Lugar de fala e lugar de dor

Lugar de fala e lugar de dor
Montagem sobre obras da artista Mira Schendel (Divulgação)

O lugar de fala é o lugar democrático em relação ao qual precisamos de diálogo, sob pena de comprometer a luta

 

Para Tainá Reis e Vilma Piedade, companheiras de muitas lutas que me fazem pensar todo dia mais e mais

 As chamadas minorias alcançaram seu lugar no cenário político por meio da afirmação da identidade. É importante sublinhar que o termo minoria em seu uso isolado perde sua conotação fundamental, por isso, não apenas por dever didático, é que devemos sempre falar em minorias políticas.

Não poderia deixar de ser assim, a participação política implica a entrada do corpo marcado no lugar que o poder reservou para si contra os corpos, aquele lugar onde o poder se exerce para dominar o outro, para subjugar, para submeter, transformando cada um em objeto: o trabalhador no capitalismo, a mulher no patriarcado, o negro na raça, as formas de sexualidades no regime do contrato heteronormativo. A consciência disso levou a um ato de contramarcação politicamente produtivo: hoje as mulheres se auto-afirmam como categoria política, bem como as mulheres negras, os negros, os gays, as lésbicas, os surdos-mudos, os quilombolas, os moradores de rua, os sem-terra, os indígenas e assim por diante, sempre tendo em vista a reivindicação de um direito.

Só se entra na esfera política quando se quebra a blindagem do poder. Essa entrada é ela mesma já parte da luta política, seu momento originário a ser sempre reafirmado. No entanto, não se pode perder de vista que o conceito de identidade que hoje em dia é usado e ressignificado em sentido libertário, é originalmente opressivo. De nada vale senão como forma de quebrar a hegemonia do poder de uma identidade sobre as outras. Em uma sociedade que estivesse para além do poder, não usaríamos esse conceito tranquilamente.

A identidade é em seu uso no contexto das lutas políticas, uma força de alto impacto potencial. Quando nos afirmamos como mulheres, ou como mulheres negras, ou como mulheres negras lésbicas, ou como mulheres negras lésbicas muçulmanas, ou como mulheres negras lésbicas muçulmanas e brasileiras, nos tornamos mais potentes politicamente. Mas não devemos perder de vista o sério risco da fragmentação da luta que destrói a luta. Por fim, quando alcançamos a identidade mais pura, encontramos a condição do indivíduo isolado, único em sua diferença. É isso que nos faz pensar também no perigo de um conceito muito bonito atualmente usado, mas que se torna ingênuo quando perdemos de vista a sua origem no individualismo burguês: refiro-me ao conceito de singularidade que não deve ser elogiado sem a mediação da crítica.

Talvez seja desnecessário lembrar que a identidade é histórica, que não é natural. Mas atualmente devemos ser sempre didáticos quando falamos de questões do campo ético-político. O exemplo dos povos que habitam há milênios e séculos a terra hoje em dia chamada de Brasil deve sempre ser lembrado. Eles mesmos não chamavam a si mesmos de índios e só o fazem hoje em um esforço de conversar com esse outro que são os não-índios. Sabemos além disso que o nome mulher, bem como o nome feminismo, tem uma etimologia de assustar. Que o nome “negro” também não foi escolhido pelos povos africanos. Por isso mesmo, a auto-marcação é política e não um ato de consolo ou compensação. Esses termos só tem sentido quando são usados com uma função prática e política.

Lugar de fala e lugar da dor

Um xamã ou cacique, embora tenha um nome próprio, ao falar com os brancos fala de si como “índio” porque quer se fazer entender pelos não-índios. Assim as mulheres e as feministas que já desconstruíram o natural, também falam de si com intenção política, e também didática, de fazer o outro entender. Foi a partir daí que se começou a sustentar a ideia de um lugar de fala atualmente em voga na vida contemporânea. Ora, uma característica de nossa época é a sustentação da singularidade, a forma subjetiva que expressa a existência de cada um como um ser de diferença. Por meio da singularidade fica claro que cada um quer conquistar um lugar. Esse lugar tornou-se, pela auto-afirmação da singularidade que se expressa, um lugar de fala.

Os filósofos que escreveram confissões, as pensadoras que levantaram questões sobre os direitos das mulheres, muito antes de dispormos do nome feminismo, ocuparam o lugar metodológico da fala. Até mesmo Descartes ao escrever “penso, logo existo”, fez uso de um lugar de fala. O lugar de fala é fundamental para expressar a singularidade e o direito de existir. Deturpado, ele também é reivindicado por muitos cidadãos autoritários que reivindicam expressar preconceitos e, em sua visão deturpada, o fazem democraticamente. Esquecem que o que destrói a democracia não é democrático, mas isso é outro problema.

Quando pensamos no lugar de fala do autoritário, vemos que esse lugar é realmente complexo. Se confundimos o lugar de fala com a expressão de uma verdade pessoal à qual não deveríamos reduzir a singularidade, sempre podemos usá-lo para fins autoritários. Por meio dele, podemos interromper a luta como um fascista o faz.

Não é possível falar do lugar de fala sem pressupor o diálogo enquanto reconhecimento do outro. Por isso é que se torna necessário separar o lugar de fala do lugar da dor. O lugar da dor é de cada um e em relação a ele só podemos ter escuta. Já o lugar de fala é o lugar democrático em relação ao qual precisamos de diálogo, sob pena de comprometer a luta.

Às vezes um lugar de fala pode ser um lugar de dor, às vezes um lugar de dor pode ser um lugar de fala. Se o lugar de fala é abstrato e silencia o outro onde deveria haver um diálogo, então ele já não é mais um lugar político, mas um lugar autoritário que destrói a política no sentido das relações humanas que visam o convívio e a melhoria das condições da vida em sociedade.

Talvez até agora não tenhamos avaliado uma questão, a de que a marcação implica uma dor. Aquele que é marcado como minoria, carrega a sua dor e toda dor deve ser respeitada. Mas para que o lugar da dor se torne lugar de fala, é preciso articular a dor, reconhecê-la, colocá-la em um lugar político, aquele lugar onde o outro está incluído como um sujeito de direitos que também tem a sua dor.

Mas se o lugar de fala – mesmo quando tenha vindo da dor – interrompe o diálogo, então ele corre o sério risco de estar contra si mesmo, de ter regredido a um momento que podemos chamar de anti-político. Se, de dentro da minha dor, eu elimino o diálogo, posso já ter deixado de lado a luta. Posso estar perdido em um exercício de puro ressentimento, no extremo – e há extremos – posso estar gozando na vingança ou na prepotência autoritária mascarada das mais belas lutas, tais como a da esquerda, do feminismo e do antirracismo.

Ora, ninguém está livre de afetos tristes em política. Quantas vezes não nos deixamos levar por vaidades, infantilismos, ressentimentos? Quantas vezes o moralismo burguês não toma nossos corpos e mentes e nos faz disputar com os próprios companheiros e companheiras quando deveríamos nos unir para combater os inimigos reais? Nesse sentido, falo com uma intenção que é a autocrítica da luta, em nome de uma ética da luta. Somente uma ético-política da luta sustenta a verdadeira política da luta. Pois a luta política sem ética é como a luta política sem política. A destruição da própria luta é a destruição da política. E vice-versa, pois política é luta.

Política da escuta

Nada é mais importante, no contexto das disputas dos lugares de fala, do que a política da escuta. Um homem branco, sujeito de privilégios, deve praticar essa política sempre. Um homem branco poderá ajudar muito a luta ao praticar essa ético-política da luta por meio da escuta e poderá, junto aos seus, ser um mensageiro de direitos que ele crê ou defende como sendo bons para a sociedade como um todo na pessoa de cada um dos seus participantes respeitados em suas singularidades.

A confusão atual sobre quem pode falar sobre o quê em temos de luta precisa ser desmanchada: assim como não deve haver hierarquias de opressão não deve haver hirarquia de luta. O protagonismo dos sujeitos marcados não pode se tornar motivo para que os marcados diferentemente não lutem por todos.

Dia desses estive na ALESC (Assembleia Legislativa do Estado de Santa Catarina) falando com muitas mulheres, ativistas e feministas de diversos movimentos. No final de todas as falas um homem branco líder do movimento dos moradores de rua pediu a palavra e falou que não tinha conseguido a adesão de nenhuma mulher do movimento para estar ali naquele momento. Em suas palavras, as mulheres que moram nas ruas vivem em condições piores do que as condições dos homens nas mesmas circunstâncias. Ele era um homem só e naquele momento vivia o conflito de estar ali e falar ou simplesmente ficar quieto. Afinal, é um homem e aquele era um momento da fala feminista que defende os direitos das mulheres.

Podemos nos perguntar se sua singularidade poderia ser apagada naquele momento? Se o feminismo em diálogo o silenciasse, não estaria sendo um autoritarismo disfarçado? Alguém poderá dizer que aquele homem era um opressor disfarçado que veio protagonizar no lugar onde deveria estar uma moradora de rua. Alguém poderá dizer que ele mesmo mentiu para estar naquela posição apagando uma mulher. Nunca saberemos. O fato é que sua presença e sua fala apontaram para uma ferida social imensa.

Ele falou como podia, se fez ver e, dessa forma, fez com que víssemos a ausência das mulheres de rua e de muitas outras mulheres que não estavam ali. Ao falar usando seu lugar de fala de “homem branco morador de rua”, ele mostrou a ausência das mulheres, mas também a ausência de outros homens e de pessoas em geral em uma sociedade de injustiça para todos. Ele conseguiu assim, dar relevo à sua luta e ao lugar ausente de alguém que não poderia estar ali por não ter as mínimas condições para exercitar sua presença diante de outros. Teria ele roubado “protagonismo” de alguém? Ou teria mostrado a importância da fala e do direito à presença? Teria ele usado um lugar de dor, além de um lugar de fala? Pensemos.

Naquele momento, ele me pareceu o porta-voz de algo absurdo, do abismo profundo em que estamos mergulhados. Sem ele, nós que moramos em casas, não teríamos notado a ausência das moradoras de rua.

Pensando nisso é que pergunto a cada um, com a simplicidade da urgência, se a desunião vale a pena.

(4) Comentários

  1. Acho importante apontar que a liberdade de escolha e de opinião tem sida massacrada quando não beneficia o politicamente correto das minorias políticas e é como se elas fossem autoritárias o tempo todo. A lucidez passa longe dos discursos,(não diálogos).

  2. Oi, muito bom o texto e os reflexões trazidas. Parabéns, precisamos trazer estas questões para o debate atual. Também me pergunto recorrentemente se a “desunião vale a pena”. Penso que temos que sempre atuar com empatia, respeito e respeitando os lugares de fala e dor. Faço apenas uma sugestão a autora: no segundo parágrafo aparece a denominação “surdos-mudos”, penso que seria mais adequado utilizar “surdos”, conforme aprendi em um curso de Libras. Abraços

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