Louise Glück e o que (não) conhecemos da poesia norte-americana

Louise Glück e o que (não) conhecemos da poesia norte-americana
A poeta Louise Glück: vencedora do Nobel de Literatura em 2020 não está nas livrarias brasileiras (Foto: Divulgacao)

 

Louise Glück: acordamos hoje com esse nome estampado no noticiário. A poeta norte-americana de 77 anos ganhou o prêmio Nobel de Literatura, depois de também ter recebido outros prêmios de imenso prestígio por sua obra, iniciada nos anos 1960. Mas o leitor brasileiro logo percebeu que não seria fácil confirmar, em português, se ela é mesmo dona de “uma voz poética inconfundível cuja beleza austera torna universal a existência individual”, como disse a Academia Sueca.

Tudo porque Louise Glück faz parte do time de imensos poetas norte-americanos que praticamente não existem em edição brasileira (no caso dela, creio que nem mesmo portuguesa). Para nossa sorte, temos os suplementos e revistas literárias que dão espaço aos tradutores para nos apresentarem tanto novos nomes quanto outras obras de poetas que já circulam em livros restritos por aqui.

Glück, por exemplo, circulava no país apenas nos sete poemas traduzidos por André Caramuru Aubert para o jornal Rascunho (edição 194, junho de 2016). Aliás, André é um tradutor que tem feito trabalho muito importante para ampliar nosso repertório de poesia norte-americana, publicando, nos últimos anos, pequenas mostras de poetas como Adrienne Rich (1929-2012), Mark Strand (1934-2014), Joseph Ceravolo (1934-1988), Fanny Howe (1940-) e muitos outros.

Já faz tempo que venho me queixando por aí, a amigos editores e tradutores, sobre essas incríveis lacunas na nossa biblioteca.

 

Há poetas absolutamente incontornáveis
– e vamos ficar apenas na poesia
norte-americana do século 20 –
que nunca despertaram o
interesse dos editores brasileiros.

 

 

Hoje, na era das redes, até podemos encontrar alguns poemas aqui num site, outros ali num blog, mas, no geral, quem quiser ler mostras mais substanciosas de poetas como Charles Reznikoff (1894-1976), Lorine Niedecker (1903-1970), Carl Rakosi (1903-2004), Louis Zukofski (1904-1978), Robert Duncan (1919-1988), Jack Spicer (1925-1965), John Ashbery (1927-2017), Barbara Guest (1920-2006), Susan Howe (1937-) e tantos outros, vai ter que encarar os desafios da língua inglesa e, claro, da moeda americana. Há, muitas vezes, edições portuguesas e espanholas desses poetas, o que pode facilitar a parte da língua, mas resta o desafio do euro…

Quando o filme Paterson (2016), de Jim Jarmusch, chegou aos cinemas, senti algo parecido com esse espanto do Nobel de hoje. O filme é lindo e merecidamente fez sucesso, mas as matérias mencionavam o poema “Paterson”, de William Carlos Williams, e o nome de Ron Padgett, verdadeiro autor dos belos poemas do motorista de ônibus protagonista do filme. “Paterson” é um poema imenso (mais de 200 páginas!), do qual apenas um excerto foi traduzido aqui num livro de 1987, há anos fora de catálogo; e Padgett começou a circular depois disso, em alguns sites. Foi mais um momento em que lamentamos a imensa lacuna da poesia gringa entre nós.

Mas é preciso registrar que tivemos/temos alguns grandes momentos editoriais nesse sentido, entre os quais eu destacaria a coleção de poesia da editora Companhia das Letras dos anos 1980/90 (alguns com reedições atuais), que lançou ótimas antologias de William Carlos Williams (1883-1963) e W. H. Auden (1907-1973), ambos na tradução do gigante José Paulo Paes (1926-1998), a quem tanto devemos (a tradução de Auden foi dividida com João Moura Jr.); Wallace Stevens (1879-1955), traduzido por Paulo Henriques Britto; Elizabeth Bishop (1911-1979), traduzida por Horácio Costa naquele momento (hoje existe uma outra edição com tradução de Paulo Henriques Britto); e Marianne Moore (1887 – 1972), na tradução de José Antonio Arantes.

Registro, ainda, dois grandes lançamentos de 2020: a Poesia completa de Maya Angelou (1928-2014), em tradução de Lubi Prates (editora Astral Cultural), e Entre nós mesmas, de Audre Lorde (1934-1992), em tradução de Tatiana Nascimento e Valéria Lima (editora Bazar do Tempo), preenchendo outra imensa lacuna da poesia norte-americana no Brasil.

Atualmente, é a pequena editora Jabuticaba que tem feito o esforço de lançar livros de Eileen Myles (tradução de Mariana Ruggieri, Camila Assad e Cesare Rodrigues), Bernadette Mayer (tradução de Mariana Ruggieri), Adrienne Rich, Rosmarie Waldrop e John Yau (os três em tradução de Marcelo Lotufo). É também de uma pequena editora, a Luna Parque, o mérito de lançar outro gigante entre nós: Meu coração está no bolso, de Frank O’Hara (1926-1966), em tradução de Beatriz Bastos e Paulo Henriques Britto. Coisa fina.

Destaco, ainda, a jornada brasileira de outra grande geração da poesia norte-americana – a beat generation. Boa parte da prosa e da poesia de seus principais autores, como Allen Ginsberg, Jack Kerouac, William Burroughs, Lawrence Ferlinghetti (que, a propósito, será lançado em novas traduções em breve), Diane di Prima, Carl Solomon, Gregory Corso e Gary Snyder, foi publicada aqui, desde os anos 1980, por editoras como Brasiliense e L&PM, e ainda hoje aparecem edições novas de alguns de seus livros, além da presença forte em revistas literárias, sites e antologias. De todo modo, cabe dizer: tanto esses poetas, quanto alguns de outras gerações, como Robert Creeley, Lyn Hejinian, Michael Palmer e tantos outros, têm muito ainda a fazer circular por aqui.

Longe de mim cobrar algo de quem se dedica a traduzir e editar poesia neste país. Pelo contrário, o que mais faço é aplaudir esses esforços, porque é a partir das janelas que eles abrem, dentro de suas compreensíveis limitações, que podemos desejar ter acesso a mais poetas e poemas. Apenas pretendi demonstrar que, lamentavelmente, o que se deu hoje com Louise Glück – esse (quase) vazio de poemas na nossa língua – não é nada excepcional. Nós, leitores de poesia, temos muito ainda a esperar e torcer na travessia entre o prodigioso século 20 da poesia norte-americana e as nossas estantes.

É bem provável que eu tenha esquecido ou não conheça outras edições brasileiras de poetas norte-americanos do período e, claro, agradecerei muito as recomendações. E vou agradecendo desde já aos tradutores e aos editores que se dedicarem a reduzir essa lacuna. Quanto a Louise Glück, tem gente boa cuidando disso: nos perfis de poetas e tradutores como Camila Assad, Mariana Basílio e Adalberto Müller já circulam traduções fresquinhas da poeta premiada. Bora lá ler.

Tarso de Melo é poeta e ensaísta, doutor em Filosofia do Direito pela Universidade de São Paulo. Autor de Rastros (martelo casa editorial, 2019), entre diversos livros.


> Assine a Cult. A mais longeva revista de cultura do Brasil precisa de você

Deixe o seu comentário

TV Cult