Imagens, esboço e alta velocidade

Imagens, esboço e alta velocidade
O escritor Leonardo Marona, autor de 'Uma baronesa às quatro da madrugada' (Urutau, 2018) (Foto: Renata Lima)

 

“Fizesse chuva ou sol, certas forças no mundo estavam trabalhando para tentar me destruir”, diz Dominic Molise ao final do primeiro parágrafo do relato que elabora para tentar vencer o medo de seu braço esquerdo, livre e jogado ao inferno, um seu demônio. O personagem de John Fante, lançador de beisebol, canhoto, abre uma deriva em perspectiva e alta velocidade para o demoníaco, “potência cósmica e lei da natureza”, que atravessa o moderno, desde Goethe em seu Palavras órficas (como sugere Giorgio Agamben), até a reabertura feita por Walter Benjamin no ensaio sobre Karl Kraus, numa parte chamada exatamente Demônio. Isto é, para Benjamin, nas figurações do Daimon grego entre Sócrates, Goethe, Bachofen ou Kafka, que lhe interessavam tanto, pode-se reparar no “estado pré-histórico da comunidade humana entre o direito e a culpa”, “pré-religioso e pré-ético”, e na postulação de uma pergunta: como interromper a tradição sem levar a cabo o passado?

O que remete também aos Cantos órficos de Dino Campana e seus textos, anteriores aos de John Fante, já em alta velocidade: “Passeio sob o pesadelo dos pórticos. Uma gota de luz sanguínea, depois sombra, depois uma gota de luz sanguínea, a doçura dos sepultados” etc. Ou seja, sem lados, redonda e total, feito a guerra, a modernidade é demoníaca. O que advém disso, como esperança, é da dimensão do acidente ou do detrito, porque é da modernidade que nos surge a projeção imparável sobre as coisas mortas. Por isso, Pasolini, num esforço a essa indagação, costumava perguntar, grosso modo, qual a homologia entre uma vida social inautêntica, oriunda da implantação moderna de uma burguesia fascista, e as possibilidades da literatura entre o real, a história e a natureza.

Diante dessa homologia, o que temos agora, entre nós, é “uma orgia formalista do romance”, por exemplo, de um lado e, do outro, uma poesia que se volatiliza em torno de um eu neo-naturalista banalizado sob a frase feita e que se empenha por uma restauração absoluta sempre em torno de um si mesmo, sem reelaborar princípio ou circunstância política a qualquer mínima ideia de força ao contrário, como, noutro sentido, a de uma restituição que tome como ponto de partida alguma escassez da forma para torná-la mais estrangeira e menos exata. Tomar à vista o que não se move e que se constitui apenas como hierarquia numa pertinência recente que se faz, aqui e acolá, como contemporâneo imediato: na feira, na mesmice e no consumo é o mesmo que largar de vez os jogos de força que ainda se pode produzir como pensamento. Algo como o que Silvina Rodrigues Lopes diz, categórica: “É preciso impedir que a banalidade que aparece hoje consensualmente como literatura não se arrogue em breve um direito de exclusividade.”

Numa expansão desse demoníaco, quando se pode imaginar ainda lançá-lo em redemoinho, sem ideal e sem glória, no meio da naturalização e da banalização desse contemporâneo imediato, é possível restituir [e não restaurar] como impasse o traço da criança, em sua dimensão radical e severa de ingenuidade, porque selvagem: a que inscreve como um cão danado numa insistência de predileção pela graça do inferno. E há uma gravidade nessa inscrição, ininterrupta e excessiva, entre pensamento ingênuo e a afecção do in-fans, em algo do trabalho de Leonardo Marona. Não como recorte, singularidade, unidade exclusiva, precisão crítica absoluta e experiência de partilha sem transparência, mas no jogo que procura armar entre gravidade e graça com o demoníaco e, noutra disposição, a cristã, com o inferno e seus contrapontos.

Tudo nesse trabalho é muito veloz: da quantidade de livros, oito, se levarmos em conta que Leonardo nasceu em 1982 [em Porto Alegre, desde os dois anos de idade passou a morar no Rio de Janeiro] e que, sem parar, do romance ao poema, se exercita numa escrita como quem produz arremessos à beira de uma velocidade da astrofísica entre Kepler e Newton. É o primeiro, Kepler, quem afirma que a órbita dos planetas não constrói círculos perfeitos, concêntricos ao sol, e que assim se rompe com o idealismo da cosmologia engendrando uma ideia de ciência a partir da experiência, este conceito que depois, numa abertura, é fundamental ao pensamento de Benjamin: como arrancar um ex daquilo que morre e o quanto ainda somos capazes desse gesto de força. Leonardo esboça o gesto em livros fortes como Cossacos gentis (Oito e Meio, 2015) e Dr. Krauss (Oito e Meio, 2017), por exemplo, numa encenação de imagens anteriores ao olho porque são, também e ao mesmo tempo, depois do olho, uma espécie de dissipação do visível e do esfacelamento do real. Depois, em alguns poemas de Herói de atari (Garupa, 2017), reaparecem essas imagens de esboço como se projetadas num muro salpicado a cimento, entre aderência e proximidade, plano fechado e uma terrível circunstância de encandeamento devido a uma luz intensa, como em poema azul para paul celan: “ao romper do osso, / jaz o equilibrista azulado / com a corda na volta do pescoço. // um pente de areia varre / os ossos velhos rompidos, / entre as unhas sobram / filetes de coisas mortas. // […]”.

Agora, recente, publica o mínimo Uma baronesa às quatro da madrugada (Urutau, 2018), e arremessa – num projétil, velocidade de míssil – um ouriço à mão ferida com a restituição de Maura Lopes Cançado: litoral, terra arrasada, hospício, sofrimento, voto de confiança, abandono, boca, maldição, espera etc. Cada poema é, às avessas, uma desconfiança e uma tentativa de redesenhar linha a linha o dizer agudo do que ela experimentou entre vida e livro. Assim, busca refazer o contraponto elíptico de como ela equilibrava sua escrita, com sofisticação e selvageria [na linhagem díspar de Adalgisa Nery e Heloneida Studart], numa desmontagem do que é falar [repetição, forma] para o que ainda é dizer [diferimento, força: Dichter, Dichtung]; ou seja, dizer ainda pode constituir alguma tarefa política para a literatura: “é que ela dançaria um minueto / por um toque de mão sem dor”.

Num passeio insano, “cara a cara / com um grande / pensamento”, “desejos rarefeitos”,  “a paciência de deus” e “um milhão de botecos”, Leonardo insere o pequeno livro na série de seus esboços em alta velocidade, dessa maneira, pode-se imaginar, enfrenta a ideia de obra, este monopólio da memória ou esse embaraço que se toma como acabado, pronto, encerrado etc., para deixar todo seu trabalho, livro a livro e o tempo todo, numa fragmentada e fragmentária instabilidade de oscilação e ambivalência. Isto tem a ver com uma habilidade de menino, sempre atenta, que aparece apenas naquele que lê sem parar a terra, a vida, o mundo, o livro e o que ainda não foi escrito. Dá pra lembrar, rapidamente, de dois outros poetas que se empenham em direção ao esboço, traço de criança e frescor de pensamento, como experiência e guerrilha: Carlos Augusto Lima, em todos os seus livros radicalmente lentos feitos para o desaparecimento, de Manual de acrobacia ao Motociclista do globo da morte etc.; e Júlia Studart, ao anotar a condenação do mal entendido como esperança perdida em seu Logomaquia. É ela, por exemplo, quem restitui a Milan Kundera, no poema logomaquia, uma arché da diabrura do corpo lançado ao mundo para o esboço: “quando uma conversa entre amigos diante de um copo de vinho é transmitida pelo rádio, uma coisa fica evidente: o mundo se transformou num campo de concentração”.

Desfazendo seu trabalho, nem obra nem operação estratégica, e sim garatuja, este traço de crianças terríveis e medonhas que se movem como pequenos demônios chupando mariola, faça chuva ou sol, contra a guerra de desgaste e a guerra do tempo, Leonardo Marona percorre à deriva os sentidos de espera, de esperança, na sua opção de confronto através da velocidade. Se a revolução [isto que vem dos astros] é o movimento e se o movimento, em si, esta ilusão, não é ainda a revolução, nada como lançar-se velozmente à partida, peregrinação arriscada, contra a criação mecânica de claustros. É perseguindo esse gesto que podemos ler coisas encantadoras como o que anota o narrador do muito-muito bom Dr. Krauss: “Os dias sem Krauss são dias de flores no deserto. São dias, portanto, em que se pode ver a beleza, mas, junto a ela, vem sua origem, e não é bonita a origem da beleza. É quente e seca e quando se fica muito tempo perto da origem, morre-se de sede e perde-se para vermes fortes como touros e lentos como um abismo gradual. Percebo, de repente, nesses dias sem Krauss, que o mundo em que se vive é lindo, porque ele é tão estranho a cada um de nós, tão distante do que vemos diariamente e, sendo sempre o que não vemos, que nos faz lembrar um mundo lindo que um dia criamos para nós […]”.

 


Manoel Ricardo de Lima é professor da Escola de Letras e do PPGMS, UNIRIO. Publicou, entre outros, Geografia aérea (7Letras, 2014), Jogo de varetas (7Letras, 2012), As mãos (7Letras, 2003), A forma-formante – ensaios com Joaquim Cardozo (EdUFSC, 2014) e Maria quer o mundo (Edições SM).

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