Linkania
Os grupos de resistência valem-se das redes para a atuarem nos intermeios da sociedade, mas essas organizações tendem ao combate direto contra o poder
Hernani Dimantas
O código aberto do software livre – do qual o Linux é o sistema mais conhecido hoje no mundo – está trazendo para a inovação tecnológica e cultural o que a linha de montagem trouxe para a produção de massa. Estamos chegando a uma era em que a colaboração substituirá a corporação. Uma opção pela descentralização do poder impulsionado pelas trocas interpessoais de uma sociedade em rede. Nesse sentido, estamos em um processo de transformação jamais visto, pois qualquer pessoa tem a possibilidade de publicar na rede, seja em forma de e-mail, artigos, blogs, músicas, seja por meio de imagens. A Internet é um meio multimídia que possibilita às pessoas várias formas de expressão. A cultura cibernética não é nada mais do que uma exposição dessa diversidade. Está em curso um processo silenciosos, uma revolução que não será televisionada, mas que provocará mudanças profundas na humanidade.
Em uma sociedade mediada por uma rede de computadores conectados, a lógica organizacional é totalmente diferente de tudo o que vivemos em uma cultura de massa. Temos de levar em conta que hoje as pessoas conversam, debatem, escrevem em blogs, enviam e recebem e-mails. Afinal, a troca de idéias está na base do funcionamento dos mercados. É justamente nesse caos coletivo que emergem a resistência e os movimentos contra culturais. Na rede, os internautas relacionam-se uns com os outros de maneira engajada.
Essas multidões hiperconectadas trazem à tona o conceito de linkania, que pode ser considerado o termo do futuro. Enquanto a cidadania, na essência, está ligada a diretiso e deveres, a linkania pressupõe a cidadania sem cidades, a desterritorialização, onde a ação é local. Linkania é a generosidade de linkar. É o ato e o prazer de buscar na colaboração uma nova forma de produzir e ser feliz no mundo contemporâneo.
Para analisar a resistência digital, ou as organizações cibernéticas de luta pela liberdade, ou a infoguerra, o ciberterrorismo, as bombas de Londres e os cliques fumegantes nas periferias informacionais, devemos compreender como esse caos interfere na concepção da sociedade. De como se formam os links e como esses links se transformam em redes.
A Internet é uma metáfora daquilo que entendemos como uma sociedade em rede hiperconectada. Ela não existe per si. Existem muitas internets. Por exemplo, os bancos utilizam para interação com os clientes; as rádios reverberam on-line; a UOL, a AOL e a Terra disponibilizam o último suspiro da mídia de massa; e os blogs mostram-nos sua diversidade de vozes. Grande parte desses sistemas opera para a manutenção das forças e a perpetuação do poder do capital globalizado – ou seja, aquilo que chamamos de mainstream, dentro da lógica do capitalismo em sua forma atual. No entanto, há uma pequena porção da Internet que se descola dessa lógica, constituindo um ambiente de compartilhamento de informações e catalisação do conhecimento. Nesse sentido, podemos dizer que uma “poderosa conversação global” começou. “Através da Internet, pessoas estão descobrindo e inventando novas maneiras de compartilhar rapidamente conhecimento relevante. Como um resultado direto, os mercados estão ficando mais espertos”.
Internet são redes de links. Computadores são apenas ferramentas. O poder do império precisa dessa infra-estrutura física de hiperconexão para se alimentar, pois, pela necessidade de enfrentar a escassez do capitalismo, o sistema procura aumentar a velocidade e a eficiência das suas relações. Ou melhor, os sistema financeiro precisa cada vez mais da rede para sobreviver, assim como os conglomerados de comunicação. Esse sistema obviamente é paradoxal e, contrariando as próprias expectativas de continuidade e sobrevivência, cria enclaves de liberdade.
De um lado, o império. Armamentos atualizados pelo milionário investimento e poder da indústria bélica norte-americana. Uma produção em massa de destruição alavancada pelos detentores do poder. Antonio Negri e Michael Hardt constatam que: “Uma lição difícil que os líderes dos Estados Unidos e das nações aliadas parecem ter aprendido relutantemente após o 11 de setembro, por exemplo, é que o inimigo que eles desafiam não é uma única Nação-Estado soberana, mas é uma rede. O inimigo, em outras palavras, tem uma nova forma. De fato, isso se tornou uma condição geral na era dos conflitos assimétricos, em que o inimigo e as ameaças ao poder imperial tendem a aparecer como redes distribuídas e não como uma estrutura centralizada e soberana”.
De outro lado, sabemos existir essa gigantesca população que encontra na rede um ambiente propício para expressar a sua potência. A multidão hiperconectada só se faz possível quando entendemos que há uma ruptura, na qual o “ser” torna-se um sujeito múltiplo e engajado, seres multifacetados capazes de incorporar várias vidas em uma só. Compartilhar interesses faz com que as pessoas se aproximem. Experimentamos as nossas singularidades e esquizofrenias. Linkem-se. A experiência da linkania tem ação descentralizadora. Possibilita o link, ou a relacionamento, entre as multidões, influenciando a descentralização e a fragmentação do poder.
Os partidos políticos, o terrorismo e alguns grupos de resistência tática valem-se das redes para atuarem nos intermeios da sociedade. No entanto, essas organizações tendem ao combate direto contra o poder. Esse tipo de ação prioriza o enfrentamento e, dessa maneira, confronta a sociedade de controle. O “efeito Grande Irmão” só pode ser explicado pela necessidade de o poder se perpetuar. Dessa forma, a sociedade de controle apenas serve ao poder.
A resistência digital, no entanto, não necessariamente se opõe ao inimigo comum, ou seja, aquele que se forma pela contradição do sistema capitalista. É possível recriar a existência por meio do diálogo, da apropriação e ocupação de espaços vazios de poder. O espaço informacional, por sua própria característica não geográfica e desterritorializada, permite a formação de comunidades virtuais, ocupadas pelas pessoas que transitam aleatoriamente no ciberespaço.
Entretanto, a liberdade também é uma forma de nomadismo. A liberdade também é nômade. Deleuze define o nomadismo como um modelo de resistência ao poder. A máquina de guerra é uma forma de dominação, mas também é a forma por meio da qual as populações se organizam para a ação. A revolução digital será possível quando a multidão enfrentar os atores imperiais numa intervenção direta na “microfísica do poder”.
Essa intervenção se dá pelo diálogo que se baseia na troca e na reapropriação de idéias como agentes de transformação. Tal como a máquina de guerra, conquista-se território, apropria-se de tecnologia e ocupam-se os espaços informacionais. As multidões organizam o caos das redes hiperconectadas. Assim, pode-se entender o poder nômade como modelo agregador do império. Mas como ver esse mesmo nomadismo como forma de resistência e revolução? Esse contra poder exige o engajamento por meio da máquina. Aliás, a própria rede só faz rede quando as pessoas que perambulam em seu entorno se engajam em torno de um projeto comum.
É nesse ponto que a revolução do software livre faz a diferença. Pressupõe a possibilidade de acesso ao código-fonte para modificar, diminuir, acrescentar ou fazer o que bem entendermos. É a ponta do iceberg de uma sociedade colaborativa. O software livre está influenciando cada vez mais nas decisões da sociedade da informação. O Linux é a resposta da multidão. Foi criado pela colaboração entre pessoas comuns, envolvendo centenas de programadores espalhados pelo mundo. O Linux é subversivo, porque transforma a estrutura imposta pela revolução industrial. É o primeiro produto idealizado e concebido pelas multidões hiperconectadas. Foi construído no novo paradigma. A colaboração vem a substituir o capital.
Colaboração, aliás, é a novidade da sociedade da informação. Com as tecnologias da comunicação e da interação, as redes passam a facilitar a convivência em tempo real à distância. Provocam e potencializam a conversão. Reconduzem a comunicação para uma lógica de sistemas organizacionais capazes de reunir indivíduos e instituições de forma descentralizada e participativa.
A tecnologia catalisa a inteligência das pessoas. A revolução das tecnologias da informação atua remodelando as bases materiais da sociedade e induzindo a emergência de agenciamentos colaborativos como base de sustentação da sociedade. Não podemos atribuir essas mudanças apenas à tecnologia. A Internet torna possível o florescimento de novos movimentos sociais e culturais em rede. Possibilita a organização da sociedade civil em novas formas de gestão e o retorno às redes humanas depois de anos de domínio das redes de máquinas e da burocracia. No limite da ruptura dos paradigmas, a colaboração surge como potencializadora das energias produtivas. A sociedade está se tornando mais aberta e, de uma forma ampla, mais colaborativa.
O software livre é o caso mais conhecido dessa resistência digital. E que teve maior impacto. Uma nova dinâmica que demonstra a produção de conhecimento livre como alternativa economicamente viável e sustentável.
Hernani Dimantas
pesquisador vinculado ao Departamento de Comunicação e Semiótica da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, autor de Marketing hacker – A revolução dos mercados, editor do site www.marketinghacker.com.br e editor de cibercultura da revista digital Novae (www.novae.inf.br)