Por mais literaturas insurgentes na estante

Por mais literaturas insurgentes na estante
A escritora mineira Cidinha da Silva (Foto: Reprodução)

 

Quando fui convidada a escrever este artigo, minha surpresa não foi pouca por alguns motivos. Sou uma sapatão preta, candomblezeira, filha e neta de alagoanas, cria da periferia da zona oeste de São Paulo. E embora disserte aqui de maneira fluida a respeito das identidades que me atravessam, nem sempre foi assim, principalmente porque, quando em raras ocasiões falava, eu não era ouvida quanto menos lida naquela época em que decidi espalhar minhas ideias por aí. Uma pessoa como eu precisa ter coragem pra adentrar certos ambientes e não calar diante de determinadas situações, e eu devo a minha ousadia àquelas muitas que vieram antes de mim e às que se encontram hoje ao meu lado, que lutaram e lutam avidamente pra que eu estivesse aqui, ocupando este espaço com o fim de elevar algum tom em nossas vozes.

Entre as escolhas de academizar ou não este escrito, optei pelo viés literário por estar aqui impressa a voz de uma escritora dissertando sobre literatura. Então, como fonte de dados bibliográficos, levantamentos de toda ordem sobre essas literaturas insurgentes ou mesmo pensamentos a respeito, recomendo as pesquisadoras e escritoras com as quais venho tendo mais contato, como Cidinha da Silva, Lubi Prates, Tatiana Nascimento, Amara Moira, Cristina Judar, Tatiana Pequeno, Natalia Borges Polesso, Regina Dalcastagnè, Heloísa Buarque de Holanda, Lúcia Facco, e muitas outras, em plena produção, cujos trabalhos superam heroicamente o famigerado e cansado cânone literário. Indico também o projeto Mulheres que Escrevem, cujo principal objetivo é fomentar as literaturas produzidas por mulheres, e o Clube Lesbos, uma iniciativa que propõe o debate de obras criadas por sapatões ou em cuja narrativa estejam presentes protagonistas lésbicas.

A essa altura, penso que seria interessante já definir o que chamo de “literaturas insurgentes”. Bem, é uma categoria que uso para englobar toda e qualquer literatura que não tenha sido escrita por figura hegemônica – no nosso caso, o homem branco cis heterossexual. São literaturas escritas por mulheres, negrxs, indígenas, não brancxs, sapatões, viados, transsexuais, travestis, bichas, terroristas de gênero, bissexuais. Em relação aos homens cis gays brancos, deixo a reflexão: eles insurgem, sim, mas sua figura vem aglutinando desde muito tempo nossas narrativas, sobretudo porque, quando somos colocadxs embaixo de um grande guarda-chuva multicor, quem se destaca? E digo isso, pois, ao que parece, o interesse por parte de uma literatura que se ocupe ou resvale em questões próprias da sigla LGBTQI+ se resume também àquilo que se evidencia – e me pergunto se por ser mais evidente ou por se tratar de uma tarefa menos árdua manter-se no que eu chamo de zona literária de conforto. E porque a figura que se destaca é o homem branco, gay ou não, entendemos que isso se deve, obviamente, ao machismo e racismo introjetado dentro e fora de nossa comunidade.

Nesse sentido, pensar a questão da branquitude e das masculinidades poderia elucidar perfeitamente a minha “escolha política e estética”, como bem assinalou a Natalia Borges Polesso em seu artigo “Eu escritora, eu lésbica”. Aliás, o fato da branquitude e das masculinidades estarem sendo discutidas mais a fundo apenas recentemente, dentro e fora do contexto LGBTQI+, já denuncia o fato de que brancxs e homens são colocados automaticamente como padrão, não sendo passíveis de questionamentos ou mesmo discussões sobre ser brancx ou homem e os desdobramentos dessas identidades, o que abre espaço, inclusive, para uma criação literária fluida e livre de contestações. Ao mesmo tempo, figuras insurgentes se veem sistematicamente cobradas a respeito de posicionamentos políticos a fins com nossas identidades, o que se estende à literatura que produzimos, enclausurando nossos pensamentos e narrativas em favor da heteronorma branca. E como tão variadas são as insurgências que caminham contra a hegemonia literária com a qual ainda nos deparamos nos catálogos editoriais e âmbitos literários, pra tratar as nuances próprias dessas literaturas insurgentes, aqui também faço a escolha política e estética de trilhar caminhos que se cruzem com os meus próprios passos.

Questão de espaço

Este artigo ecoa um incômodo que eclodiu faz uns anos, quando iniciei minha graduação em Letras, e que, além de crescer, passou a se elaborar também, desdobrando-se em estopins pros meus trabalhos literários e de cunho mais acadêmico. Explico: em minha graduação, havia a onipresença de textos literários ou teóricos escritos por homens. Certa de que só poderia haver aí inúmeras lacunas e me vendo livre das amarras acadêmicas, passei então a ler apenas mulheres, dando com mais dois incômodos: a invisibilização de escritorxs e personagens negrxs e sapatões.

Sempre que falo de literaturas insurgentes, recorro à Padê Editorial, das escritoras Bárbara Esmenia e Tatiana Nascimento, que se dedica à publicação de autorxs periféricxs e LBTs (lésbicas, bissexuais e transsexuais) e cujos livros são artesanais, de capa de papelão ou material de baixo custo, costurados a mão. Trata-se de um soco no estômago do mercado editorial, propondo um novíssimo lugar ao objeto livro e afirmando que todxs somos perfeitamente capazes de produzir nossas próprias edições e colocá-las no mundo. Essa autonomia nós possuímos, de fato, e a praticamos muito bem, mas a resposta da Padê, embora certeira, não deveria ser a única.

Além da Padê, no universo literário independente, temos iniciativas mais pessoais, como os zines, e diversas editoras independentes vêm surgindo pra suprir a demanda dessas literaturas insurgentes, além de revistas literárias e outros projetos que se ocupam com a literatura produzida hoje e que fuja à heteronorma branca. Porém, ainda que essas iniciativas estejam se multiplicando cada vez mais, a duras penas, fica evidente que o sistema da heteronorma branca mais se preocupa artificialmente com essas figuras insurgentes do que cede espaços de protagonismo pra que nós mesmxs falemos a nosso respeito, onde, de corpo presente e munidxs de uma voz idônea, possamos contar nossas próprias histórias.

Enquanto escritora e profissional atuante no mercado editorial, posso afirmar que há uma imensa falta de visibilidade e mesmo ausência de valor atribuído ao trabalho de escritorxs negrxs e sapatões, reservando um diminuto espaço para suas produções literárias. Assim, convido xs colegas da área a se dedicarem também à pesquisa e publicação dessxs escritorxs, a caminhar um pouco fora da zona literária de conforto, sair do óbvio, levar ao público novas narrativas. Além disso, é gritante a importância de tornar visíveis as produções literárias insurgentes, sobretudo nos tempos que temos vivido. Visibilizar essa literatura é visibilizar figuras que foram e continuam sendo sistematicamente apagadas e exterminadas, é um gesto em favor de existências estigmatizadas como alheias, menores, nulas.

Pra finalizar, gostaria de retomar aquele enclausuramento do qual já falamos, resultado direto de um trabalho de crítica, curadoria e edição extremamente rasos, quando as literaturas insurgentes se vêm forçosamente taxadas de acordo com suas temáticas ou com o posicionamento político-identitário dxs autorxs, um movimento que esvazia o fazer literário e a própria literatura. Está mais do que na hora de nos permitir ser como os escritores hegemônicos o são, apenas escritores e pensadores, circulando livremente em sua prática literária que dispensa contestações e contextualizações. É preciso enxergar essas literaturas que chamo de insurgentes como a obra ou projeto literário que são, evitando esse olhar tão limitado que, na maioria das vezes, se atém sobretudo à dor.

Precisamos ter a escolha de narrar nossas alegrias ou simplesmente um passeio a pé pela cidade, histórias com finais felizes ou não, desde que tenhamos a alternativa de não ter de retratar mazelas pra que nosso trabalho seja reconhecido. Pois se existir, pra todos os outros, vai muito além de qualquer dor, nós, insurgentes, também apelamos pelo direito à vida e ao riso dentro e fora da literatura.

Cecília Floresta afrodescendente, escritora, candomblezeira & sapatão. Autora de poemas crus (Patuá), pesquisa narrativas e poéticas ancestrais iorubás e seus desdobramentos na diáspora negra contemporânea, lesbianidades e literaturas insurgentes

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