Lula e o truque do diabo
Lula no Ato em defesa da democracia e por justiça para Marielle e Anderson, no Rio de Janeiro (Foto: Ricardo Stuckert)
“A primeira coisa a fazer: matar todos os advogados”
– Dick the Butcher, personagem de Shakespeare em Henrique 6º
Lula tinha três opções quando sua prisão foi decretada. Entregar-se, resistir, exilar-se. Sabe-se que seu entorno se dividiu entre elas. O núcleo jurídico defendia a primeira. O núcleo político uma das outras duas. A primeira, ao fim e ao cabo, era a opção pela institucionalidade, pela defesa meramente judicial.
As duas últimas escolhas significariam atos políticos de enfrentamento do golpe. Eram as corretas. Mais do que dizer golpe, era necessário agir como se age diante de um golpe, o que significa, antes de mais nada, não entregar seu corpo aos golpistas. Lula é mantido isolado e não pode haver dúvida razoável neste momento de que seus carcereiros estão empenhados em sua destruição psíquica e em mantê-lo preso pelo resto de seus dias.
A escolha, assim, foi jurídica. Havia a expectativa de julgamento, na semana seguinte, da Ação Direta de Constitucionalidade que poderia declarar que a prisão sem trânsito em julgado violava a presunção de inocência estabelecida pela Constituição. Isto teve forte peso na decisão de Lula de submeter-se passivamente ao decreto de prisão de Moro.
Apostar temerariamente no voto da melíflua, sibilina e sinuosa Rosa Weber era um erro. Imaginar que a presidenta do STF, comprometida com o golpe até o pescoço, permitisse fosse deliberada a ADC, outro erro. Ambos consequência da mãe de todos os erros: supor que um golpe se derrota com um recurso ao Judiciário.
Na lógica inexorável do golpe jamais aquele julgamento aconteceria naquele momento. O golpe havia, afinal, chegado à sua consumação triunfante: depois de derrubar a presidenta constitucional, encarcerar aquele que seria, segundo todos os prognósticos razoáveis, o próximo presidente da República.
Um golpe e um regime de novo tipo. Desde, digamos, Napoleão III até as ditaduras militares da América Latina entendemos golpe como uma ruptura rápida que elimina do cenário político os adversários e rompe com a estrutura jurídica e política anterior.
Os golpes de novo tipo fazem tudo diferente. São difusos. Não há um agente facilmente identificável que deflagra o processo. O Judiciário pode protagonizar o golpe, como em Honduras e no Brasil. São preservadas as instituições políticas e jurídicas típicas do Estado de Direito. Age-se no seio delas aparentando, insidiosamente, respeitar a legalidade que estão violando. A vigência e o texto da Constituição não se alteram, mas sua matéria é esvaziada por meio de interpretações anômalas, bizarras, e assim instaura-se um estado de anomia constitucional em que tudo é permitido porque desconsidera-se até mesmo o quadro lógico mínimo estabelecido pela linguagem normativa.
O objetivo do golpe, derrubar a presidenta, aniquilar um partido político e sua maior liderança política para que não voltasse ao poder, foi avançando passo a passo nessa anomia constitucional. Moro violou a proteção constitucional do sigilo das comunicações entregando a uma rede de televisão a conversa de dois presidentes da República, sob o olhar complacente e omisso do STF.
O impeachment, que em toda nossa tradição jurídica e constitucional exigia um crime de responsabilidade, foi transformado em uma espécie de voto de desconfiança que só existe no parlamentarismo, igualmente sob o olhar complacente e omisso do STF. A própria Corte, por fim, autorizou a prisão de Lula negando-lhe o habeas corpus mediante uma interpretação esdrúxula da presunção de inocência, mas de acordo com o “princípio da colegialidade” que, claro, como todo o mundo civilizado sabe, se sobrepõe ao princípio da liberdade.
Esse quadro mostra simplesmente a categoria ditadura, embora sob nova forma. Concentração do poder e ausência de limites constitucionais.
Contribuições teóricas recentes e oportunas, ainda que sob nomenclaturas diferentes ou com nuances de abordagem, identificam esse fenômeno em que a aparência de Estado de Direito é preservada para encobrir e legitimar a concentração de poder e a ineficácia de regras constitucionais que o limitem. Rubens Casara, em seu Estado pós-democrático (2017), observa que “a figura do Estado democrático de Direito, que se caracterizava pela existência de limites rígidos ao exercício do poder (e o principal desse poder era constituído pelos direitos e garantias fundamentais), não dá mais conta de explicar e nomear o Estado que se apresenta”.
A perspectiva de Pedro Estevam Serrano também vê o estado de exceção, embora não o identifique como permanente. Mas acrescenta um ingrediente largamente utilizado no atual processo político e social brasileiro e, a rigor, clássico do fascismo: a construção do inimigo interno. De fato, o reacionarismo, ou por vezes o filofascismo da classe média acolheu amplamente em seu imaginário a criminalização e a desumanização da esquerda.
Essa ditadura de novo tipo é a forma política do neoliberalismo. A captura integral do Estado pelo mercado. A categoria do político tem que ser diluída para ampliar e acelerar a acumulação. Nesse contexto, diluir o político significa expulsar do cenário político e social os que defendem direitos e as políticas de bem-estar social que podem retirar da miséria milhões de brasileiros.
Lula decidiu se entregar e ao fazê-lo agiu como se tudo não passasse de uma contingência a ser resolvida juridicamente pelos bons juízes que ainda há em Berlim. Escreveu uma carta no 1º. de maio afirmando que vivemos em uma democracia incompleta. O que estamos vivendo desde 2016 não é uma democracia incompleta. É uma ditadura completa. Como disse Baudelaire, o truque mais esperto do diabo é convencer-nos de que ele não existe.
O que vai tirar Lula da cadeia é a luta de classes, a verdade e a razão que só estão nela e em lugar nenhum mais. E a arena da luta de classes não é o parlamento, a sala do pleno do STF ou o gabinete do Moro. É a rua.
MARCIO SOTELO FELIPPE é advogado e foi procurador-geral do Estado de São Paulo. É mestre em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela USP
(23) Comentários
Uma verdadeira aula. Muito claro e assertivo na sua concepção de direitos.
Um soco no estômago.
Pura verdade nua e crua,temos que ir as ruas ou ficaremos prostados para sempre.
A mídia foi na raíz da esquerda. Fez lavagem cerebral nas massas fazendo que acreditassem que o PT era o pior que havia no Brasil, e deu certo porque não conheço outro partido que tivesse maior poder de mobilização, mas diante da lavagem cerebral toda e qualquer manifestação que fosse feita as massas atingidas não iam porque era coisa de PT, ainda bem que agora muitos já acordaram, espero não ser tarde demais.
O golpe só pode ser tratado (defender-nos dele) por vias fora do institucional. Se o golpe teve a participação do judiciário, da mídia , seus participantes são nossos inimigos, não podemos nos defender com eles.
Texto excelente ! Muito esclarecedor , grata.
Quer dizer que tudo que foi apurado e comprovado por meio de provas diretas e indiretas em relação aos atos cometidos pelo ex-presidente Lula é pura invenção de um monte de cabeças, MP, PGR, juiz de primeira instância, 3 desembargadores, STJ, STF, todos foram comprados e estão alinhados num mesmo propósito? Como seria possível este alinhamento com tantas pessoas envolvidas e todas com o mesmo interesse? Será que os defensores do ex-presidente não estão criando uma narrativa para também envolver a população? Quais interesses podem estar por trás? Lula e a maioria dos políticos não são pessoas isentas de interesses. Posicionamento político sega as pessoas.
Excelente texto, a saída do Estado de Exceção é a luta de classes. Vem com as mobilizações nas ruas, nas praças, nas universidades…
Essa é a verdade que estamos vivendo no Brasil.
Sem retoques..! Simplesmente, prefeita, precisa, brilhante e corajosa a análise do professor Márcio Sotelo Felippe..!
Surpreendente lucidez!
Texto provido de rara lucidez, no contexto de um cenário cujo horizonte se mostra eivado de obscuridade, restando inócua a interposição de embargos de declaração… Que a sua reflexão se reproduza e seja capaz, um dia (oxalá, breve!), de contagiar corações e mentes. Parabéns, sobretudo, pela coragem, Professor Márcio Felippe!
Excelente texto. Repasso. Porém creio que qdo colocamos “rua”, as pessoas, pelo que venho sentindo, diante da inércia de lideranças de quem esperávamos uma resistência efetiva, estão soltas, querem saber o cunho da “rua”. A luta de classes toma rumos inesperados. Assim sendo percebe-se uma necessidade cautelosa de saber , de antemão, a forma da luta. As Centrais sindicais, ao invés de construirem a greve geral, apostam, de fato, no contrário, na “imobilidade”. As lideranças parlamentares, salvo algumas exceções, são legalistas e optaram pela luta jurídica. Assim, a “rua” deve ser traduzida como formas concretas de enfrentamento, para que se possa de uma condição de resistência, passar â ofensiva ao golpe.
É tenha certeza Dr. MARCIO SOTELO, brevemente o ministro Luiz Roberto Barroso irá mandar arquivar todo e qualquer Processo que exista envolvendo o ilegítimo MICHEL TEMER, no que concordará a Procuradora-Geral RAQUEL DODGE. Isto Acontecerá, se demorar muito, logo após as eleições de outubro vindouro.
Texto delirante, sem pé nem cabeça. Patético espernear de um derrotado.
“SÓ A RUA AI TIRAR LULA DA CADEIA”.
Lamento que tão nobre advogado seja formado com impostos do cidadão na USP. Tal texto é de uma ingenuidade e imbecilidade atroz.
O Brasil só vai crescer quando inibirmos o sociakismo/comunismo. Acabar com salários nababescos no serviço público.
Excelente e esclarecedor artigo,me identificou autores que eu não conhecia.Agora vou procurá_los para ler.Obrigada.
Parte substancial de nossa esquerda ou é muito competente para dar tiro no pé ou muito boa para levantar cortina de fumaça e destruir por trás dela os velhos caciques que necessitam sair de cena para o surgimento de uma “esquerda” comprometida e paga por George Soros e cia.
É sempre muito bom ler alguém falando coisa com coisa. Acreditem, é peça rara nos dias atuais. Eu gostaria de ouvir do autor, quem sabe numa continuação, algo sobre as crenças e os fundamentos que derradeiramente levaram Lula a se entregar sem qualquer resistência. Foi um cálculo (eleitoreiro)? Foi ingênuo? Que estratégias teriam lhe ocorrido? Que argumentos esteve a pesar? Seus advogados realmente o influenciaram no desfecho? E a cúpula petista? Enfim, fico ainda curioso de especular o que teria sido discutido mais afundo naqueles últimos dias em liberdade.
O truque do Diabo, está em o PT tentar fazer toda a sociedade acreditar que não institucionalizou a corrupção no país, que não se alinhou com Maluf, Sergio Cabral, Temer como vice etc, o plano do PT era acumular dinheiro desviado do povo brasileiro através da corrupção para enriquecimento próprio e para fortalecer o partido para permanecer no poder indefinidamente, botando um bolsa esmola na mão direita e um titulo de eleitor na mão esquerda do pobre.
Boa reflexão. O julgamento, acusação e prisão do Lula é algo intrigante e complexos. Pode ser que ele seja verdadeiramente culpado como a justiça e seus adversários acusam. Mas, há uma forte impressão que sua prisão seja para tirá-lo da disputa presidencial. É possível que depois que as eleições passarem, concedam a ele a habeas corpus, negada pelo STF. Se pelo menos não derem, poderá haver um relaxamento da pena.
Análise coerente e lúcida! Parabéns, Marcio Sotelo Felippe!