Ler Marighella

Ler Marighella

 

“Se a esquerda  quisesse pensar sobre si mesma e sobre o Brasil, ela encontraria em Marighella uma figura fundamental, honesta e consequente, por mais que essas consequências fossem dramáticas. Ela deveria começar por ouvi-lo.

Agora que o Brasil começa enfim a ver Carlos Marighella, podemos esperar que ele comece a ler Carlos Marighella. Pois esse talvez foi, de todos o apagamentos a que foi submetido, certamente um dos mais brutais.

Quando alguém se dispõe a falar dos escritos de Marighella, o máximo que encontramos são os que se contentam com algumas citações mais “bombásticas” do Manual do guerrilheiro urbano, como se fosse o caso de procurar provar que seu autor é alguém movido por uma visão equivocada da realidade nacional, uma visão violenta e espontaneista da ação política e, por isso mesmo, alguém cujo interesse não estaria para além da mera curiosidade de filmes de ação. Ou seja, há de se admirar o esforço sistemático de eliminar qualquer relevância efetiva do pensamento de Marighella no interior da política brasileira. Esforço esse que, de maneira sintomática, não vem apenas da direita e do fascismo nacional, mas principalmente da própria esquerda. Isso quando não encontramos um modelo de ação convergente que consiste em interessar-se pela pessoa de Marighella, pela força de seu comprometimento,  esquecendo tacitamente de levar em conta o que ele de fato escreveu, o que ele de fato pensou e, principalmente, do que sua decisão tardia de entrar na luta armada é a consequência.

Há de se sublinhar o adjetivo que qualifica o verbo “decisão” nesse contexto. De fato, estamos a falar de alguém que entra na luta armada quando tinha 55 anos de idade, depois de uma longa trajetória como político, deputado constituinte, quadro dirigente do Partido Comunista Brasileiro, partido esse comprometido com a constituição de uma aliança com setores nacionalistas da burguesia nacional e com o trabalhismo de extração getulista. Qualquer tentativa de efetivamente saber quem era Marighella deveria partir desse ponto: estamos falando de alguém que sai da política partidária e entra na luta armada tardiamente.

Ninguém encontrará um texto de Marighella defendendo a luta armada antes de seu afastamento do PCB, em 1966, antes de sua prisão ilegal no golpe de 1964. Sua decisão de entrar na luta armada é, poderíamos dizer, “por subtração”. O que isso exatamente significa?

Essa seria uma pergunta relevante a ser respondida, se quisermos efetivamente entender o que Marighella ainda tem a nos dizer. Mas ao invés de começar por esse ponto, procurando em seus textos as razões pela decisão tão tardia, procurando pelas experiências que o levaram a fazer algo que ele conhecia muito bem os riscos e dificuldades, o que vemos é a própria esquerda brasileira se contentando muitas vezes em repetir o mantra vazio da luta armada como uma “ingenuidade”, uma “irresponsabilidade”, como o delírio por uma revolução impossível. Afinal, é assim que a esquerda brasileira consegue sustentar-se, a saber, alimentando sistematicamente o fantasma da revolução impossível, alimentando a melancolia da pretensa ausência de escolha a fazer diante das dificuldades intransponíveis da política brasileira. Ausência essa, por sua vez, que nos levaria à necessidade de mais uma tentativa de grande pacto nacional, ou para falar em um português mais explícito, mais uma traição às expectativas de transformação estrutural do Brasil. No que a esquerda brasileira mostra muito claramente sua extração de classe.

Por ser, principalmente, um agrupamento político cujos dirigentes são a classe média radicalizada e o antigo sindicalismo que galgou posições sociais, ela tende a operar como o setor político de preservação institucional, isso em um país no qual a direita faz constantemente o papel inverso, a saber, o papel do ator de ruptura institucional, seja em situações de contenção de processos de transformação em marcha na sociedade, como vimos em 1964, seja em situações de revolução conservadora, como vemos agora. Essa situação é periodicamente repetida na história brasileira e, ao que parece, a repetição parece querer se impor como o nosso destino.

Assim, por mais complexa e difícil que seja a situação da esquerda brasileira, ela se torna ainda mais complexa e ainda mais difícil pelo simples fato de ela lutar com todas as suas forças para não pensar sobre isso, para não pensar em suas estratégias e decepções. Se ela quisesse pensar sobre si mesma e sobre o Brasil, ela encontraria em Marighella uma figura fundamental, honesta e consequente, por mais que essas consequências fossem dramáticas. Ela deveria começar por ouvi-lo.

Um golpe, e depois outro

 

“A subestimação do perigo de direita no panorama político brasileiro foi fruto do reboquismo e da ilusão no governo. Acreditava-se que a burguesia seguiria o caminho das reformas pacíficas sob a pressão do movimento de massa, e que a direita não se levantaria. E que, se isto acontecesse, a burguesia tomaria a iniciativa da resistência e do combate aos golpistas. Foram inúmeras as vezes em que repetimos que o desencadeamento de um golpe de direita seria a guerra civil no país ou que à violência dos golpistas responderíamos com a violência das massas. Como as palavras não coincidiram com os fatos, isto significa que não nos preparamos. Estávamos confiantes em que o governo resistiria. Nem ao menos denunciamos insistentemente o golpe de direita. Deixamos de chamar as massas à vigilância e não as alertamos para a eventualidade de uma resistência.” Esse é Carlos Marighella em “A crise brasileira”texto que faz parte da coletânea Chamamento ao povo brasileiro, editada em 2019.

Marighella pede que a esquerda brasileira reflita sobre o significado do golpe de 1964, um golpe feito sem nenhuma resistência organizada, fruto de uma apreciação errônea tanto da função das forças armadas (não se cansou de vender a imagem de um “dispositivo militar” nas mãos do governo Goulart) quanto da disposição intervencionista dos EUA (falava-se na época de uma ‘nova tática do imperialismo’ que recusaria golpes de estado). Ele insiste que havíamos conhecido um trabalho de massas “com nítida característica de trabalho de cúpula”, reduzido basicamente a sindicalização de empresas estatais. Ou seja, Marighella fala em ilusão de um pacto de classe que nunca existiu, fala em desconhecimento da verdadeira natureza da burguesia nacional, que se vende como legalista mas não vê problema em apoiar golpes de estado que depois serão descritos por banqueiros como processos absolutamente normais, fala em divórcio em relação tanto à mobilização popular quanto à articulação com setores radicalizados (como marinheiros e sargentos).

Na verdade, ele compreende bem que a esquerda brasileira havia sido refém das composições populistas nas quais o trabalhismo procurava construir uma cadeia de equivalências onde encontrávamos demandas tanto dos setores ligados aos comunistas quanto das oligarquias locais. Obrigada a respeitar as composições e “garantir a governabilidade”, ela tinha ido até o cadafalso apoiada em suas próprias ilusões.

O texto em questão é de 1966, ou seja, dois anos depois do golpe e escrito tempos depois de Marighella ter sido preso. Um dos elementos mais surpreendentes desse texto que guarda um amargo gosto de atualidade é sua defesa da necessidade de, mesmo assim, editar uma “frente única antiditadura” com a necessária aliança com a burguesia nacional em sua fração não apoiadora do golpe. Daí colocações como essas: “Ainda que os problemas brasileiros continuem sendo de reformas de estrutura, só poderemos resolvê-los derrotando a ditadura e assegurando a restauração das liberdades democráticas. Nosso objetivo tático fundamental – para chegarmos a reformas de estrutura e prosseguirmos com a luta até uma vitória posterior do socialismo – está em substituir o atual governo por outro que assegure as liberdades e faça uma abertura para o progresso”.

Como se vê, o tom não é de chamado à insurreição popular em direção ao comunismo, não é uma pregação pela implantação imediata da ditadura do proletariado ou qualquer coisa que o valha. Ao contrário, ele é de prudência e contenção impressionantes. Trata-se de “restaurar” as “liberdades democráticas”, assegurando a liberdade e o progresso, vencer o subdesenvolvimento através da “expulsão do imperialismo e da luta contra o latifúndio”. Ou seja, ele acreditava, em 1966, na possibilidade de uma saída pelo restabelecimento das vias institucionais anteriores, mesmo depois do golpe. Seu horizonte era um efetivo governo de aliança.

Mais à frente no mesmo texto, quando afirmar que o golpe militar não havia deixado outra opção a não ser uma insurreição armada popular, Marighella compreenderá essa estratégia revolucionária não como uma forma de implementação de um governo comunista, mas como uma maneira de, dentro de uma lógica de frente única, “parar com a política de subordinação do proletariado à burguesia”. Há de se admirar e levar em conta a singularidade dessa posição: sustentar uma aliança com setores da burguesia, mas impor a ela outra dinâmica através da insurreição popular. Pois a aliança do proletariado com a burguesia no Brasil seria “uma inevitabilidade histórica”. E notem o tom de Marighella nesse caso: “o proletariado – em face do tremendo impacto da abrilada – não tem outro recurso senão adotar uma estratégia revolucionária”. Ou seja, foi o golpe que lhe levou a defender a estratégia armada, algo que se inscreve, de forma quase pedagógica, no direito à resistência contra a tirania. Por isso, é correto dizer que Marighella assume uma “luta armada por subtração”. Daí uma colocação absolutamente central para entendermos a posição de Marighella como: “Ninguém espera que a guerrilha seja o sinal para o levante popular ou para a súbita proliferação de focos insurrecionais. Nada disso. A guerrilha será o estímulo para o prosseguimento da luta de resistência por toda parte. Para o aprofundamento da luta pela formação da frente única antiditadura. Para o esforço final da luta de conjunto, de todos os brasileiros, luta que acabará pondo por terra a ditadura”. Como se vê, algo longe da imagem de alguém ingênuo o suficiente para acreditar que estaríamos às portas da revolução. A guerrilha aparece aqui como um prosseguimento da resistência à ditadura, inscrito como direito humano o mais elementar. Mas a capacidade da própria esquerda brasileira criar caricaturas de quem ela deveria ouvir é inesgotável.

Dessa forma, a radicalização cada vez maior que o discurso de Marighella verá até a constituição da Ação Libertadora Nacional, em 1967, é fruto direto da consciência da burguesia nacional preferir fortalecer golpes, apoiar ditaduras, quebrar as ordens institucionais que ela mesma produziu a aceitar uma hegemonia das classes populares em um governo de aliança, mas agora com outra configuração de hegemonia. Nesse sentido, o problema deixado pela experiência de Marighella é real, ele se repetiu no Brasil dos últimos anos, e nada impede que ele não se repita mais e inúmeras vezes. Pois, sobre ele, a esquerda brasileira prefere sequer pensar.

 

Vladimir Safatle é professor titular do departamento de filosofia e do instituto de psicologia da USP


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