Gilberto Braga e os vilões do Brasil

Gilberto Braga e os vilões do Brasil
(Foto: A atriz Sonia Braga em cena da novela Dancin’ Days)

 

 

Eu usei meia lurex com sandália em Rio Branco-Acre por causa da novela Dancin’ Days, de 1978, de Gilberto Braga e só lembro da maravilhosa Júlia Matos (Sonia Braga) dando um show catártico na pista de dança provando que era possível uma ex-presidiária dar a volta por cima em plena discoteca!

Aliás, quantas mocinhas e vilãs de Gilberto Braga não repetiram essa cena extasiante da dança libertadora, como a felicidade suprema, mesmo que passageira? Lembro da vilã Cláudia Abreu em Celebridade, de 2003, se esbaldando na pista de dança poderosa e momentos depois levando uma surra de Malu Mader no banheiro da festa. Delírio dos espectadores com a “justiça” e vingança possível e a briga de mulheres rolando no chão, outra marca de GB.

Gilberto Braga decifrou “o cidadão de bem” do Brasil! Uma classe média violenta e hipócrita, e os valores mais mesquinhos e individualistas de empresários e de quem tem um pouco mais de poder. O suficiente para humilhar e destruir o outro: a irmã, a mãe, o colega do escritório, uma rivalidade qualquer amorosa etc. Um Brasil hiperrealista!

Qual a cara do Brasil? A íntegra Raquel Accioli (Regina Duarte) ou a inacreditável filha Maria de Fátima (Gloria Pires forever), jovem inescrupulosa e com horror à pobreza, capaz de passar por cima de tudo e de todos e literalmente da própria mãe?

O Brasil não seria essas gêmeas antagônicas de Paraíso Tropical (2007), a mais louca de todas as novelas de GB, com Alessandra Negrini maravilhosa fazendo as gêmeas boa e má: a doce Paula e a mau-caráter Taís, algo totalmente mirabolante e crível? Estava lá nas gêmeas toda a nossa esquizofrenia, bipolaridade, duplicidade de valores.

E a quantidade de empresários corruptos, ambiciosos, perversos, sintetizados na poderosa empresária Odete Roitman (Beatriz Segall), arrogante, mesquinha, sexualmente poderosa, que não suportava o Brasil e os brasileiros. Enfim, uma vilã que produz fascínio e repulsa ao mesmo tempo.

Gilberto Braga revelou algo escandaloso: os vilões também são felizes e sim, gozam na nossa cara enquanto perpetram maldades e pior, nem sempre serão castigados. Ou, quando forem, já usufruíram o suficiente de suas maldades. Justiça? Não existe em Gilberto Braga, a não ser umas surras bem dadas e um olho por olho, dente por dente, com tapas e puxões de cabelo catárticos e sopapos em que mocinhos e vilões rolam pelo chão!

A ideia de justiça no Brasil é essa vingança regressiva e infantil e quantas cenas como essas não temos visto no cotidiano das redes? A descrença em qualquer justiça leva a esse impulso imediato que aposta na impunidade e também na busca de uma reparação imediata. Não se constrói uma sociedade com coesão, empatia e solidariedade assim. São apenas instintos primários e uma violência redentora. GB descreveu esse Brasil na sua crueza.

Por isso suas novelas foram tão chocantes e escancararam o quanto precisamos ainda lutar por um país com horizonte de justiça em todos os níveis para sair da catarse vingativa. Para sair do impulso regressivo de resolver tudo de forma individualista e violenta.

Gilberto Braga romântico e rebelde

 

E suas heroínas positivas? Gilberto Braga também romantizou a realidade, com sua Escrava Isaura branca: uma escravizada que além de não ser negra e ter traços finos, sabia ler, escrever, falava italiano, francês e tocava piano!

Sem dúvida a comoção produzida pelo romance A escrava Isaura, de Bernardo Guimarães, publicado em 1875 e pela novela de Gilberto Braga, com Lucélia Santos, de 1976, de sucesso estrondoso dentro e fora do Brasil, tem a ver com essa característica de branquitude da heroína que adocicava, romantizava e “humanizava” a personagem, bloqueando o fato da escravização ter sido majoritária e violentamente exercida contra homens e mulheres negras e negros.

Ainda levaremos quantas décadas para enegrecer a dramaturgia televisiva e encarar o racismo como motor e fundador das assimetrias e desigualdades da nossa sociedade?

As minisséries Anos Dourados (1986) e Anos Rebeldes (1992) tinham essa característica de romantização: os costumes da classe média conservadora no Brasil dos anos 1960, a repressão sexual, o tabu da virgindade, criando obstáculos ao relacionamento de uma linda normalista, Malu Mader e um garoto do Colégio Militar da Tijuca, no Rio de Janeiro.

Gilberto Braga foi mais feliz e contundente, ao meu ver, em Anos Rebeldes, descrevendo o contexto violento dos anos 1970 e da Ditadura Militar em plena era Collor, com doses menores de romantismo e afinal falando da Ditadura que a própria TV ajudara a “normalizar”.

Cláudia Abreu extraordinária encarna Heloísa em Anos Rebeldes: uma jovem impetuosa, inconformada, sensível às questões políticas e sociais, filha de um banqueiro (José Wilker) que apoiava o golpe militar e a Ditadura.

Heloísa encarnou a pulsão vital e radical de toda uma juventude que encarou a Ditadura Militar e acabou de forma terrível e trágica, brutalmente assassinada pelos militares que torturaram, mataram e perseguiram.

A minissérie produziu um efeito catártico na juventude cara-pintada de 1992 lutando pelo impeachment do então presidente Fernando Collor, envolto em escândalos e corrupção, como um personagem de Gilberto Braga.

Os “cara-pintadas” saíram às ruas cantando a canção tema de Anos Rebeldes: Alegria, Alegria, de Caetano Veloso. E em dezembro de 1992 Collor renunciou ao cargo de Presidente da República. Ficção e realidade se cruzavam.

Gilberto Braga voltaria ao tema do racismo de forma mais direta em 1984, na novela Corpo a Corpo, com Zazé Motta vivendo uma arquiteta que namora um empresário branco e rico. O casal inter-racial sendo hostilizado na ficção e na realidade, por espectadores inconformados. Quantas vezes GB esteve à frente do binarismo, preconceito ou racismo dos telespectadores?

Não se muda a história com romance apenas, e o racismo brasileiro tem sido colocado à prova com políticas públicas como a das ações afirmativas, cotas raciais nas universidades e empresas.

Outra personagem impactante foi Bebel de Camila Pitanga, em Paraíso Tropical, de 2007, a prostituta descolada, sobrevivente, pistoleira e esperta que forma um casal com Wagner Moura, um empresário ambicioso e trambiqueiro, os dois simpaticíssimos e carismáticos. O Brasil inteiro torcia por um happy end da dupla.

A vilã Bebel chamada carinhosamente de “cachorra” é uma batalhadora brasileira, cheia de humor e bordões como o da sua “catiguria”, e ganhou o coração dos brasileiros ao lado de Olavo (Wagner Moura), o vilão sedutor e também inescrupuloso e engraçado. Os brasileiros morreram de paixão pelo casal: os heróis de caráter flex nos fascinam.

O Brasil não é para amadores e Gilberto Braga nos ensinou isso. Em 2021 a impressão é que “regredimos” para o país da corrupção e falta de ética como modo público e pornográfico que Vale Tudo explicitava no final dos anos 1980: a inversão de todos os valores. Gilberto Braga, como Nelson Rodrigues, joga na nossa cara o Brasil que teremos que desinventar.

Já está acontecendo e é o que os novos dramaturgos e narradores do Brasil terão que contar.

 

Ivana Bentes é pesquisadora do Programa de Pós-Graduação da Escola de Comunicação da UFRJ.


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