“Silêncio do som e do aqui”

“Silêncio do som e do aqui”
Maria Esther Maciel

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Em 2020 a poesia brasileira foi brindada com o lançamento de Longe, aqui: poesia incompleta 1998-2019, que reúne parte da obra da poeta Maria Esther Maciel. A bela edição da Quixote+Editoras Associadas e Tlon é um convite à leitura e ao mergulho. Preto, laranja e palha abrigam trechos do caminho trilhado pela poeta, da delicadeza e da síntese aos poemas elegíacos, passando pelo interessante e inquietante Livro de Zenóbia, o discurso crítico sagaz, preciso. Como nota Edimilson de Almeida Pereira na orelha, sublinhando o caráter ímpar do livro e sua importância.

Entre o longe e o aqui, a experiência da leitura acaba por se converter na experiência íntima de quem lê. É através dos intervalos da leitura, do além da literatura, como propôs João Alexandre Barbosa em A literatura do intervalo, que a subjetividade leitora encontra a beleza, a inquietação, a crítica, a indignação e com isso certamente tece aquilo que a poesia, mesmo quando prosa, faz bordejar: os sentidos, os afetos, o verso, a palavra, a vida. Da plasticidade presente em alguns poemas ao cuidadoso trabalho com a sonoridade, passando por diferentes arranjos formais, os poemas são diversos e, num movimento borgiano, ou talvez algo como um experimento cortazariano, é como se criassem seus precursores.

Assim, Longe, aqui conta uma história, mas não se sabe ao certo se o início vai de 1998 a 2019 ou de 2019 a 1998, tal é harmonia, a coerência e, sobretudo, a ampliação dos horizontes de leitura quando, ao lermos os poemas mais recentes redescobrimos os poemas mais antigos, ou ainda, os reencontramos, mesmo que tão distintas sejam suas formas, suas temáticas. É a voz lírica dessa poesia que se desdobra ao longo da jornada, e a escuta mais atenta perceberá como melodias, timbres, orquestrações, bem como imagens, plasticidades vão se abrindo, desfolhando-se e florindo outra vez nas fissuras do tempo, do espaço, do irrepetível tão sabido e já outro, como assinala a autora no prólogo: “Do hoje ao ontem… aqui o que foi, o que é e o que, já tendo sido, agora é outra coisa.”

O livro está organizado em três partes, cada uma com algumas subdivisões, como se abrissem um caleidoscópio por onde a memória da jornada se inscreve de acordo com aquilo que atualiza, restaura, recria. São elas: o Livro das Sutilezas, o Livro de Zenóbia, Triz e outros poemas.

São muitas as possibilidades de abordar Longe, aqui. Escolhi, como em geral prefiro, um poema e deixar que ele se diga a si mesmo, ainda que em comentário tão breve. Não estou certa de que seja o melhor a fazer diante da envergadura do livro, mas a escolha foi inevitável, embora tenha sido difícil selecionar o poema sobre o qual falar, neste espaço que reivindica poucas palavras.

Trata-se do poema “Elegia” da subseção “Onde o outro” que compõe a parte final do livro.

Elegia

Há um vestígio mineral
na sua ausência: algo
que sem estar ainda
fica: fatia de cristal

que não se vê e brilha:
solidez em transparência
elegância de pedra, luz
do que é perda e não.

Há um vestígio musical
na sua ausência: algo
que é sigilo e ressonância:

sintonia de cristais
sílabas de sim no
silêncio do som e do aqui

O tom melancólico, saudoso, algo triste caracteriza a elegia que dá nome ao poema. Mas o que a poeta faz da elegia – forma tão amplamente praticada – é que merece destaque, pela delicadeza da imagem dos cristais que assume papel de articuladora das isotopias da ausência, neste soneto contemporâneo que desafia – desafina – a forma fixa e a reinaugura a “sintonia de cristais”, dos vestígios minerais e musicais: sinfonia

Os dois quartetos, estrofes iniciais do poema tratam da perda como rastro mineral, mais que mineral, cristal. O enjambement do primeiro para o segundo verso marca a hesitação da ausência, já que todo o mais a anuncia como presença. Essa indecidibilidade entre o som e o sentido que a figura do enjambement assegura corresponderá, na estrofe em questão, à permanência da presença mesmo com o afastamento, mais do que permanência, talvez dissesse pregnância, como mostra entre o mesmo expediente do enjambement nos dois versos seguintes. Diante da consciência da separação – ausência, falta do que não mais está, o transporte de um verso a outro, a mão de um verso que segura no verso seguinte atesta não apenas a saudade, mas que aquilo que é perda e não ficará na memória, como disse Drummond de outro modo no conhecido poema “Memória”: as coisas findas/muito mais que lindas/essas ficarão”.

A presença é sentida, todavia como pedra, trata-se de uma presença mineral, que não se desfaz em pequenos quartzos ou granitos, não se desfaz como a ninfa Eco chorando pelo amor perdido, mineralizando-se até as últimas consequências, mas sim como brilho, resplandecência, que tão bem mostram as imagens dos tercetos, marcando a inesperada relação do sujeito poético com a perda convertendo-a em cristal, já que a vai tratar como luz, brilho, elegância. A despeito do que a dor assinale (perda e não) o que fica, o que resta e permanece é aquilo que intimamente (que não se vê e brilha) cristaliza a beleza, o translúcido vivido, ainda que guardado apenas na memória, mas é dali, da memória que tal lembrança existirá como música, vestígio entre sibilações que apontam para atmosfera delicada, saudosa, nebulosa da ausência (sua, sigilo, ressonância, sintonia, cristais, sílabas, sim, silêncio, som).

Há um vestígio musical
na sua ausência: algo
que é sigilo e ressonância:

sintonia de cristais
sílabas de sim no
silêncio do som e do aqui

Os enjambements se mantêm no primeiro terceto, e suavemente a sibilação mencionada acima insinua-se na lembrança até que, na última estrofe do poema, a quebra entre “sintonia de cristais/sílabas do sim/” mostra o desfazimento. Não mais a vivência, mas os seus rastros; as sílabas que apenas os vestígios em seu deslizar de um verso a outro, imitando o movimento da memória, novamente farão palavra. Esses pedaços-vestígios que ficam quando tudo silencia, quando o som cessa, quando o que foi já não é mais e ainda assim é ainda, inscrito no corpo e na página compõem o poema, o longe, aqui.

Diana Junkes é poeta, crítica literária e professora de teoria da literatura e literatura brasileira do Departamento de Letras da Universidade Federal de São Carlos, onde também coordena o Observatório Mulheres-UFSCar.


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