Lógica política do êxtase paranoico

Lógica política do êxtase paranoico
O desvario do comunismo imaginário levou grupos extremistas a disputar as eleições de 2018 (Foto: Sergio Lima / Poder 360)

 

Quem tenha se dado o estômago de acompanhar, entre várias narrativas, o discurso unificado dos grupos de extrema direita no Brasil, nas redes sociais e em outros foros de manifestação, certamente não deixou de concluir que o país vive refém de um delírio político – patogênico, por assim dizer –, de consequências imprevisíveis para as próximas décadas. Como tudo o que ocorre no terreno da moral política tem estofo lento, não é improvável que as reverberações da situação se projetem século adentro.

Esse delírio, expresso na linha que se estende das Forças Armadas, da Justiça e dos Parlamentos às ruas e redes sociais, e vice-versa, gira em torno do “avanço” do que se pode chamar de “comunismo imaginário”. Trata-se de uma decrepitude voluntária significativa, que não deixa de aquinhoar a estupidez.

Lastro histórico e factual do “comunismo imaginário”

A questão encerra importante chave de leitura, tanto para esclarecimento de fatos recentes, quanto para cobertura histórica mais remota. Ambos os focos iluminam tendências políticas correntes no país.

O desvario do comunismo imaginário levou grupos extremistas (civis e militares) a disputar as eleições de 2018 com candidatura própria, a sabotar o processo com decisões judiciais (de primeira à última instância), a tumultuar a disputa com fake news de desidratação de reputações alheias e, por fim – sufragados no caudal de mentiras e factoides –, a ocupar o aparelho de Estado.

O golpe parlamentar de 2016, efetivado para que a rede de corrupção graúda não fosse pilhada e judicializada, concedeu fermento dourado para o engrossamento desse delírio. Hoje, sabe-se que uma das perversidades politizadas foi desferida para impedir que o Ministério Público Federal e a Polícia Federal, então deixados relativamente livres pelo governo de centro-esquerda do Partido dos Trabalhadores (PT) para cumprir funções denunciatórias e investigativas, alcançassem andares superiores de partidos políticos e administrações conservadores e desbaratassem a promiscuidade bilionária destes com o empresariado monopolizador da privatização do Estado brasileiro.

O recente desmantelamento da Operação Lava Jato pela Procuradoria Geral da República (alinhada da administração federal), embora empanado em patética ambiguidade de significados e efeitos, não deixa, de certo modo, de coroar essa blindagem para impedir qualquer ameaça suplementar a agentes políticos e empresariais do campo de centro-direita.

O antipetismo corrente, engrossado anos antes do processo eleitoral de 2018, tem, no fundo, menos a ver com o combate moralista à corrupção do que com o avanço do tal comunismo imaginário. A cantilena da corrupção é sempre um álibi narrativo de entremeio para “pegar” o que consideram mais importante na outra ponta.

Segmentações sociais de apoio

O delírio do comunismo imaginário é cativo de vários segmentos sociais:

(a) do histórico positivismo (essencialmente antiliberal e conservantista) inserido no processo educacional do quadro guerreiro e administrativo das Forças Armadas;

(b) da quase totalidade das classes proprietárias graúdas e de grandes fortunas e heranças, como fantasia de autodefesa contra a iminência de desapropriação estatal, propalada por fake news aterrorizantes, de direita e extrema direita;

(c) dos media corporativos tradicionais e seu aparato publicitário, que operam em pacote conjunto e circular (de forma involuntária e não concatenada) como embrulho simbólico e imagético dos interesses de privilégio que sempre expandiram a miséria e a pobreza – as mesmas que, por seu turno, são objeto do noticiário diuturno, indutor de lucro –;

(d) do sistema financeiro aparentemente acéfalo, hipersensível em sua movimentação de capitais ao menor aceno de fala ou gesto que confronte sua preservação;

(e) de lideranças neopentecostais e evangélicas reacionárias, politizando, com fundamentalismo, a letra de livros sagrados e atribuindo, nas entrelinhas, potestades de inferno a todos os que não se harmonizam com o mesmo procedimento e/ou se opõem aos rumos federais;

(f) de amplos estratos da população civil em geral (economicamente favorecidos ou não), imersos em vida cotidiana de trabalho e lazer sob a velada cela do moralismo conservador – entre outros segmentos de entremeio.

O arco se completa com a plebe de arrastão e apoio, com destaque in caso para a estigmatizada “ralé”, impressionantemente convencida da tal ideologia, sem qualquer questionamento.

A bufonaria de extrema direita se tornou representante utilitária desses segmentos. A partir da década passada, ela se espalhou rapidamente e com força nas plataformas de redes sociais, modelos de negócio privatizadores do espaço público online com responsabilidade megaempresarial direta pelo alastramento do sinistro político hoje vivido pelo país.

Todos os segmentos trabalham para a reprodução da mesma causa. O comunismo imaginário é o alimento simbólico preferido da mentalidade (ultra)conservadora.

Contra apropriação da estratégia occupy: aparência extática como engodo dissuasivo

Poder-se-ia conjeturar que a extrema direita incrustou-se no aparelho de Estado apenas para impedir, com arroubo de moucos, o avanço do comunismo imaginário e/ou para mantê-lo distante do ouro disputado; e que, depois de barrar o inimigo, não precisaria, a rigor, fazer mais nada, bastando posição extática in loco – isto é, postar-se no espaço conquistado, como caroço incontornável – para totalizar o destino da estratégia.

Obviamente, o cumprimento da missão principal radica nessa permanência extática – vale dizer, na intervenção política de um estacar-se ad infinitum, como cadeia gélida de baobás, e jamais arredar o pé da incrustação. “O Brasil pode quebrar, mas o ‘comunismo’ não nos ‘pega’ mais”, reza o despautério.

Corruptela às avessas da estratégia do occupy estadunidense, tal como contra apropriado pela extrema direita e deslocado para as vísceras institucionais, a premissa do povoamento extático do Estado explicaria a paralisia institucional nas pastas da Educação, da Saúde Pública, dos Direitos Humanos, do Meio Ambiente, da Cultura e extensa fila. A inércia se expressaria na incompetência governamental ostensiva. A atuação do bolsonarismo na pandemia teria escancarado o rombo.

Todas as condições empíricas dessa conjetura são fortes demais, emblemáticas demais, evidentes demais – e, por isso, dissuadem. São, na verdade, um engodo. 

Ocupação extática e ruína do Estado de Bem-Estar Social

Para todas as dores da percepção naif e do tirocínio flácido, o Brasil, no que tange ao Estado federal e ao modelo majoritário de economia política, jamais padece de paralisia. A torpeza sinistra sempre teve causa; e marcha, Estado adentro, sociedade afora. A lógica paranoica da ocupação extática é extremamente medrada para, na velada estratégia de ataque, deixar de ser progressivamente expansiva.

Neoliberal, a ocupação extática tem tônus eminentemente arruinador. Desde 2016 grassam privatizações por demais indiscriminadas, cedendo riquezas e segurança nacionais ao apetite de lucro privado e ao arrepio de todas as vozes especializadas em contrário. A partir de 2018, a expansão militarista no aparelho de Estado recebe vento em popa.

O desmantelamento da estrutura de políticas públicas de minoração de riscos e reparação de danos rende notícias recorrentes, com aplauso dos media corporativos e conservadores. Deslocamentos orçamentários bilionários desidratam investimentos em educação, saúde, pesquisa científica e inovação. Carreiam verbas prioritárias para as Forças Armadas, para segmentos policiais e para comunicação e propaganda. A recriação do Sistema Nacional de Informações se beneficia dessa toada. O horizonte é, no limite, a militarização, a “policialização” e a vigilância digital generalizadas da vida cotidiana.

Com o controle da mesa do Senado Federal e da Câmara dos Deputados nas últimas eleições executivas de ambas as casas, a reforma administrativa em processo, por ora em papel rubro, somou macetes desregrados para otimizar ataques frontais às constelações de direitos sociais garantidos pela Constituição Federal de 1988.

O princípio extático, ao caucionar “avanços” multilaterais e típicos de regimes de exceção, conflui, como síntese de rota, para um beco dejà vu: a consolidação de políticas que aprofundem a “financeirização” de todos os setores do capitalismo industrial e comercial brasileiro, desde os patamares sistêmicos mais formalizados e impessoais até as trocas sociais consuetudinárias da vida diária.

O absurdo sufragado depena, assim – de forma dramática e patética –, o horizonte de um Estado de Bem-Estar Social que o Brasil sequer viu consolidar-se em metade de chão de suas principais cidades.

A implosão ecoa o fulcro e a escala das tendências: os poucos anos de expressão atabalhoada e indiscriminada do bolsonarismo – em todas as suas segmentações (civil, militar, policial e miliciana) e atuações (nos parlamentos, foros judiciários, media e ruas) – mostram, pelo conjunto antecipado da obra, o quanto se trata de um movimento político e social de corrupção antirrepublicana, para além de qualquer erosão antidemocrática evidente. Mais amplamente, ele ambienta a grosseria nos agouros de sua linhagem: inscrevem-se, nela, sabotagem antiocidental e barbarismo anticientífico.

Como emblema inconfundível, o “edifício” socioinstitucional resultante – aquilo que a derrocada paradoxalmente lega – redunda na total insensibilidade política e administrativa que assiste, sob sombras serenas, a um vultuoso genocídio pandêmico sem se apressar quanto a medidas de reversão exigidas.

Arma-se, assim – em síntese –, a necropolítica neofascista do bolsonarismo, com extenso capacho verde para o neoliberalismo e seu preceito de Estado enxuto, desertado das necessidades mais elementares da população desfavorecida – um modelo mortuário de país apequenado para si mesmo e no cenário internacional.

Estado de emergência imaginário e estado de exceção generalizado

Uma síntese dos argumentos anteriores expõe o arranjo fundamental dos fatos: o estado de emergência alucinatório da extrema direita tutela um estado de exceção real e mudo para a população inteira, especialmente a desfavorecida e segregada, que paga impostos (diretos ou a cada mercadoria e serviço adquirido) para sustentar um Estado hoje morada temporária de aterrorizados de araque, inclinados a uma arquitetura política fortemente destinada à devastação privatista da res pública.

Corrosão profunda e diversionista do país

Esse estado de exceção – vale a ênfase, forjado para deter os efeitos colaterais fictícios do comunismo imaginário e galvanizar a verticalidade das desigualdades sociais –, inflama ainda mais dissensões no imaginário político (já pleno de fissuras históricas internas) da população.

Há décadas, retroalimentado por certa filosofia de redes digitais a partir de Richmond, nos Estados Unidos, essa ideologia oca já se encontra em grau avançado de materialização social: apossou-se da subjetividade de massas (em âmbito civil e militar). Por antecipação, ela projeta, no percurso, longevidade inespecífica e consequências impremeditáveis, para além de quaisquer agrupamentos políticos que venham a participar da dança eleitoral de cadeiras da República.

Sob tais condições, o Brasil, sem rumo como nação, caminha para o precipício. A fábula do comunismo imaginário está carcomendo o Brasil – por dentro, explicite-se –, na torrente profunda de um divisionismo mais diversionista e confuso do que o seria se aquém das alfândegas exacerbadas do neofascismo. Entre outros limites relevantes, sua arquitetura ilusória veda à política convencional, disputativa de poderes de Estado, focar, com perseverança e sistematicidade, a erradicação da fome, da pobreza e do analfabetismo de milhões de pessoas (parte vultuosa das quais sem sequer direitos de cidadania), o combate aos assassinatos de índios, negros e integrantes da comunidade LGBTQIA+, a expansão da saúde pública para todo território nacional, a universalização do saneamento básico, da iluminação pública e da coleta de lixo, e assim por diante – enfim, a conclusão esperada do ciclo de modernização básica e mais equitativa nas 5.563 cidades do país, o que agora inclui a urgente nacionalização da imunização antipandêmica.

A paragem definitiva

Se a extrema direita bolsonarista não for destronada e/ou impedida o mais rápido possível em todos os escalões do Estado (federais, estaduais e municipais) – se não houver paragem definitiva, esta verdadeira e peremptória –, o progresso institucional de sua necropolítica arruinará, em menos de dez anos, a totalidade da riqueza humanitária que a luta pela igualdade conseguiu assentar na legislação, em reconhecimento à trajetória – empenhada com sangue – dos movimentos sociais em defesa dos direitos humanos, em todas as suas dimensões. A profundidade dos desdobramentos cedo atingirá a sociedade inteira, vitimando, primeiro, corpo e mente dos estratos mais vulneráveis. A perda vertiginosa (já em movimento) de pontuação no Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) da Organização das Nações Unidas (ONU), bem como de prestígio entre os BRICS, será disso o termômetro mais seco, como um tiro.

EUGÊNIO TRIVINHO é professor do Programa de Estudos Pós-Graduados em Comunicação e Semiótica da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).


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