“Lugares de fala” e a urgência da escuta

“Lugares de fala” e a urgência da escuta

“Eu não sei dizer

Nada por dizer

Então eu escuto

Se você disser

Tudo o que quiser

Então eu escuto

João Ricardo-Luli, Fala.

Uma nova militância dos direitos humanos

A militância e os ativismos no campo dos direitos humanos têm crescido significativamente nos últimos anos, conforme se constata na proliferação de publicações sobre a temática, na multiplicação de coletivos organizados, na profusão de discursos que reivindicam essa referência, na atuação de organismos governamentais e não-governamentais disputando os sentidos e limites desses direitos humanos.

Isso decorre de diversos fatores, dentre os quais se podem destacar a crise da forma partido (com seu programa de transformação universal e algo abstrato) como a organização política por excelência, a segmentação de pautas e reivindicações por reconhecimento a partir de marcadores sociais de diferenças (gênero, sexualidade, raça, idade, etnia etc.) e um desgaste do sistema político que tem desacreditado os canais institucionais tradicionais da política para incorporação das agendas de grupos vulneráveis diante do crescimento das forças conservadoras nas instâncias estatais.

Além disso, a emergência de tecnologias e a reconfiguração do espaço público da vida e da política, com novas formas de comunicação e interatividade, têm permitido a profusão de ações menos centralizadas, intensamente subjetivizadas, um tanto mais criativas e algo mais difusas do que no período anterior, propiciando novos laços e maiores dificuldades de assentar acúmulos e cristalizar saldos organizativos.

Ainda que seja precipitado decretar a exaustão total de paradigmas anteriores e ainda que não haja uma substituição por inteiro de uma forma de militância por outras, como algumas versões mais romanceadas dessa narrativa sugerem, notam-se deslocamentos e tensões importantes na experiência política de novas gerações, que combinam reivindicações justiça redistributiva com demandas marcantes de reconstrução de identidades e subjetividades.

Nesse processo gradativo e em aberto, que se desenrola cotidianamente e nos mais diferentes espaços, os grilhões que prendem corpos e desejos parecem importar tanto quanto a crítica à propriedade privada dos meios de produção;  combate a racismo, machismo, LGBTfobia já não é assunto para depois do “dia D” da revolução; redes sociais e internet permitem conexões e potencializam ações impensáveis à época da sociabilidade política restrita ao chão de fábrica.

Questionando privilégios, criando resistências

Cada desterritorialização, assim, aparece como produto e, ao mesmo tempo, fato gerador de mudanças nas relações de poder ordenadas sob o regime de partilha anterior. São reconfigurações entre sociedade civil e Estado, mas, sobretudo, são empoderamentos que desequilibram o interior do próprio campo das esquerdas com seus partidos, movimentos sociais, organizações de base etc. Cada passo gera uma resistência à mudança e um tensionamento.

O que era então mero apêndice a lutas “maiores” e “mais transformadoras” torna-se protagonista da luta contra a própria opressão.

Não há dúvida de que essa fronteira cruzada não permite mais volta: a libertação dos grupos que estão assujeitados por opressões estruturais não dependerá de favores, de gentilezas e de concessões. A (auto)organização, a voz e as lutas desses grupos serão, cada vez mais, de titularidade dos próprios sujeitos afetados pela violência dos preconceitos e discriminação.

É neste contexto que o questionamento e a problematização trazida pela reivindicação dos “lugares de fala” emerge. É inegável a importância desse descentramento do pensar e do fazer a política para além do assento privilegiado e supostamente universal do homem branco, heterossexual, cis e endinheirado na história.

Os verbos da ação política, assim, não podem mais ser conjugados em terceira pessoa, mas em primeira. Ninguém melhor do que o grupo que é portador da experiência do sofrimento e do preconceito para capitanear sua própria emancipação.

“Lugar de fala” como afirmação do protagonismo dx oprimidx

O “lugar de fala” remete, simultaneamente, a um duplo movimento: tomada de um ponto de enunciação que deveria pertencer por legitimidade de experiência ao oprimidx e, ao mesmo tempo, despejo do titular de um lugar ocupado, por força da dominação, por aquelxs que se apossaram das tradições de fala em uma sociedade estratificada.

Desse modo, a fala expressa uma determinada configuração das relações de poder que estrutura os lugares sociais que conferem reconhecimento a cada pessoa. A cada umx, segundo esse diagrama, cabe ocupar a área definida pelos limites predeterminados dos seus territórios. Romper com a determinação justificada a partir de preconceitos e estigmas, como a “incapacidade” da mulher, a “brutalidade” dos negros, a “anormalidade” das pessoas LGBT, é um passo fundamental na afirmação da igualdade elementar e das diferenças constitutivas desses grupos.

Somente com o transbordamento dos estreitos traços desenhados por uma ordem social excludente é que esses grupos minorizados (que a rigor sequer são minorias) conquistam sua visibilidade, suas reivindicações e seus direitos.

No entanto, determinados usos (e abusos) desse conceito de “lugar de fala” têm levado a uma lógica problemática de privatização das pautas em uma armadilha identitária nos movimentos de direitos humanos. A superafirmação desses lugares como únicas e exclusivas fontes de legitimidade para discutir problemas que tocam a todxs acabam alienando ainda mais esses grupos e desresponsabilizando aquelxs que deveriam se implicar (não por generosidade, mas por dever) nas lutas por igualdade e respeito.

Falar mais, ouvir mais e com muito mais gente

O “lugar de fala” tem sido, por vezes, apropriado de modo a não combater a estratificação, mas a reproduzir as hierarquias. Como se sabe e ficou claro nesse largo processo histórico de questionamento de privilégios, os lugares de enunciação não se traduzem, necessariamente, em posições coerentes e emancipatórias com a ontologia dos sujeitos.

Por exemplo, gays, apesar de viverem cotidianamente sua sexualidade dissidente da heteronormatividade, também reproduzem homofobia (para não dizer machismo, racismo, preconceito de classe, dentre outros). Ou seja, x oprimidx introjeta as mesmas estruturas, potencialmente, que induzem a seu assujeitamento na ordem de discriminação e preconceito, com todas as contradições aí existentes.

Perry Anderson, em seu conhecido ensaio sobre as “trilhas do materialismo histórico”, analisa a curiosa constatação de que as principais lideranças da classe operária não eram, por certidão de nascimento, membros dessa mesma classe. Marx, Engels, Lenin, Trotsky, Lukács, Rosa Luxemburgo e outrxs que se engajaram profundamente nas lutas revolucionárias contra o capitalismo não eram de famílias empobrecidas e operárias. Se a “lei de ferro” do “lugar de fala” na sua acepção mais tradicional estivesse vigente desde o século XIX, provavelmente não conheceríamos o legado dessxs lutadorxs, que transitaram e viveram profundamente questões que poderiam ser consideradas alheias à sua condição e aos seus interesses mais imediatos.

Essa analogia evocada, guardada as proporções devidas, tem por finalidade apenas mostrar que uma abertura maior é necessária para a construção de alianças e apoios para as nossas pautas. A legítima reivindicação do “lugar de fala” não se pode engessar em uma espécie do “você sabe com quem está falando?” nas militâncias de direitos humanos.

A política transformadora que almeja universalizar princípios de igualdade e de liberdade deve ser atividade de todxs. Por direito e por obrigação. Não precisa ter título que legitime um único “discurso competente” que desqualifique de partida as outras falas e lugares. As diversas experiências – diretas e indiretas – com uma sociedade opressora precisam ser ouvidas por oferecerem outros “lugares de fala” com contribuições particulares, desde que, obviamente, haja disposição de luta para mudar o que está aí. O que não vale é legitimar discursos opressores de jeito nenhum.

“Lugares de fala”: expressão no plural

Por óbvio, nem todas as pessoas falam do mesmo lugar social e possuem as mesmas relações como as estruturas de opressão. Não se pode negar a existência de “lugar de fala”, mas precisamente se deve frisar que “lugares de fala” é expressão que se pronuncia sempre no plural.

Nesse sentido, falta ainda aprendermos a valorizar a fala e a escuta de todxs. A busca por todas as distintas experiências deve ser incessante e, ainda que não seja fácil de ser atingida (se é que pode ser plenamente atingida), serve como um norte para orientar as ações nesses campos.
Não se pode, portanto, colocar apenas o homem branco, cis e heterossexual para falar em nome de todas as “minorias”, por mais que ele se sensibilize com as questões. Mas tampouco se pode, como em alguns momentos se tem feito, desqualificar de partida qualquer iniciativa desses homens quando tentam ser aliados dos movimentos LGBT, feminista, negro.

Até mesmo porque, na nossa sociedade de privilégios, esse homem poderá estar em determinados espaços inacessíveis aos outros segmentos, veiculando reivindicações e demandas destes a públicos de difícil acesso. Constatar isso não significa resignação com o fato de que determinados espaços ainda estão bloqueados. Sem dúvida, é preciso romper esses bloqueios e os lugares onde circulam os homens brancos cis e heterossexuais também deve estar aberto à presença das mulheres, dos negros, das pessoas LGBT. No entanto, entra o mundo ideal e o real há uma distância e a questão é qual tática adotaremos para fazer com que esses mundos venham a coincidir.

Não se trata, aqui, de sugerir um relativismo ingênuo ou opressor de colocar em mesmo patamar todas as experiências. Ao contrário disso: somente reconhecendo o que há de peculiar em cada vivência é que compreenderemos a necessidade de todas elas terem seu espaço.

Precisamos de muito mais gente militando das mais diversas e impensadas formas e não menos gente fazendo sempre o mesmo. A renovação das nossas práticas e das nossas ideias é um imperativo desses tempos.

Tampouco se diz aqui que todas militâncias se equivalham ou que todas devam ser aceitas do mesmo modo. Mas, em se tratando de pessoas honestas e com engajamento sério, não há razão para não haver uma boa dose de fraternidade e abertura ao diálogo. A destruição de laços de cumplicidade e de confiança abala as possibilidades de construção de pontes comuns e de alianças estratégicas que vão além das discordâncias pontuais que sempre vão existir.

A diferença entre desconstrução e destruição

Precisamos de atenção sempre redobrada em relação às reproduções de machismo, de racismo, de LGBTfobia e outras formas de preconceito que frequentam as nossas subjetividades e os nossos coletivos. Já não podemos tolerar, em grau algum, argumentos que hierarquizam opressões como durante muito tempo se passou inclusive no campo “progressista” e das “esquerdas”. Não há uma fila prioritária da luta social em que primeiro se devem combater exploração econômica, depois o machismo, o racismo, a LGBTfobia ou outras formas de preconceito.

Contudo, precisamos saber diferenciar a maneira como esses preconceitos se manifestam em cada sujeito. Um esforço para compreender isso não significa, de modo algum, ser conivente ou tolerante com a reprodução das estigmatizações, mas sim uma preocupação com dar uma chance ao outro para que possa desconstruir suas visões formatadas culturalmente e melhorar.

A eleição de adversários é um momento fundamental de qualquer luta política. É preciso identificar bem contra quem se luta para alcançar uma vitória, saber de onde virá a resistência e aferir quanto de energia e força será necessário depositar em cada frente. Nos casos de discriminações que são estruturais, é evidente que não se pode simplesmente desresponsabilizar os seres humanos que agenciam essas estruturas e dão concretude às violências. Mas não se pode também demonizar sujeitos como se fossem a encarnação das estruturas de poder que se quer, em última instância, combater. Personalizar em nível extremo só tranquiliza a consciência de atacar um espantalho, mas não garante, por si só, um avanço significativo na luta.

Um problema bastante comum nas militâncias é o de não modular os diferentes discursos para os diferentes públicos existentes. Uma matização precisa ser feita a depender do público-alvo: há pessoas que não estão em disputa e que merecem apenas o embate cru e a ofensa na mesma moeda, mas há pessoas que estão abertas para ouvir, aprender e melhorar. Se darmos diálogos praquelas e porrada nestas, erramos totalmente.

Nessa linha, é preciso recitar – como se mantra fossem – frases como Bolsonaro não é a mesma coisa que Gregório Duvivier e Feliciano não é igual a Jean Wyllys. Desconstruamos com rigor os preconceitos reproduzidos, mas não promovamos linchamentos dos poucos aliados que temos.

Qualquer desvio de companheirxs, que travam suas batalhas políticas e culturais por uma sociedade melhor em diferentes frentes, parece ser razão suficiente não para problematizar e desconstruir as contradições e equívocos que atravessam a todxs nós por meio da crítica qualificadora, mas para “jogar fora” em definitivo essa pessoa que cometeu o grave erro de não ser perfeita.

Se orientarmos a atuação por uma postura beligerante e pouco aberta, gozaremos de consciência tranquila, mas a tendência é o maior isolamento e enfraquecimento das pautas específicas, que serão incapazes de dialogar e ampliar sua esfera de incidência e de pressão na sociedade.

O narcisismo militante

Não parece salutar impor, à nossa imagem e semelhança, uma cobrança para que todas as formas de militância sejam enquadradas e reduzidas em sua complexidade à postura que escolhemos para nós mesmos.

É evidente que os tipos de militâncias, suas potencialidades e suas limitações para as lutas sociais e as causas que defendemos devem ser questionadas, debatidas e problematizadas na medida em que dizem respeito a todxs que estão engajadxs nos movimentos. Mas não a partir de caricaturas que desqualificam de antemão, sem dar chance de melhorar, pessoas que se identificam com o nosso próprio de campo.

A dureza excessiva no trato e a intolerância ao outrx não significam radicalidade política e maior energia emancipatória. A forma perversa de destruição e não de desconstrução dx outrx no que ele tem de problemas se personifica em uma imagem contemporânea dx militante em seu território seguro, com posições bem demarcadas e armas apontadas para sustentar distâncias e autopromoção.

A postura excessivamente individualista e pouco construtiva de alguns militantes, facilitada pela ação política virtual em que basta um clique para desencadear uma opinião e uma briga, está gerando exatamente isso: uma expectativa idealizada de outrx, um narcisismo que só reconhece digna de reconhecimento e respeito a própria imagem projetada em um espelho.

A renovação material das bandeiras e programas do nosso campo também ainda precisa de uma reinvenção das práticas e métodos à altura. Temos de falar muito e de ouvir também bastante nesse processo de recriação das nossas militâncias. Que essas linhas sejam lidas como uma crítica construtiva para essa árdua tarefa.

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