hoffmann, Luís Dulci e Franklin Martins, um círculo de atores políticos certamente venerandos e dignos, mas, cá entre nós, de pessoas ao redor dos 60, de cujas habilidades para a comunicação política no mundo da retórica oral e da publicidade televisiva ninguém duvida, mas que se movem como patos no asfalto digital? Jura? Com o fim da pandemia, com Bolsonaro gastando dinheiro em abundância para se eleger, com o antipetismo resistente e com a diminuição da distância, nas pesquisas, entre Lula e Bolsonaro, dificilmente a resposta pode ser uma campanha que parece atolada, lenta, difícil de largar, procrastinada, jogando na defesa e no seguro, sem inovação e juventude, e hipercentralizada na figura de Lula. Mas, enfim, o PT é quem sabe.

Wilson Gomes é doutor em Filosofia, professor titular da Faculdade de Comunicação da UFBA e autor de A democracia no mundo digital: história, problemas e temas (Edições Sesc SP). Twitter: @willgomes


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